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Conversas difíceis

Lei das Fake News dá a chance de questionar por que a imprensa evita prestar contas para seus pares e para o público

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23 de julho de 2023
06:00

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Na semana passada estive na África do Sul, em um congresso organizado pela Universidade de Pretória para discutir regulação das gigantes da tecnologia e a compensação a ser paga para os veículos jornalísticos pelo uso do seu conteúdo. Fui até lá para tentar entender como outros países conseguiram avançar com as suas próprias Lei das Fake News sem serem atropelados pelas Big Techs, como ocorreu aqui. E saí com duas certezas: a primeira é que a regulação de plataformas é inevitável e o debate avança no mundo todo; e a segunda é que, para vencer o lobby pesado dessas que são as empresas mais lucrativas da história do capitalismo, a imprensa de cada país precisa, primeiro, fazer a sua lição de casa. 

Conselhos de Imprensa existem tanto na Austrália quanto no Canadá, os dois únicos países em que os “códigos de barganha” viraram lei – o termo se refere à obrigação de redes sociais, serviços de mensageria e buscas negociarem com jornais e sites uma compensação financeira. 

Tais conselhos são órgãos de autorregulação dos meios e prezam pela liberdade e diversidade da produção noticiosa, sim, mas também oferecem um canal para que o público envie reclamações, seja ouvido e, se cabível, que o dano seja remediado. 

O National News Media Council, do Canadá, é um mecanismo totalmente voluntário: só entra o veículo que quiser. Foi estabelecido em 2015 com dois objetivos: servir de fórum para reclamações contra os seus membros e promover práticas éticas dentro da indústria. O Australian Press Council é mais antigo. Foi estabelecido em 1976 e é responsável por promover práticas e padrões éticos para toda a imprensa, mas também práticas de acesso a informações de interesse público, e por responder a reclamações sobre jornais, revistas e canais digitais australianos. Naquele país, ser membro do Conselho é uma das exigências para que o veículo receba a compensação financeira. 

Muito mais do que servir como uma “caixinha de reclamações”, o que esse tipo de mecanismo faz é permitir uma prática constante de reflexão sobre ética, assim como um espaço democrático e seguro de conversas essenciais para a prática jornalística. No final, são órgãos que garantem que a imprensa seja responsabilizável pelos seus desvios, ampliando assim a confiança do público nos meios e no jornalismo como um todo. 

No Brasil, estamos a léguas de qualquer coisa do tipo. Toda vez que se fala em regular os meios de acordo com o que reza a Constituição, ouvimos uma gritaria que chama todo debate sobre regulação da mídia, ou mesmo qualquer crítica, de censura. 

(Crítica, lembremos, não é a mesma coisa que ataque ou assédio.) 

Nem mesmo um mecanismo de autorregulação, totalmente separado de qualquer influência do Estado, é pauta por aqui. A mensagem que fica é que a imprensa não deve satisfações a ninguém. 

Assim, muitas conversas difíceis sobre o fazer jornalístico simplesmente não acontecem. E eu digo “difíceis” com a maior deferência e admiração pelo trabalho de meus pares. 

Citarei mais uma vez Renato Janine Ribeiro para dizer que jornalismo não é um trabalho fácil. Lidamos com a vida de pessoas, com a responsabilização de homens poderosos e de empresas, com assédio e com vinganças pessoais; temos que tomar decisões éticas a todo momento. E o público percebe isso. As críticas se avolumam e os extremistas e populistas de turno apenas se apoderam dessas críticas para atacar a imprensa como mais um poder corrupto, como se fosse seu próprio espelho. 

Na falta de um mecanismo consistente de crítica de mídia, algumas conversas difíceis têm sido palco de reportagens e projetos aqui na Agência Pública. Por exemplo, depois de muito ponderarmos sobre o conteúdo levantado, decidimos publicar a extensa reportagem sobre o apoio da Folha à ditadura militar. O relato é robusto, traz novidades e poderia resultar em uma conversa mais ampla sobre o papel da imprensa que apoiou a ditadura – e não só a Folha – em um momento em que o fantasma das conversas difíceis não tidas sobre aquele período é um dos maiores esteios do bolsonarismo militarista e autoritário, que manipula as fantasias ditatoriais do brasileiro médio. 

Na última sexta-feira, lançamos uma campanha de financiamento coletivo para fazermos um podcast a respeito das acusações de crimes em série de Samuel Klein, o fundador das Casas Bahia, acusado de violar meninas de até 9 anos usando a sede da empresa, seus carros, seus helicópteros, compensando-as mesquinhamente com eletrodomésticos como liquidificadores e torradeiras. Nossa frustração após dois anos em que o que se ouviu foi um retumbante silêncio da imprensa, de organizações que defendem os direitos de crianças e dos políticos nos levou a decidir fazer, sozinhas, um podcast para que essa história chegue a mais ouvidos. 

Passamos dois anos esperando que o assunto se tornasse uma conversa mais ampla, com seguimento pelos jornais e pela TV. Exceto a Folha – que fez duas reportagens após ter sido questionada pela excelente ombudsman Flávia Lima – e o UOL – que levantou toda a história do seu filho Saul e recentemente publicou uma assustadora reportagem demonstrando que uma das menores que acusaram Samuel chegou a ser presa com sua advogada como retaliação –, nenhum veículo publicou nada. O que pode ser considerado um dos maiores escândalos empresariais da nossa história nem sequer chegou à TV aberta, cujos canais, aliás, sempre foram fartamente financiados pelos anúncios das Casas Bahia. 

E esses são apenas dois exemplos, que uso aqui porque foram abordados nas nossas páginas. Outros, como o caso da Escola Base, a cobertura da Lava Jato, as reportagens que consistentemente transformam civis inocentes em suspeitos de tráfico apenas por serem pretos e viverem em favelas – nada disso é discutido de maneira consistente. 

Por outro lado, em vez de termos um fórum em que esses temas sejam debatidos pelo campo, fortalecendo o que nos une, como jornalistas, ampliando uma articulação mais que necessária neste momento de crise, os meios permanecem encastelados cada um no seu quadrado. É uma estratégia antiquada, cheira a naftalina, como se não estivéssemos no mesmo barco, e esse barco não estivesse afundando. 

Só receberemos o bote salva-vidas se convencermos o público do valor social do jornalismo de interesse público. 

Como conseguiremos vencer um argumento falso, como aquele que inseriu os direitos dos artistas para também receberem compensação das plataformas, no PL das Fake News, como se o papel do jornalismo e dos produtores de cultura não fosse absolutamente diferentes? 

Nada disso aconteceu em outros países onde avançou a lei – e onde existem mecanismos de “pesos e contrapesos” também para a imprensa. 

Se nós, jornalistas, não conseguimos aceitar a responsabilidade de prestar contas à sociedade sobre as consequências de nossa cobertura, como podemos convencer essa mesma sociedade de que merecemos um tratamento diferenciado de plataformas como Google e Facebook? 

Há alguns meses, a consultoria da FehrAdvice, especializada em economia comportamental, fez um estudo demonstrando que usuários preferem ver conteúdos jornalísticos na busca do Google – e que, sem eles, os usuários tendem a deixar a plataforma. Segundo o estudo, feito com usuários da Suíça, o site de buscas deveria pagar o equivalente a 15% das suas receitas com propaganda no país como compensação aos jornais e sites.  

Embora o termo “interesse público” não seja o foco do estudo, por trás dessa descoberta está o que torna o jornalismo diferente de todos os outros setores: sem ele, a sociedade não funciona. E a democracia, certamente, não se segura. 

Talvez, antes de partirmos para mais uma disputa que será vista como apenas financeira, seja hora de reconquistar a fé do público no nosso jornalismo. Mas, para isso, teremos que aprender a ter muitas conversas difíceis sobre nosso papel, nossos erros e nossas responsabilidades para com a sociedade.

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