Em maio de 2021, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) usou suas redes sociais para demonstrar apoio a uma decisão em El Salvador que sempre foi sonhada pelo bolsonarismo no Brasil: a destituição abrupta de magistrados da Suprema Corte salvadorenha, manobra encomendada à época pelo presidente do país, Nayib Bukele, para colocar no lugar juízes aliados a seu plano de governo cada vez mais radical. “Juízes julgam casos, se quiserem ditar políticas que saiam às ruas para se elegerem”, disse o parlamentar nas suas redes. Começava ali uma relação de admiração que Eduardo – assim como a direita latino-americana – nunca escondeu.
Enquanto no Brasil, Jair Bolsonaro (PL) não foi reeleito e enfrentou o rechaço pelo seu reiterado discurso golpista, o mesmo não vale para El Salvador. Bukele, pelo contrário, ampliou o poder com apoio da maioria da população.
Uma prova do que Bukele alcançou aplicando o ‘sonhado plano bolsonarista’ em seu país pôde ser visto no último dia 19 de janeiro, quando uma foto impensável até alguns anos atrás viralizou nas redes sociais de El Salvador: com um amplo sorriso, Bukele é visto compartilhando um aperto de mãos com ninguém menos que o argentino Lionel Messi.
Mais do que um ato protocolar antes de um amistoso entre a seleção salvadorenha e o Inter Miami, clube atual do craque argentino, o encontro funcionou como um ato de propaganda política de Bukele rumo a uma controversa reeleição no pleito marcado para o este domingo, 4 de fevereiro: de olho em vender ao mundo o sucesso de sua brutal política de segurança pública e em rebater quem o acusa de comandar uma ‘ditadura em construção’, Bukele sabia bem que a vinda de estrelas do futebol mundial ajudaria a consolidar a ideia de que, com ele no poder, El Salvador havia se tornado um “novo país”. Isso menos de uma década depois de viver, em 2015, o ano mais sangrento de sua história e de se tornar uma das nações mais violentas do mundo na década de 2010.
Por que isso importa?
- A reportagem mostra como o modelo de segurança pública de Bukele em El Salvador e sua atuação para destituir o Judiciário se tornou um exemplo para bolsonaristas brasileiros, como o próprio Eduardo Bolsonaro.
- Governo é alvo de denúncias de prisões injustas, torturas e execuções; 2% da população adulta do país está presa.
Bukele acumula dados impressionantes que explicam a vaidade: índices de aprovação e de intenções de votos para este ano que orbitam a casa dos 80%, e uma queda vertiginosa dos índices de violência. Tudo isso, atrelado a um estado de exceção que já foi prorrogado nada menos que 22 vezes desde que o Congresso (unicameral) o aprovou pela primeira vez, em março de 2022, impondo toques de recolher e retirando garantias constitucionais em resposta a chacinas atribuídas às principais gangues salvadorenhas.
Ciente do impacto positivo que conquistava a cada nova resposta agressiva ao crime organizado, Bukele fez da “guerra às gangues” o eixo central de seu governo.
Além disso, outras ações “populares” colocaram a pequena e outrora desconhecida El Salvador no mapa: a adoção pioneira do bitcoin como moeda legal, a realização de um concurso Miss Universo ou a própria vinda de Messi.
Bukele seguiu ampliando seu poder até chegar ao controle absoluto das instituições: seus aliados do partido Nuevas Ideas controlam o Legislativo desde 2021 (após eleições marcadas por ataque armado a opositores) e, tão logo tomaram posse na época, tomaram conta do Supremo, como já citado, e também do Ministério Público.
Todas essas mudanças, aprovadas com a anuência da maior parte de uma população sedenta por mano dura (como medidas de tolerância zero ao crime são conhecidas na América Latina), colocaram El Salvador na rota do bolsonarismo. Não à toa, além dos conhecidos elogios feitos por bolsonaristas a Bukele desde 2021, parlamentares que integram a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, liderados pelo mesmo Eduardo Bolsonaro, viajaram a El Salvador no final de 2023 para tomar nota do “modelo Bukele”.
Durante a viagem, que teria custado quase R$ 100 mil ao Legislativo, o grupo visitou até mesmo o Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), uma faraônica megaprisão de segurança máxima vendida orgulhosamente como “a maior cadeia das Américas”, com capacidade para até 40 mil pessoas. Peças-chave do governo Bolsonaro, como o deputado e ex-ministro da Cidadania Osmar Terra (MDB-RS), também articularam a vinda ao Brasil de Gustavo Villatoro, ministro salvadorenho de Justiça e Segurança Pública e braço direito de Bukele nesses assuntos.
No caso de Bukele, o aparelhamento da Justiça nos moldes com que sonhava Bolsonaro foi crucial para viabilizar uma nova jornada eleitoral em 2024. Foram esses mesmos magistrados que, contrariando o que é previsto pela Constituição salvadorenha, autorizaram o mandatário a concorrer de forma consecutiva à reeleição.
Entidades como a Human Rights Watch e os EUA enfatizaram a interpretação de que a reeleição é inconstitucional, mas o cenário de governo sem resistência plausível deve até ser ampliado: pesquisas indicam que o Nuevas Ideas deve ocupar cerca de 57 dos 60 assentos no próximo Congresso. Pelas redes sociais, Bukele pediu que eleitores votem nele e nos deputados de seu partido especificamente para que o controle total dos Poderes e o plano contra o crime sejam mantidos: “Devemos seguir ganhando essa guerra”, disse.
Na América Latina, resposta dura ao crime é sobrevivência política, apontam pesquisadores
A segurança pública se tornou a cartada decisiva para Bukele se perpetuar no poder, algo que se relaciona com a realidade histórica da região. “A violência na América Central tem especificidades próprias: as gangues têm uma história marcada pela migração, pelo autoritarismo e pela diáspora, em sua maioria para os EUA. No começo dos anos 1990, (o então presidente estadunidense) Bill Clinton começa a deportar integrantes de gangues que se formam no ambiente prisional norte-americano, e ocorre uma mudança no panorama do crime organizado em El Salvador: mais de 5 mil pessoas são mandadas de volta, em um país em que as armas ainda eram muito abundantes, pois a guerra civil salvadorenha (iniciada em 1979) havia acabado há pouco, em 1992”, resume Simone da Silva Ribeiro Gomes, professora do departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que pesquisa o contexto da região.
Esse novo ambiente jogou grande parte da população para um cenário à mercê das “pandillas”, como são chamadas as organizações criminosas vinculadas ao narcotráfico por lá, e que passaram a controlar as grandes cidades. Hoje, “estamos falando de um país que foi de ser o mais violento do mundo para o que mais rapidamente reduz a violência armada em índice de homicídios na região”, comenta Gomes.
O cenário anterior criou um terreno fértil para os discursos de “mano dura” – a tal ponto que a adoção dessas medidas pode até mesmo superar os limites do espectro ideológico, argumenta Jonathan D. Rosen, professor de estudos internacionais da New Jersey City University, que pesquisa as relações entre segurança e crime organizado na América Central.
“Vemos candidatos da esquerda à direita adotando estratégias de ‘mão dura’ contra o crime, sobretudo porque pesquisas mostram que cidadãos latino-americanos, de um modo geral, sentem-se inseguros e desejam medidas drásticas para combatê-lo. Isso gera até uma disputa entre políticos que acabam competindo para ver quem aplica o plano de segurança pública com mais dureza”, explica Rosen. Para o pesquisador, nesse contexto ocorre um “Darwinismo punitivo”, uma analogia à teoria da evolução: quem age com mais violência contra o crime tem mais chances de “sobreviver” na política local.
Assim, mesmo estando na mira de entidades de direitos humanos, Bukele mantém uma popularidade elevada enquanto a sensação de segurança cresce, apesar das denúncias de prisões injustas, torturas e mesmo execuções de pessoas sem relação com as pandillas. Hoje, com praticamente 2% da população adulta do país na cadeia — o que colocaria El Salvador entre as maiores taxas de encarceramento per capita do planeta. O próprio Bukele já falou abertamente em negar comida aos detentos –, e observadores citam pelo menos 200 mortes sob custódia do Estado desde o decreto de exceção.
Também há suspeita de que a dimensão dessa melhora nos índices de segurança venha sendo exagerada. Isso porque, enquanto os homicídios caíam, explodiu o número de desaparecimentos não resolvidos, chegando ao número mais alto em 12 anos em 2022, quando o estado de exceção já estava em vigor.
“Organizações de direitos humanos e governos de esquerda contestam isso [os métodos para essa redução], mas a segurança pública é um nó de todos os governos da América Latina. Não é trivial reduzir esses índices desse modo”, afirma Gomes.
O resultado é a pressão por uma “Bukelização”, como já vêm sendo chamadas as tentativas de emular o modelo salvadorenho: recentemente, o novo governo do Equador, que vive um dos maiores picos de violência do continente há alguns anos, falou em endurecer sua repressão à moda do país centro-americano, após a escalada de violência que levou integrantes de um cartel local invadirem uma transmissão ao vivo e ameaçar jornalistas diante do país inteiro. Em postagens do presidente Daniel Noboa (do Equador) sobre o assunto, há respostas defendendo que o país siga o receituário salvadorenho. “Isto é ‘made in Bukele’”, comentou um internauta, em resposta a imagens de presos enfileirados publicadas por Noboa — cena que é uma marca registrada de Bukele desde seus primeiros anos no poder.
E, mesmo com Bukele se tornando um ídolo da direita, até governos à esquerda como Xiomara Castro, em Honduras, já falaram sobre copiar parte de seu modelo. “Ele é um fenômeno à direita e à esquerda”, complementa Gomes. “A julgar pela forma antiquada como as políticas de segurança pública têm sido pautadas nos meios progressistas brasileiros, tanto a direita quanto a esquerda acabam se reduzindo às mesmas soluções temerárias e de curto prazo nesse sentido”, diz a pesquisadora.
Mas a própria natureza de um suposto ‘modelo Bukele’ raramente resolve os problemas de fundo de países inseridos nessa conjuntura, alerta Rosen. “A história mostra que essas políticas são extremamente populares, mas também que não conseguem promover soluções para questões estruturais subjacentes – como corrupção, impunidade e falta de transparência, entre outros”, afirma.
Presidente “cool”, mas contra direitos reprodutivos para mulheres
Antes mesmo de ser conhecido pelo autoritarismo e pela alta popularidade vinda dele, o presidente de El Salvador já era destaque no mundo por ostentar uma marca cada vez mais comum entre políticos que se anunciam antipolítica: ele sempre fez questão de ser desaforado.
Dizendo-se um líder antenado ao mundo atual, Bukele começou a construir essa imagem desde que, quebrando todos os protocolos, viralizou ao tirar uma selfie em seu primeiro discurso na Assembleia-Geral da ONU, em 2019, poucos meses após sua posse. Em sua bio da rede X (antigo Twitter), chegou a se descrever como “o ditador mais cool do mundo”.
Mas, se o branding é moderno, o mesmo não vale para a restrita legislação salvadorenha no que diz respeito aos direitos reprodutivos: Bukele nada fez para mudar a lei do aborto, que em El Salvador penaliza a interrupção da gravidez em todas as circunstâncias desde 1998 — mesmo se a gestação apresentar riscos à saúde, em casos de malformação do feto ou decorrentes de violência sexual. O país ganhou má fama com longas penas por homicídio a jovens mulheres pobres que abortaram de forma espontânea ou clandestinamente após serem estupradas. Algumas foram punidas com 30 anos de prisão.
“Apesar de constatadas o quão draconianas são essas políticas, não há nenhuma frente aberta para discutir o aborto legal e seguro ou uma reversão para políticas mais humanas em relação ao feto anencéfalo e aborto em casos de estupro”, diz Gomes.
A aversão de Bukele a pautas progressistas não é uma novidade. Se após vencer as eleições pela primeira vez o então candidato eleito ainda havia defendido a permissão ao aborto apenas em casos terapêuticos, sua postura recrudesceu dali em diante, em temas como a união homoafetiva e eutanásia. Suas decisões foram respaldadas pela Igreja Católica.