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Filósofa visita o Brasil para lançamento do livro “Abolicionismo. Feminismo. Já.”, acompanhada pela coautora Gina Dent

Entrevista
10 de julho de 2023
13:10
Este artigo tem mais de 1 ano

Sentenças com penas longas não resolvem o problema estrutural da violência e não garantem justiça. A ideia de que a justiça pode e deve ser alcançada por meios alternativos está no centro do conceito que une o abolicionismo penal e o feminismo, defendido pela filósofa norte-americana e professora emérita da Universidade da Califórnia Angela Davis, com quem a Agência Pública conversou. 

“O feminismo abolicionista está sempre olhando para um tempo em que a justiça não seja vingativa. Para um tempo em que a justiça seja sobre a construção de harmonia e bem estar. Mas nós estamos convivendo com essa justiça vingativa. Essa é a forma de justiça que existe em praticamente todos os sistema judiciários no mundo, no momento”, disse Davis, que está no Brasil para lançar o livro “Abolicionismo. Feminismo. Já.”. A obra foi escrita por ela em colaboração com as autoras Gina Dent, Erica Meiners e Beth Richie, referências em estudos de gênero e raça. Editado no Brasil pela Companhia das Letras, o livro será lançado em Salvador, nesta terça-feira (11), no XVIII Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada).  A Agência Pública entrevistou Davis e Dent durante evento para jornalistas, no último domingo (9), em Salvador (BA).

Gina Dent (à esq), Raquel de Souza (ao centro) e Angela Davis (à dir) durante lançamento do livro “Abolicionismo. Feminismo. Já.”. Elas estão sentadas em uma mesa com dois livros de capa laranja expostos
Gina Dent (à esq), Raquel de Souza (ao centro) e Angela Davis (à dir) durante lançamento do livro “Abolicionismo. Feminismo. Já.”

Segundo Davis, essa justiça vingativa, que a maioria das pessoas tem internalizada, afeta as emoções. Por isso, “muitos não acreditam que a justiça foi feita, a não ser que ela tenha sido promovida a partir de um número de anos de sentença muito longa, incluindo, nos EUA, onde há a pena de morte”, explica. O conceito proposto pelas autoras também fala sobre prática e um exercício afrotuturista, ou seja, de criação de um futuro melhor para a população negra. “O feminismo abolicionista precisa abraçar essas duas formas de justiça, essa com a qual convivemos atualmente e a que queremos para o futuro”, pontua a professora.

Nos Estados Unidos, o encarceramento em massa não chegou nem perto de resolver as raízes da violência na sociedade, argumenta Davis. O país ocupa o primeiro lugar no ranking mundial dos que mais encarceram, onde 1,7 milhão de pessoas estão presas, segundo dados do World Prison Brief. A população americana é de aproximadamente 330 milhões. O Brasil figura há anos no terceiro lugar nesse ranking, com uma população carcerária de 820 mil pessoas, segundo dados de 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Destes, 67,4% são negros. 

Davis diz que tem acompanhado a situação política do Brasil que, para ela, deu um passo à frente do seu próprio país com relação ao combate ao fascismo. 

“Independente das semelhanças políticas do Brasil e dos Estados Unidos, é importante enfatizar que os brasileiros impediram a reeleição de Bolsonaro e ao invés disso elegeram um candidato progressista e socialista. Nos Estados Unidos, nós conseguimos aquilo que chamamos de expulsar o fascismo da Casa Branca, mas a pessoa que nós elegemos é uma pessoa que não tem desenvolvido suas funções da maneira que muitos de nós gostaríamos”, pontua.

O papel do feminismo abolicionista, tanto no cenário brasileiro quanto no norte-americano, argumenta Davis, é ser crítico até mesmo de políticas supostamente progressistas.

“O feminismo abolicionista nos leva a pensar sobre aquilo que nós poderíamos considerar uma política contraditória e, às vezes, até abraçar as contradições. De tal maneira que possamos apoiar o governo progressista no Brasil e ao mesmo tempo temos que desafiar e sermos críticas. Em vez de abraçar essas políticas voltadas para a questão da segurança, que são de cunho racista, de violência racista, podemos então reivindicar outras formas melhores de estabelecer a segurança, com moradia, assistência de saúde, especialmente saúde mental, educação e outras”, defende. 

O simples ato de chamar a polícia pode sujeitar comunidades negras a serem violentadas também pelo Estado, comenta Gina Dent, coautora do livro e professora associada nas áreas de estudos feministas, história da consciência e estudos legais na Universidade da Califórnia. 

As autoras dizem que é preciso reconhecer os danos causados pela violência do Estado em relação a pessoas negras e não investir novamente em um sistema que causa essa violência. “São formas de alcançar justiça na sociedade e restabelecer o equilíbrio reconhecendo os danos, mas não reforçando de novo o sistema [de justiça penal] que causou e causa tanta dor. O feminismo abolicionista resiste à individualização dos danos causados, nós resistimos a participar de uma sociedade que só nos convida a fazer parte dela se participarmos desse sistema”, reforça Dent. 

“Precisamos compreender porque as pessoas sentem a necessidade de penas mais pesadas, mais longas. Isso não significa que nós não possamos refletir sobre como a justiça deve ser desdobrada”, acrescenta Angela Davis. “E precisamos refletir sobre a necessidade de punir os policiais que se envolvem em violências.  Nada vai mudar de maneira fundamental, nada vai mudar em termos da estrutura.”, propõe. 

Objetivo do feminismo abolicionista é fim das prisões

O objetivo final do feminismo abolicionista é o fim das prisões, da justiça vingativa e das forças policiais. Essas metas podem parecer utópicas, mas Davis e Dent defendem que na verdade eles são práticas que podem ser construídas e aperfeiçoadas no agora. 

Gina Dent (à esq) e Angela Davis (à dir)
Intelectuais defendem o fim das prisões

“Desde que houve a implementação, a invenção do sistema carcerário, as chamadas em prol de reformas dizem respeito a ‘prisões melhores’. Esses chamados por reformas têm tornado, na verdade, esse sistema carcerário cada vez mais poderoso e cada vez mais permanente”, explica Davis. 

Em suma, elas defendem o abolicionismo carcerário como uma “metodologia flexível” e uma linha de chegada, que também pode envolver as reformas necessárias, ao longo do percurso. “Queremos, em última instância, que sejam observados determinados problemas como problemas carcerários. Queremos eliminar as prisões, a polícia, as forças policiais, as forças de segurança no formato em que existem atualmente. Mas há reformas que nós apoiamos, quando tornam a vida das pessoas que estão atrás das grades mais habitável, mais confortável”, explica Dent. 

Para a autora, é preciso “abordar o dano que vemos no agora e trabalhar em prol das reformas que acreditamos que vão levar à maior liberdade. Como alguém que já lecionou dentro do sistema carcerário – que é um tipo de reforma, a educação – eu me sinto bastante contemplada pelo fato de que a educação fez com que as pessoas aceitassem melhor o conhecimento ou a incorporação dessas pessoas que passam pelo sistema prisional”, diz Davis. “Infelizmente, o feminismo abolicionista não é uma forma de mágica”, pontua Dent. 

“É preciso conectar experiências abolicionistas feministas ao redor do mundo”

Angela Davis e Gina Dent defendem que “é preciso conectar as experiências feministas abolicionistas ao redor do mundo, principalmente no Sul Global”. “Eu já afirmei várias vezes aqui no Brasil e nos Estados que nós temos muito a aprender com a tradição dos feminismos negros brasileiros. Mulheres como Lélia Gonzalez, que eu conheci em 1995. O ecossistema feminista tem que ser internacionalista”, afirma Davis.

Lideranças feministas negras, como a ex-vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), se tornaram símbolos mundiais de resistência à violência policial e militarização das polícias. O trabalho político da vereadora carioca em vida e seu brutal assassinato são abordados no livro pelas autoras norte-americanas como exemplos de movimentos que transcedem fronteiras nacionais.   

“Em qualquer lugar que estejamos nesse mundo, as contribuições das mulheres negras tendem a ser apagadas. Tem sido maravilhoso durante esse último período que mulheres negras, como Marielle Franco, surgiram como o rosto desse movimento, especialmente movimentos contra a militarização da polícia. Ela é uma das maiores figuras dessa era não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos”, diz Angela Davis

Outro marco é a insurgência global do #BlackLivesMatter [#VidasNegrasImportam] em 2020, após o assassinato de George Floyd, um homem negro, morto por um policial branco nos Estados Unidos. As repercussões e sismos causados por mobilizações antirracistas e abolicionistas locais se espalharam como chamas. 

Essas mobilizações, no entanto, também trazem perigos. Dent explica que um deles é a incorporação de pautas antirracistas e feministas pelo status quo. “As formas de representação podem nos confundir e nos levar a abandonarmos as mesmas estratégias que nos permitiram sobreviver até aqui”, considera. “As raízes feministas negras do abolicionismo são modeladas para trazer para dentro da sociedade essas formas de resistência. Nós precisamos resistir aos elogios da câmera, da atenção, da pressuposição de que termos um bom emprego nos tornará mais iguais”, considera.

Para a professora Gina Dent, o conceito de igualdade carrega um problema, já que foi estabelecido segundo as normas da sociedade dominante. “Precisamos documentar nossas próprias práticas, sustentá-las entre nós e levá-las ao resto do mundo”, finaliza. 

O feminismo abolicionista tem que ser, segundo as intelectuais, antes de tudo, anticapitalista e aliado a quem está na base da pirâmide social.  “O feminismo de nossa era é um feminismo moldado por mulheres da classe trabalhadora, mulheres negras, envolvidas com o movimento ambientalista. Em outras palavras, não diz respeito a mulheres avançando profissionalmente de forma individual. Diz respeito a mudar a sociedade, criar um mundo melhor para todas as pessoas”, diz Angela Davis.

Débora Britto/Agência Pública
Débora Britto/Agência Pública

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