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Homilias sociais cederam espaço a críticas ideológicas desde 2019, e templo de Aparecida virou "compromisso de campanha"

Reportagem
12 de outubro de 2023
12:30
Este artigo tem mais de 1 ano

Uma multidão vestindo camisas brancas com rosto de candidatos, gritos de “mito” se misturando com os de “Lula” e “Globo lixo” e um nível desconfortável de empurra-empurra. Poucos arriscariam apostar que esta seria a descrição do maior templo católico brasileiro no dia de sua padroeira. Mas foi este o cenário encontrado há um ano em Aparecida (SP), no dia da santa, que teve que aprender a dividir o espaço cativo de devoção com uma idolatria política que se tornou padrão nos quatro anos do governo Bolsonaro.

Entre 2019 e 2022, até mesmo a homilia das 9h – principal pregação do dia da padroeira, que dá o tom da celebração –, pôs a política no centro do debate, alertando contra a corrupção e o uso dos fiéis para ideais ideológicos que contrariam as escrituras. Um caminho bem distinto do caráter social e inclusivo que a mensagem carregava em 2018, por exemplo, quando foi defendida a urgente necessidade de união e equidade, racial e de gênero, contra discriminações. 

No melhor estilo “novos velhos tempos”, neste ano Nossa Senhora Aparecida retomou para si a essência da celebração – que foi muito além da inauguração da imagem que a retrata, com nada módicos 50 metros de altura, desbancando o Cristo Redentor no ranking de maiores esculturas religiosas do país. 

Entre os fiéis, um colorido heterogêneo e muitos tons de branco e azul dominaram o visual padrão no dia, completado por apetrechos para auxiliar nas orações ou a imagem da santa estampada em camisetas – desta vez, sem espaço para números ou sorrisos de candidatos.

Na mensagem do arcebispo Dom Orlando Brandes para a Igreja Católica, o conteúdo voltou a ser de caráter social e de vigilância dos dogmas católicos. A homilia defendeu a Justiça para reduzir desigualdades e promover oportunidades. O recado também focou em um tema caro à igreja: a defesa da vida, não apenas humana. “Nossa Senhora Aparecida é a senhora da vida. Por isso, hoje nós dizemos sim à vida, não ao aborto. Sim à vida. Sim à vida e não ao desmatamento”, defendeu.

“Se houver Justiça, vai diminuir a fome. Se houver Justiça, diminuirá as desigualdades sociais; não haverá tanta exclusão. Se houver justiça, o narcotráfico não vai dominar; e a violência também não. Por quê? Porque é a Justiça que vai vencer todos esses males.” 

Dom Orlando Brandes, arcebispo de Aparecida (SP)
Arcebispo Dom Orlando Brandes na Santa Missa Solene do Santuário Nacional de Aparecida (SP)
Arcebispo Dom Orlando Brandes na Santa Missa Solene do Santuário Nacional de Aparecida (SP)

Relembre os temas das homilias de Aparecida nos últimos anos:

2018 – União e equidade

O pedido era por força e dignidade do povo brasileiro. Os partidos políticos até foram citados, mas como exemplo do “mundo de separação”, num contexto de distanciamento de famílias e casais.

“O nosso Brasil precisa ser reconstruído e nosso povo precisa recuperar a confiança e pedimos a ela que nos ajude a reconstruir e restaurar a força de vida do nosso povo. […] Na ‘Casa da Mãe’ não pode haver a exclusão. A dignidade do negro e do branco é igual, da mulher e do homem. Não pode haver cercas, mas sim pontes.”

João Batista de Almeida, padre reitor da basílica de Aparecida

2019 – Conservadorismo

No primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, com a metáfora de termos que lidar com “dragões” no país, a sequência de recados da igreja para o Poder teve um início controverso, incluindo uma crítica à “direita”, que precisou ser explicada como direcionada a uma ideologia extrema, e não ao governo em si.

“Temos o dragão do tradicionalismo. A direita é violenta, é injusta, estão fuzilando o Papa, o Sínodo, o Concílio Vaticano Segundo. […] Há dragões que atacam de tudo que é lado. Atacam a igreja, atacam as religiões… Esses dragões são as ideologias. Ideologias, eu quero dizer, interesses pessoais, tanto da direita quanto da esquerda. Isso não faz bem. O que faz bem, queridos irmãos e irmãs, é procurar a verdade. A verdade é que liberta. A verdade é que nos dá paz. E a verdade é que nos leva a viver como irmãos e irmãs.” 

Dom Orlando Brandes, arcebispo de Aparecida

2020 – Corrupção

Uma semana antes do dia de Aparecida, Jair Bolsonaro se dirigiu à imprensa: “É um orgulho, uma satisfação que eu tenho dizer para essa imprensa maravilhosa nossa, que eu não quero acabar com a [Operação] Lava Jato, eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo”. A principal missa em homenagem à padroeira do Brasil trouxe uma resposta.

“Quanto à impunidade aqui, com tudo o que aconteceu com a Lava Jato, está claríssimo que está voltando e que deveríamos saudar a Lava Jato porque estávamos vencendo o dragão da corrupção, que não deve voltar. Não somos dignos de sermos escravizados pela corrupção. A repressão foi forte, mas o poder é escravizador e ainda se faz presente num momento como o nosso.” 

Dom Orlando Brandes, arcebispo de Aparecida

2021 – Ódio, armas e fake news

O recado mais direto contra o ideal bolsonarista que partiu da Basílica de Aparecida foi o de 2021. Num contexto de pandemia, o arcebispo foi claro em dizer: “vacina sim, ciência sim”. Ele também fez uma alusão ao slogan do então governo federal para criticar a flexibilização das regras de aquisição de armas de fogo, uma das bandeiras de Bolsonaro.

“Para ser pátria amada não pode ser pátria armada. Para ser pátria amada, seja uma pátria sem ódio. Para ser pátria amada, uma república sem mentira e sem fake news. Pátria amada sem corrupção. E pátria amada com fraternidade. Todos irmãos construindo a grande família brasileira.” 

Dom Orlando Brandes, arcebispo de Aparecida

2022 – Uso da igreja para fins eleitorais

A celebração da padroeira entre o primeiro e o segundo turno das eleições no ano passado foi cercada de mensagens dos religiosos para os políticos. Antes mesmo do dia 12, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) deu o tom citando uma “intensificação da exploração da fé e da religião como caminho para angariar votos”. 

Pela Basílica de Aparecida, Bolsonaro passou acompanhado de ministros e do então candidato ao governo de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Na ocasião, uma intensa disputa entre apoiadores dele e do adversário, Lula, provocaram confusão que demandou intervenção policial. O recado religioso não citava nomes, mas defendeu a participação dos fiéis nas eleições a fim de evitar abstenção na escolha do presidente do país.

“Maria venceu o dragão. Temos muitos dragões que ela vai vencer. […] O dragão, que já foi vencido, a pandemia, mas temos o dragão do ódio, que faz tanto mal, e o dragão da mentira. E a mentira não é de Deus, é do maligno. E o dragão do desemprego, o dragão da fome, o dragão da incredulidade. […] Nós vamos ter que acolher aquele que for eleito com o voto e o poder do povo. Vamos votar. É a democracia que ainda existe. O poder do voto, a soberania do povo. Isso que nós devemos falar e ajudar o povo a votar. Há uma diferença entre buscar a verdade e buscar interesses. É muito diferente a verdade da ideologia. A gente tem que ser muito sincero. Nós temos um compromisso ético com a verdade, com a verdade na política. Mas a política caminha muito pelos caminhos ideológicos, que são de grupos e interesses, às vezes, pessoais. Isso que é importante: distinguir a ideologia e a verdade. Para nós, a verdade é nosso senhor Jesus Cristo e o Evangelho.” 

Dom Orlando Brandes, arcebispo de Aparecida
Edição:
Reprodução Thiago Leon/ Santuário Nacional

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