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O abismo entre ter certeza de que vivemos uma emergência e agir de acordo para contê-la

Países assinam documento que fala em “ação urgente” na Amazônia, mas que não estabelece metas concretas

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11 de agosto de 2023
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

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“Hoje, negar a crise climática é apenas insensatez.” O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se valeu dessa frase nesta quarta-feira (9) ao iniciar um pronunciamento à imprensa após a conclusão da Cúpula da Amazônia. Era o fim de uma reunião de dois dias em Belém (PA) na qual chefes de Estado e ministros de oito países por onde se estende o bioma amazônico buscaram definir ações conjuntas para proteger a floresta e as pessoas que vivem na região.

Foi apenas a quarta vez, desde 1989, que países membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) se encontraram para debater os problemas em comum que enfrentam. E a primeira vez que a cúpula se deu em um contexto extraordinário de compreensão pelos governantes de que a Amazônia está muito perto do colapso e de que o planeta está mergulhado em uma séria emergência climática que só tende a piorar.

Eu e minha colega Anna Beatriz Anjos passamos os últimos cinco dias em Belém acompanhando essas discussões. E logo no primeiro dia ouvimos um diplomata brasileiro afirmar, preocupado, o diagnóstico que vem sendo desenhado já há algum tempo pela ciência: “A situação da Amazônia é dramática”. 

Dita em uma conversa informal – em off, como dizemos no jargão jornalístico –, a frase me chamou atenção. Não porque seu conteúdo seja uma novidade, mas justamente por ser dita assim num bate-papo de corredor. Como se a situação tivesse sido introjetada. Como se de repente se tivesse acordado para a realidade. E agora aquele tipo de reunião de líderes se daria em um contexto diferente de emergência.

Por causa do desmatamento, que já levou 17% da cobertura original da floresta na Pan-Amazônia – 21% se considerarmos só a porção brasileira do bioma –, e das mudanças climáticas, a Amazônia se aproxima do chamado ponto de não retorno. O conceito estima que a partir de uma perda x da vegetação, que hoje se considera ser algo entre 20% e 25%, a floresta comece a perder suas características principais e sua capacidade de prover serviços ambientais como chuva e absorção de gás carbônico, o CO2.

Globalmente, o cenário é estarrecedor. O aquecimento do planeta não é mais projeção para o futuro. Como diz Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, não é preciso olhar gráficos de projeção de temperatura para entender o que está acontecendo – basta abrir a janela. O exemplo mais evidente disso foi o último julho, o mês mais quente do registro histórico para o planeta, com temperatura média já 1,5 ºC superior à média para o período de 1850-1900. No Brasil, o mês também foi o mais quente.

O conhecimento da emergência aparentemente foi absorvido pelos líderes ali presentes, como evidencia a fala de Lula. Se não há negacionismo, o passo seguinte deveria ser agir, né? Mas a resposta a esse contexto não veio à altura da crise climática que os governantes tinham acabado de reconhecer.

A Declaração de Belém, documento assinado pelos oito países membros da OTCA (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela), traz como um dos pilares a “ação urgente” para evitar que a maior floresta tropical do mundo atinja o ponto de não retorno. Mas não estabelece metas concretas para isso. 

Havia a expectativa, por exemplo, de que os países se comprometeriam conjuntamente com uma meta de zerar o desmatamento, o que não ocorreu. Alguns países já têm metas próprias, como o Brasil e a Colômbia, mas houve resistência de países, como a Bolívia, para também se comprometerem. 

A maior decepção, porém, veio da não adoção de nenhum compromisso referente a combustíveis fósseis. É a queima deles, afinal de contas, que mais colabora para o aquecimento global. Mesmo se o desmatamento da Amazônia for zerado em breve, o ponto de não retorno ainda poderá ser alcançado se a temperatura subir demais, causando mudanças climáticas que podem tornar a floresta mais seca e frágil.

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, queria um compromisso no âmbito da OTCA para que se eliminasse a exploração de petróleo na região, o que não foi aceito. O tema é sensível no Brasil, onde está em debate a extração de óleo e gás na foz do Amazonas. 

O projeto de prospecção foi vetado pelo Ibama, mas a Petrobras recorreu. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e políticos locais do Amapá e do Pará – inclusive o governador do estado, Helder Barbalho, que vai ser o anfitrião da Conferência do Clima da ONU em 2025 – são fortes defensores da exploração. Petro cobrou essa incoerência em seu discurso na abertura da cúpula.

“Nesta questão da crise climática, a ciência, o movimento social e a política caminham por caminhos diferentes. Cada vez mais o movimento social se une com a ciência, e cada vez mais a política é aprisionada e acaba na retórica”, disse Petro. Para ele, o interesse no conforto promovido pelos combustíveis encarcera a política. “A política não pode escapar dos interesses econômicos que derivam do chamado capital fóssil.”

No discurso mais forte do evento, o único que pareceu levar em conta a urgência do momento, Petro deu um puxão de orelha coletivo: “É por isso que a ciência se desespera. E o movimento social – que no fundo responde à humanidade – acaba se desesperando e vendo na política uma espécie de muro surdo que não pode agir. É por isso que as COPs [Conferências do Clima da ONU] falham, quando o relógio se move rumo à extinção.”

E seguiu: “Se estamos à beira da extinção da vida, se é nesta década que temos de tomar as decisões e se somos nós, os políticos, que devemos tomá-las, então, o que estamos fazendo?”.

Para o presidente colombiano, ao contrário de políticos de direita, que muitas vezes simplesmente negam que o problema exista, os de esquerda acabam também exercendo um outro tipo de negacionismo ao adiar a decisão, prorrogando o problema sob a justificativa de estarem fazendo um processo de transição.

Vou reproduzir mais um trecho, porque o discurso dele foi muito bom (dá para ler inteiro, em espanhol, aqui). “A direita tem uma saída fácil, que é o negacionismo, negar a ciência. Daí para a irracionalidade, daí para o fascismo, é fácil. Já o fez no século 20. Para os progressistas é muito difícil. Aí gera outro tipo de negacionismo que é, mais ou menos, vamos adiar as decisões.” 

É o caso do petróleo e da floresta, diz. “O que causa a extinção é o uso do petróleo? [Proteger] a floresta nos ajudaria a salvar vidas? O que estamos fazendo? Permitindo que os hidrocarbonetos sejam explorados na selva? Isso não é uma contradição completa? Se a selva produz petróleo, então está matando a humanidade. Em duplo efeito, porque deixa de ser selva, deixa de ser esponja e ao mesmo tempo emite CO2.”

Não é suficiente apenas zerar o desmatamento para salvar a floresta, frisou Petro. “A ciência diz que, mesmo se plantássemos árvores em todo o mundo, não conseguiríamos absorver o que é emitido a cada ano em CO2. A solução é abandonar carvão, petróleo e gás. Mesmo se conseguirmos em algum momento frear o desmatamento, os danos produzidos e acumulados, de qualquer forma, acabariam com a floresta até mesmo por processos naturais, como sua queima devido ao aquecimento global.”

Não poderia ser mais cristalino. As evidências científicas estão todas aí. As ações correspondentes não. Poucas horas depois da fala do presidente, o ministro Silveira apareceu na sala onde a imprensa estava acompanhando o evento para dar uma breve entrevista. Foi metralhado por perguntas sobre o assunto – em uma ação não combinada, mas espantosamente bem coordenada do reportariado.

Em meio a um monte de jornalistas que cobrem meio ambiente e política ambiental, todos mais do que familiarizados com o que diz a ciência sobre o assunto, Alexandre Silveira questionou o consenso científico. Disse não existirem evidências sobre por quanto tempo o planeta ainda pode queimar combustíveis fósseis. Pois é… só que a ciência é bem clara em dizer que já não deveríamos estar iniciando mais nenhum novo investimento nisso. E que deveríamos estar reduzindo as operações existentes.

Meu colega Claudio Angelo, jornalista veterano de ciência e meio ambiente, hoje coordenador de comunicação do Observatório do Clima, comparou o desenrolar da Cúpula da Amazônia com a COP de Copenhague, em 2009, momento em que se imaginava que o mundo fecharia um acordo para conter as mudanças climáticas – o que só ocorreu seis anos depois, no Acordo de Paris.

“Os alcoólicos anônimos dizem que reconhecer o problema é o primeiro passo para resolvê-lo. Só que o sistema multilateral, como está estruturado hoje, é incapaz de dar o passo seguinte”, ele me falou. 

“Em 2009, quase 200 países se reuniram em Copenhague sob um diagnóstico dramático de crise climática e tentaram fechar um acordo multilateral para atacá-la. A percepção na época era que aquela seria a última chance da humanidade de evitar as piores consequências do aquecimento global. O que aconteceu depois? A década após Copenhague registrou o maior aumento de emissões de gases de efeito estufa da história da humanidade”, complementou.

Os países sabem para onde estão rumando, mas não conseguem deixar de ir para lá. Ao menos não na velocidade que seria recomendável.

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