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Recorde de calor, muito fogo, herança maldita e a maldição da desinformação

Chegada do El Niño torna a Amazônia mais propícia às queimadas, e a máquina de fake news já está pintando e bordando

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7 de julho de 2023
06:00

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Nos últimos dias, duas informações chamaram atenção na cobertura de meio ambiente e clima. A primeira, local, é que a quantidade de focos de fogo no bioma Amazônia no mês de junho foi a maior desde 2007. A segunda, global, é que nos dias 3 e 4 de julho (segunda e terça-feira) a temperatura média do planeta bateu dois recordes consecutivos, alcançando os maiores valores do registro histórico. Nunca antes foi tão quente quanto o início desta semana. E a expectativa é que mais calor e mais fogo vêm aí.

Os dois acontecimentos provavelmente têm um fator em comum: a chegada do El Niño, o fenômeno de aquecimento das águas do Pacífico na região equatorial, que traz como consequência um aumento de temperatura – em um planeta já mais aquecido pelas mudanças climáticas – e uma série de anomalias por várias regiões, como mais seca na Amazônia.

Não à toa, da última vez que tivemos um forte El Niño, entre 2015 e 2016, o mundo também teve recordes de temperatura. O dia que até então guardava o título de mais quente tinha sido 16 de agosto de 2016. E o próprio ano de 2016 é também o mais quente do registro. 

“O início do El Niño aumentará muito a probabilidade de quebra de recordes de temperatura e de mais calor extremo em muitas partes do mundo e no oceano”, disse nesta terça o secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial, Petteri Taalas.

Anos em que o fenômeno se expressa costumam vir também com muito fogo na Amazônia e, apesar de ele ainda estar no início, pode já ter, ao menos em parte, alguma relação com a alta de 20% nos focos observada em junho, na comparação com o mesmo mês do ano passado (3.075 focos agora ante 2.562 em junho de 2022). Mas não só.

Vale sempre lembrar: não é só porque o clima está mais seco que a Amazônia vai pegar mais fogo. Trata-se de uma floresta tropical, portanto, úmida, o que significa que ela só queima em condições propícias, e o primeiro passo para isso é alguém acender o fósforo. 

Já se sabe que, na dinâmica de devastação da Amazônia, o fogo é a última etapa do processo de desmatamento. Primeiro se derrubam as árvores. Esse material vai se acumulando, fica no solo por meses e, quando está bem seco, alguém coloca fogo para acabar de “limpar” o terreno. Aí planta capim, cria um pasto e, voilà, é iniciada a ocupação. 

Então, é preciso ter essa matéria orgânica para queimar. Só que o desmatamento da Amazônia está caindo. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) anunciou nesta quinta-feira, 6, que o corte raso da floresta nos primeiros seis meses deste ano foi o menor desde 2019, segundo os alertas detectados pelo sistema Deter, do Inpe

Foram desmatados no semestre 2.649 km2, queda de 33,6% em relação ao mesmo período do ano passado. É um belo resultado para o começo do governo Lula, principalmente porque o desmatamento vinha em um ritmo de alta quando ele assumiu. Houve uma importante reversão de tendência.

O que explicaria, então, tanto fogo agora?

Opositores do presidente já se animaram, perfis de redes sociais e veículos de extrema direita destacaram a alta, cobrando Lula e a ministra Marina Silva e ironizando as críticas que haviam sido feitas a Bolsonaro nessa arena. Foram imagens de fogo na Amazônia em agosto de 2019 que puseram o ex-presidente na berlinda e no foco de críticas internacionais. Agora seus apoiadores aproveitam as queimadas de junho para também apontar o dedo.

De fato, os dados de junho preocupam. E não só na Amazônia – o Cerrado também está ardendo, e lá o desmatamento está em alta. São prenúncio de que em agosto e setembro, meses secos (é o verão amazônico) que historicamente têm mais fogo, as queimadas podem explodir. Com o El Niño em curso, o prognóstico não é bom e se espera que na coletiva desta quinta o MMA anuncie medidas para conter o problema.

Mas é importante entender o contexto. Voltei a conversar com a pesquisadora Érika Berenguer, da Universidade de Oxford, e uma das maiores especialistas em fogo na Amazônia. Já tinha falado com ela para a edição número 4 desta newsletter, justamente quando o El Niño estava se anunciando, e na ocasião ela tinha dito que “a Amazônia deu muita sorte de não ter tido um El Niño no governo Bolsonaro”.

Porque na gestão passada quase todos os elementos para o fogo acontecer estavam na mesa: muita matéria orgânica no solo (porque o desmatamento estava em alta) e gente riscando o fósforo (como ficou claro no infame Dia do Fogo). E houve de fato muitas queimadas. Em agosto de 2019, por exemplo, foram quase 31 mil focos, a maior quantidade para o mês desde 2010. Em agosto do ano passado, foram mais de 33 mil e, em setembro, mais de 41 mil – também o maior valor para o mês desde 2010.

Mas o clima não estava tão seco. Daí a suposta “sorte”. 

Agora isso está mudando, só que o desmatamento está em baixa. Berenguer me lembrou, porém, que o que queima agora não são somente as árvores derrubadas recentemente – até porque ainda não deu tanto tempo assim para elas secarem. E, entre agosto e dezembro do ano passado, muita árvore foi ao chão. Os alertas do Deter indicaram a derrubada de 4.803 km2, o maior valor desde o início do registro, em 2015, alta de 54% para o período em relação ao ano anterior.

O período eleitoral e pós-eleitoral viu uma aceleração da motosserra. Houve uma corrida diante da expectativa de que a fiscalização poderia voltar a atuar na região com a derrota de Bolsonaro. Todos os meses vieram com dados superiores aos observados nos mesmos meses de 2021. Como, a partir de novembro, o clima começa a ficar úmido, então não tinha como botar fogo no que foi derrubado. Só com esse resultado, já era de esperar que este ano teria muita queimada. 

“É a herança maldita que Bolsonaro deixou”, resume Berenguer. Com o detalhe de um El Niño de brinde para piorar tudo.

Não quer dizer que o governo Lula não precise se mexer para evitar o pior, mas também é preciso entender que o cenário é mais complexo – coisa que uma postagem lacradora no Twitter não vai fazer. Outro detalhe convenientemente ignorado nessas mensagens é que a maior parte das queimadas de junho se deu em áreas com registro no Cadastro Ambiental Rural – ou seja, declaradas como propriedades privadas.

Assim como o próprio aquecimento global, dados de desmatamento e de fogo sempre foram matéria-prima para a máquina de desinformação ambiental que opera no país, impulsionada pela extrema direita e por uma parte do agronegócio, como revelamos em reportagem na semana passada. Os números e dados contam muitas histórias, mas é preciso entender o que eles de fato dizem. E não é negando seu significado que eles simplesmente vão deixar de existir.

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