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O apagão que atingiu boa parte do Brasil na manhã desta terça-feira, 15, ainda estava sendo investigado pelo governo federal quando um consultor em energia bastante procurado pela imprensa compartilhou uma reportagem sobre o incidente em uma rede social acompanhada do seguinte comentário:
“O apagão de hoje traz uma lição que já deveria ser entendida pelo governo. A lição é que se queremos dar resiliência ao sistema elétrico e restabelecer mais rápido a energia quando ocorrem acidentes em linhas de transmissão não podemos e não devemos abrir mão de térmicas.”
(Térmicas = termelétricas: usinas de geração de energia elétrica a partir da queima, em geral, de combustíveis fósseis, como carvão mineral e gás natural.)
Não se tinha ideia ainda do que tinha causado a interrupção de energia por todo o país – exceto em Roraima, que não é ligado ao Sistema Interligado Nacional (SIN) –, mas o consultor prosseguiu: “Acidentes em linhas de transmissão, por exemplo, por fatores climáticos têm ocorrido com muita frequência em diversas regiões do mundo. Por isso, nesse momento de transição energética é uma estupidez ficar refém da natureza com a geração eólica e solar.”
O comentário foi reproduzido em alguns sites de notícias e seu autor, Adriano Pires, sócio-fundador e diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura, também deu entrevistas ao longo do dia sobre o assunto. À CNN, naquela noite, disse:
“Nos últimos tempos a gente optou por construir muita linha de transmissão em função de geração eólica e solar no Nordeste para trazer essa energia para o Sudeste, que é onde você tem o grande consumo de energia elétrica. [Foram construídas] linhas de até 3 mil km. E uma linha de 3 mil km, vamos combinar que tem tudo para dar problema. […] para isso teria de ter uma segurança maior, uma inércia no sistema para evitar que, quando se tem um acidente de linha de transmissão, o consumidor não fique tantas horas sem energia elétrica. Esse sistema de transmissão gigante que fez no Brasil, na minha opinião, vai fazer com que a gente tenha mais apagões daqui para frente.”
Difícil de acompanhar o raciocínio, né? Afinal, tudo o que ele estava descrevendo – a diversificação de fontes e as estruturas do sistema de energia interligado – foi planejado justamente para dar mais segurança energética ao país. Até o apresentador do programa na CNN fez cara de interrogação e interrompeu Pires para tentar entender melhor o que é que ele estava querendo dizer com aquilo. Bem, o argumento dele é que esse sistema só seria seguro mesmo se tivesse o que ele chama de redundância, um backup extra que pudesse ser acionado rapidamente se o resto cair.
“Essas linhas de transmissão podem dar mais acidentes daqui para frente, já deram para trás. A gente está vivendo no mundo inteiro grandes mudanças climáticas. Tem incêndios, furacões, tempestades, raios, que afetam linha de transmissão no mundo inteiro. A gente deveria aprender com o evento de hoje e outros eventos no passado é que precisa ter mais segurança e mais inércia no sistema. Se tivesse mais térmicas a gás natural e nucleares, por exemplo, você ficaria com menos tempo apagado”, afirmou Pires.
O raciocínio dele é que o apagão durou mais tempo no Nordeste do que no Sudeste porque lá tem muita geração eólica e solar. “Quando você derruba a geração eólica e solar, pra ela voltar, ela demora, porque eu não tenho vento à minha disposição 24 horas por dia, 365 dias por ano, nem sol. Quando eu tenho uma térmica, eu aperto, vamos dizer, um botãozinho, o combustível entra lá e volta mais rápido.”
Pires não é um especialista em energia. É um dos principais lobistas de termelétricas no Brasil. Seu Centro Brasileiro de Infraestrutura é uma consultoria privada que presta serviços para clientes do setor de óleo e gás. E ele aparece frequentemente no noticiário como se fosse uma fonte isenta. O Intercept fez um levantamento bem interessante sobre como Pires atua, no ano passado.
Não é a primeira vez que uma pane no sistema elétrico é usada como justificativa em defesa das termelétricas. A primeira vez foi com o pai de todos os apagões, o de 2001. Naquela época, mais de 80% da energia elétrica brasileira vinha das hidrelétricas. O país sofria uma grave crise hídrica e o risco de ficarmos sem energia era real. O então presidente Fernando Henrique estabeleceu um racionamento em que a maior parte do Brasil tinha de reduzir o consumo em 20%. Nem jogo de futebol podia ocorrer à noite para poupar luz.
A situação era de fato emergencial, e uma das saídas para o problema foi construir termelétricas. O país não podia ser dependente de uma única fonte de energia, ainda mais uma tão vulnerável às condições climáticas. E as térmicas foram vistas como a alternativa mais rápida e barata.
Na época, as fontes eólica e solar ainda não eram muito consideradas por causa dos altos preços – o que mudou muito com o passar dos anos. Hoje as duas fontes são as mais baratas do país. Mas elas ainda são igualmente tachadas como pouco confiáveis por serem fontes intermitentes. É o papo do “nem sempre tem sol, nem sempre tem vento”.
Em 2021, quando o país voltou a enfrentar uma grave crise hídrica – a mais severa desde o início dos registros de chuva no Brasil –, Pires e companhia retomaram a carga para defender que as térmicas são a solução. O lobby foi tão forte que conseguiu fazer passar um “jabuti” na lei que permitiu a privatização da Eletrobrás impondo a instalação de mais um monte de termelétrica no país. Conto isso no podcast Tempo Quente, que lancei no ano passado.
O caro leitor acostumado à temática desta newsletter já deve ter entendido onde reside a falácia do argumento. Se as mudanças climáticas ameaçam a oferta de água e se elas também podem levar a eventos extremos com potencial de afetar as linhas de transmissão, então nosso sistema elétrico é bastante vulnerável ao clima. Logo, a saída energética não pode ser uma que justamente vai piorar as mudanças climáticas, né?
Não custa lembrar. Gás natural, que alimenta as termelétricas, é combustível fóssil. Sua queima emite gases de efeito estufa, que pioram o aquecimento global.
Outra falácia de Pires é sobre o argumento da vulnerabilidade das linhas de transmissão. O tal “jabuti” da lei da Eletrobrás estabeleceu não só a obrigatoriedade de contratação de 8 gigawatts de térmicas a gás, como definiu onde elas têm de ser instaladas. E muitas estão previstas para lugares remotos do Norte e do Nordeste, longe das fontes de gás. Ou seja, precisaria de uma malha de gasodutos para levar o combustível até as usinas. E, obviamente, de linhas de transmissão para conectá-las ao SIN.
A Frente Nacional dos Consumidores de Energia, entidade que reúne diversas organizações de consumidores para discutir o futuro do setor elétrico brasileiro, divulgou uma nota contestando as declarações.
“Alguns ‘especialistas de plantão’ aproveitaram o acontecido para trabalhar por interesses específicos e plantar informações falsas, com a justificativa de que o desligamento foi causado pela falta de usinas térmicas fósseis na base da geração de energia elétrica. Importante ressaltar que o problema não foi falta de geração”, aponta a carta, assinada por Luiz Eduardo Barata Ferreira, ex-diretor geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
E continua: “A Frente Nacional dos Consumidores de Energia lamenta o oportunismo de alguns, que buscam privilégios e pretendem gerar caos se aproveitando do momento. Manter termelétricas caras e poluentes com a justificativa de proteção do sistema não faz sentido sob o ponto de vista econômico, ambiental e social”.