As Jornadas de Junho, como ficaram conhecidas as manifestações ocorridas em diversas cidades em junho de 2013, trouxeram à pauta um tema até então com pouco destaque no debate público: a tarifa zero.
O grito de “não é só por 20 centavos”, encabeçado, na época, pelo Movimento Passe Livre (MPL), acabou sendo o estopim tanto para os atos que tomaram o país há dez anos quanto para o avanço no debate em torno da tarifa em dezenas de cidades.
“A gente tinha pouco mais de dez cidades antes de 2013 [com tarifa zero], e hoje são 72, onde vivem quase 3,5 milhões de pessoas”, ressalta o urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Roberto Andrés, autor do livro “A razão dos centavos – crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013”, lançado neste mês. Em 2012, eram 14 cidades com tarifa zero, segundo levantamento feito pelo pesquisador de políticas de mobilidade e coordenador da Fundação Rosa Luxemburgo Daniel Santini.
“O senso comum sobre a tarifa zero é que era uma ideia utópica, e de repente isso vai mudando aos poucos, cada vez mais gente vai considerando que isso é uma possibilidade”, continua Andrés. “Hoje a gente vê a prefeitura de São Paulo, o [Ricardo] Nunes debatendo Tarifa Zero.”
Ele se refere à subcomissão criada pela prefeitura da capital paulista no começo de março para estudar a possibilidade de implementação da tarifa zero no sistema de transporte coletivo de ônibus da cidade.
O prazo de 120 dias para realização dos estudos sobre o tema encerra no final de junho, mas essa não é a primeira vez que se discute a implementação da tarifa zero na cidade. Em 1990, Lúcio Gregori, então secretário de Transporte, apresentou a proposta à prefeita Luiza Erundina, que a encaminhou à Câmara de Vereadores, mas o projeto não foi aprovado.
A possível adesão da maior cidade do país à tarifa zero, 33 anos depois, se deve à queda de receita das empresas nos últimos anos, acentuada no período da pandemia de covid-19 – e ao “germe” plantado ainda em 2013 pelo MPL.
O germe do movimento
Em 2003, uma mobilização protagonizada por estudantes em Salvador conseguiu o congelamento da tarifa de ônibus e ficou conhecida como Revolta do Buzu. Os atos chamaram atenção de estudantes de Florianópolis que, em 2004, organizaram uma mobilização contra o aumento das tarifas que durou vários dias e foi batizada de Revolta da Catraca.
“Ali nasce o germe do Movimento Passe Livre”, conta Paíque Duques Santarém, militante do movimento desde a sua criação. Na época, ele fazia parte do Centro de Mídia Independente (CMI), que acompanhou os protestos. “A gente, que era dessa rede de ativistas de ação direta no Brasil inteiro, ficou impressionado com o que estava acontecendo e aí há uma decisão de construir o MPL”, lembra.
O MPL foi criado oficialmente em 2005 numa plenária no Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, a partir da junção de coletivos que pautavam a luta pelo passe livre estudantil em diversas cidades do país. No mesmo ano, o movimento articulou um encontro nacional em Campinas e em 2006 voltou a reunir diversos grupos do país na escola Florestan Fernandes, em Guararema, localizada no Vale do Paraíba, a 80 km de São Paulo.
No encontro nacional, eles tiveram contato com Gregori, que apresentou o mesmo projeto que havia apresentado a Erundina anos antes: a perspectiva de um transporte público sem catraca. Nesse momento, o MPL incorporou a proposta como bandeira do movimento e passou a fazer formações e discussões sobre o tema em ocupações, comunidades em periferias e escolas.
“A partir das discussões, a gente tentava trazer mais pessoas para o movimento e divulgar inicialmente a proposta do passe livre estudantil, posteriormente a ideia da tarifa zero”, relata Lucas Oliveira, historiador e ex-militante do MPL. Ele considera que os momentos em que o movimento teve mais força foi quando esteve conectado às escolas.
Os 20 centavos
No dia 2 de junho de 2013, o governo e a prefeitura de São Paulo anunciaram o aumento de R$ 3 para R$ 3,20 nas tarifas de transporte coletivo. Em 6 de junho, o MPL convocou o primeiro grande ato contra o aumento. A concentração da manifestação aconteceu em frente ao Teatro Municipal de São Paulo.
No dia seguinte, o MPL convocou o segundo protesto, e os manifestantes bloquearam a Marginal Pinheiros, uma das principais vias da cidade.
Em 11 de junho, a concentração do ato foi na praça do Ciclistas, na avenida Paulista. Manifestantes caminharam até o terminal Parque Dom Pedro. No entanto, a Polícia Militar impediu o acesso do grupo ao terminal. Houve confronto entre policiais e manifestantes, ônibus foram quebrados e prédios e estabelecimentos, pichados.
Foi no quarto ato, em 13 de junho, que a reivindicação tomou proporções nacionais. A repressão da Polícia Militar foi intensa e muito violenta. Dezenas de pessoas foram detidas e diversas ficaram feridas, entre elas muitos jornalistas, incluindo o fotógrafo Sérgio Silva, que perdeu a visão de um olho por ter sido atingido por uma bala de borracha. No dia seguinte, a cobertura da imprensa, em grande parte contrária aos atos, começou a adotar posição favorável aos manifestantes.
Na manifestação seguinte, em 17 de junho, muitas pessoas que até então não haviam participado dos atos decidiram comparecer. Nesse momento começaram a surgir outras pautas: contra a corrupção, contra a Copa do Mundo, com pedidos de educação e saúde no padrão Fifa, entre outros.
Mesmo diante da grande adesão popular, o então prefeito Fernando Haddad reuniu a imprensa e manteve o aumento. Em resposta, o movimento organizou um sexto ato, na praça da Sé, no dia 18 de junho, que contou com milhares de pessoas. No dia seguinte, o governador Geraldo Alckmin e o prefeito Haddad anunciaram a redução no preço da tarifa em 20 centavos.
Depois dos 20 centavos
A grande adesão da população aos atos puxados pelo MPL também contou com a participação de movimentos organizados e partidários à direita e à esquerda. Para Santarém, houve, por ambas as partes, uma tentativa de sequestro tanto do MPL quanto do debate que ele propôs.
“Isso é tradicional da esquerda. A partir de uma mobilização com repercussão nacional, as vanguardas ficam ali tentando disputar a direção da luta. Nós não achamos certo, mas isso é coisa que acontece”, afirma.
Para Oliveira, a sobreposição de outras pautas às reivindicações iniciais do MPL era inevitável, em especial em atos com a dimensão dos ocorridos em junho de 2013. Ele avalia, porém, que o movimento poderia ter seguido avançando, “proposto, depois que a gente conquistou a redução de tarifa, uma mobilização nacional pela tarifa zero”.
Após os atos, o movimento conseguiu a redução no aumento da tarifa em mais de cem cidades e contou com uma série de adesões de organizações, de indivíduos e coletivos por todo o país. Mas também “ruptura e problemas internos, frutos de uma organização que ganhou muita relevância, muita evidência, mas pouco apoio e muita perseguição”, enumera Santarém.
Ele conta que nos anos seguintes, mesmo com uma adesão popular menor e com a pauta do aumento da tarifa não mobilizando tantas pessoas, como em 2013, sempre que os governos reajustaram a tarifa, o MPL puxava atos. Santarém atribui a diminuição no tamanho das manifestação a uma capilaridade menor da pauta, com menos trabalho de base nas periferias.
Outro aspecto foi a perseguição judicial sofrida pelos militantes, aponta Oliveira. “Entre 2013 e 2015, quem participou dessas manifestações foi intensamente reprimido. A gente passou o ano de 2014 inteiro respondendo a um inquérito sem fato determinado. Ele envolvia dezenas de militantes que eram chamados recorrentemente para depor na Polícia Civil”, afirma.
A forma como o movimento foi perseguido, porém, não fez com que as atividades cessassem. Segundo Santarém, o MPL manteve encontros, articulações e campanhas com foco na implementação da tarifa zero em diversas cidades. “O MPL segue ativo em seis estados e em processo de organização com novos coletivos e reorganização de coletivos que estavam desarticulados”, diz.
Desde 2016, o movimento tem estimulado e articulado com dezenas de organizações de todo o país da área de transporte a coalizão Mobilidade Triplo Zero, uma rede lançada oficialmente em março de 2023. Para além da tarifa zero, a coalizão propõe zero emissões de carbono e zero mortes no trânsito, trazendo a questão das mudanças climáticas para a pauta.
“Não é à toa que nós passamos de 14 [em 2013] para 72 cidades com tarifa zero [em 2023] e que hoje nós tenhamos um debate de tarifa zero em Palmas, Cuiabá, São Paulo, Distrito Federal, Curitiba, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Luís, Teresina. E muitas cidades médias e pequenas já estão aderindo”, diz Santarém. “Tarifa zero é um legado evidente do MPL. Nós construímos essa pauta, fizemos ela e mantivemos ela nesses dez anos mesmo sobre muitos ataques.”