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Caso ocorreu em Santa Casa no interior de São Paulo, como mostrou reportagem da Pública

Reportagem
6 de outubro de 2023
17:08

Seis anos. Este foi o tempo que Ana* esperou para que a Justiça lhe tirasse um peso das costas. Em 2017, ela foi denunciada por uma médica por ter feito um aborto. A profissional de saúde atendia na emergência de um hospital da Santa Casa de Misericórdia, da região de Araraquara, em São Paulo, onde Ana chegou com hemorragia, depois de ingerir medicação abortiva. O caso já foi tema de reportagem da Agência Pública

Presa dentro do hospital, enquanto ainda sangrava, sentia dores e tinha febre, a jovem passou a responder como ré em um arrastado processo criminal, que teve fim na última terça-feira (3). A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a médica quebrou o sigilo da paciente ao se comunicar com a polícia. O sigilo é um dos princípios fundamentais do Código de Ética Médica. Diz o artigo XI: “O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei.”

Uma vez que a denúncia que resultou no processo criminal foi considerada ilegal, os ministros do STJ decidiram pelo trancamento da ação penal a pedido da Defensoria Pública de São Paulo. O próprio subprocurador-geral da República José Elaeres Marques Teixeira, que representou o Ministério Público no julgamento, pediu o trancamento, com base na “ilicitude da violação médica”. “Deve prevalecer o direito à saúde e à intimidade”, afirmou o subprocurador-geral.

“Um hospital deve ser um centro de acolhimento para a saúde, e assim deve ser o comportamento dos profissionais que o guarnecem”, afirmou o relator do julgamento do Habeas Corpus (HC) 448.260/SP, ministro Antonio Saldanha Palheiro. “A médica que a devia socorrer chama a Polícia Militar”, destacou ele, afirmando que isso “coloca a mulher numa situação de absoluta iniquidade”.

O voto do relator foi acompanhado pelos demais ministros, que ainda decidiram remeter o processo ao Conselho Regional de Medicina (CRM) para que seja avaliada a conduta médica. “Não pode a mulher que procura o atendimento médico ser exposta por aquele que tem o dever de guardar o segredo e o sigilo e não expor a sua intimidade, delatando sua condição a policiais”, afirmou o defensor público Fernando Rodolfo Moris.

A vitória de Ana no STJ ocorre em um momento de expectativa para a retomada do julgamento da ADPF 442, que pede a descriminalização do aborto no Brasil, no Supremo Tribunal Federal. A ministra aposentada Rosa Weber votou a favor da descriminalização, mas o julgamento foi suspenso por um pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso, que assumiu a presidência da Corte. Ainda não há data para a votação.

Como a Pública já revelou com exclusividade, a quebra do sigilo médico é responsável por mais da metade das denúncias de abortamento em São Paulo. Segundo dados do Nudem/SP (Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo), dos 37 casos atendidos no estado, 20 foram iniciados com denúncias de profissionais de saúde, que quebraram o sigilo ético.

“O Ministério Público tem sustentado as denúncias com base na ilicitude da prova, mas, desta vez, pediu o trancamento da ação penal considerando que a prova era ilícita”, comemorou a coordenadora do Nudem/SP, Nalida Coelho Monte. 

No trabalho, de onde acompanhou passo a passo o julgamento por mensagens de WhatsApp das defensoras públicas, Ana também comemorou. “foi um misto tão grande de emoções. Foi alívio, foi uma sensação de que ‘graças a Deus isso acabou’. De poder voltar a ter vida. De devolver a minha dignidade”, explicou Ana, em entrevista à Pública na tarde desta quinta-feira (6).

Foi por causa do processo que Ana quase perdeu a chance de assumir seu cargo como funcionária pública, em março. Ela passou no concurso, mas, quando foi chamada, seu atestado de antecedentes criminais informava que ela respondia a processo na Justiça. A Defensoria Pública entrou em ação e garantiu que a mulher assumisse o posto.“Eu entendi a preocupação deles, que queriam saber qual era o tipo de processo que eu respondia. Mas as defensoras falaram com eles, como leoas, me defendendo, e deu tudo certo”, contou Ana.

A Defensoria tenta também que Ana receba uma indenização por parte do hospital, onde teve prisão decretada ainda na maca. Como a Pública reportou, um juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo chegou a usar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para justificar a quebra de sigilo médico e derrotar Ana no pedido de indenização. O caso segue indefinido para instâncias superiores.

Dos 37 casos atendidos pelo Nudem em São Paulo, pedindo o trancamento das ações penais, a Justiça de São Paulo negou 70%, mantendo o processo contra as mulheres. No STJ, instância superior, a situação muda completamente. Já chegaram aos ministros três desses pedidos de HC. Em dois deles, os ministros formaram sua decisão afirmando que a quebra de sigilo médico torna a prova nula.

Mãe de dois filhos, Ana se viu grávida em um relacionamento abusivo, em que temia por sua segurança e por seus filhos, frutos de relacionamentos anteriores. A gestação estava difícil. Segundo a Defensoria, ela teve de pedir afastamento médico do trabalho, onde ganhava um salário mínimo, três vezes. “Eu tinha um problema de anemia, que causava hemorragia”, disse. 

Ana teve outra gestação depois do aborto. Com medo de sofrer retaliação da médica e do hospital, ela pediu proteção da Defensoria Pública de São Paulo para ter o parto seguro em sua cidade, o que lhe foi garantido. Mas, a cada ida ao hospital, os traumas voltavam. Ela não se esquecia da enfermeira que insitia para que ela confessasse o aborto à polícia. “Confessar. Os policiais também usaram esse termo”, lembra.

Com o processo criminal, a situação também ficou delicada na família de Ana, de formação cristã. Seu pai pagou a fiança, mas ela se sente julgada. Diz que alguns parentes tratam do caso diretamente, mas outros são mais silenciosos. “Mesmo você não falando, sua expressão facial fala por si, entende?”

Como a pena para o crime de aborto é de quatro anos, dificilmente a ré fica presa por muito tempo, desde que pague a fiança. E é nesse ponto que, segundo a defensora Nalida Coelho Monte, que se sente a “condenação moral significativa” dessas mulheres. “O que a gente verificou na pesquisa é que a fiança arbitrada nesses casos é extremamente elevada. Ela é três a quatro vezes maior que o salário que a mulher declara ganhar no momento da prisão. E isso é incomum”, afirma a defensora.

Sobre o julgamento moral, que também leva os profissionais de saúde a fazerem as denúncias quebrando seus próprios códigos de ética, o ministro do STJ Rogério Schietti Cruz, afirmou: “Parece que estamos no tempo em que pessoas eram queimadas em praça pública por seu comportamento.” Para ele, que afirmou que Ana foi vítima de uma sequência de violações, o fato de a denúncia ter partido de outra mulher mostra que “falta, inclusive, sororidade”.

Tudo o que Ana quer agora é, como ela mesmo diz, “voltar a ter vida”. Diz que foram muitas noites de insônia e muitos dias de medo de uma condenação. Vivendo em uma cidade pequena, ela sempre teve o temor de ter sua história revelada e de causar constrangimentos aos filhos.

Edição:

* Nome foi alterado para proteger identidade da entrevistada

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