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Jovem teve direito negado depois que Hospital Vila Nova Cachoeirinha deixou de oferecer o serviço, em São Paulo

Reportagem
7 de março de 2024
17:00

Na manhã desta quinta-feira (7), véspera do Dia Internacional da Mulher, no 8 de março, Ana* acordou cedo no centro de acolhimento a gestantes de um hospital em Salvador, a dois mil quilômetros de sua casa, na capital paulista. Às 8h se apresentou aos médicos da unidade onde deverá ficar internada pelos próximos dias. Se tudo correr bem, será o fim de uma angustiante saga que durou semanas. Ela irá se submeter a um procedimento para interromper uma gravidez de gêmeos, fruto de uma violência sexual.

Ana tinha direito ao aborto legal, mas o atendimento foi negado pelas unidades de saúde de São Paulo. Desde que o Hospital Vila Nova Cachoeirinha suspendeu o serviço de aborto legal no fim do ano passado, procedimentos amparados pela lei se tornaram mais difíceis na capital paulista. No caso de Ana, que tinha mais de 22 semanas de gestação, acessar o seu direito virou impossível.

Em São Paulo, apenas o Vila Nova Cachoeirinha fazia a interrupção da gravidez em meninas e mulheres com mais de 20 semanas gestacionais. A prefeitura alega que outras quatro unidades continuam fazendo o aborto legal em qualquer tempo de gestação – o Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mario Degni, Hospital Municipal Tide Setúbal, Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha e Hospital Municipal Dr. Carmino Caricchio. Mas a Agência Pública apurou, com profissionais de saúde e entidades que atuam pelo direito das mulheres, que isso não está ocorrendo.

Por que isso importa?

  • No Brasil, a interrupção da gravidez já é assegurada por lei em casos de violência sexual, anencefalia do feto e risco de vida para a gestante. Mas esse direito nem sempre é garantido. Em São Paulo, depois do fechamento do serviço de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, pacientes com mais de 22 semanas de gestação não conseguem atendimento em hospitais municipais – ao contrário do que alega a prefeitura

O Código Penal não estabelece nenhum limite de idade gestacional nas situações previstas na lei: estupro, risco à vida da gestante ou diagnóstico de anencefalia do feto. No entanto, boa parte das unidades de saúde escolhe não realizar a intervenção em mulheres com mais de 20 semanas de gestação, ou o feto tendo mais de 500 gramas.

A justificativa é que o procedimento seria muito complexo e a gestante poderia correr risco se não estiver em um serviço especializado. Mas, para Juliana Giordano, obstetra e diretora da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, o principal problema é o excesso de tabu sobre o tema. “Tem mais risco que um aborto de 12 semanas, por exemplo, mas menos risco que um parto. O aborto tem menos riscos que um parto em qualquer idade gestacional”, afirma.

Apesar de não haver limite de tempo gestacional na lei ou por recomendação de autoridades como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) tentou estabelecer o prazo de 22 semanas em dezembro do ano passado, mesmo mês em que o serviço do Vila Nova Cachoeirinha foi suspenso. A prefeitura publicou o limite em seu site oficial, mas voltou atrás após ser questionada pela Folha de S.Paulo e retirou o trecho da página. 

Na semana passada, o Ministério da Saúde publicou uma nota técnica dizendo que não deve haver limite temporal para interromper a gravidez nos casos previstos na lei, que são em situações de violência sexual, anencefalia do feto e risco de morte para a gestante. O documento anulava uma norma anterior, do governo Jair Bolsonaro (PL), que estipulava o limite em 21 semanas e seis dias. Mas, um dia depois, o ministério anulou a norma, dizendo que ela não havia passado por “consultoria jurídica”.

O Vila Nova Cachoeirinha era, de longe, o hospital que mais fazia interrupções de gestações amparadas pela lei em São Paulo. Levantamento da Pública mostra que a unidade foi responsável por mais que o dobro de todos os procedimentos feitos pelos outros quatro serviços somados. Os números incluem todos os casos de aborto legal. 

Os dados também revelam que a procura pela unidade vinha crescendo de forma consistente desde 2018, ano em que houve 22 procedimentos. No ano passado, foram 119 – um aumento de mais de 400%.

Infográfico mostra número de abortos legais realizados na última década em SP

Direito negado

Ana é uma mulher de 29 anos, moradora da periferia de São Paulo e que se autodeclara parda. Estudou até o fim do Ensino Médio e trabalha fazendo bicos eventuais em uma loja. Ela foi vítima de um estupro cometido por uma pessoa de seu convívio próximo no ano passado. Quando percebeu que estava grávida, meses depois da violência, não teve dúvidas de que não queria levar a gestação até o fim. 

Pelo fato de a experiência ter sido traumática, ela demorou a se sentir segura para procurar uma unidade de saúde e fazer valer o seu direito ao aborto legal. De acord0 com ativistas que atuam pelos direitos das mulheres, é muito comum que vítimas de violência demorem a procurar ajuda. “Elas foram estupradas e não querem ser lembradas disso. Elas tentam se projetar para fora daquele corpo grávido, que não é o delas. Então, enquanto elas podem, vão adiar o processo de lembrar da violência que sofreram”, afirma Rebeca Mendes, fundadora e diretora do Projeto Vivas, que ajuda mulheres a acessar o direito ao aborto legal.

Ela procurou o Hospital da Mulher, o maior centro especializado em ginecologia da América Latina, e que em 2022 incorporou o antigo Hospital Pérola Byington, referência na realização de abortos legais. Mas seu caso não foi aceito, com a justificativa de que a gestação havia ultrapassado as 20 semanas. A reportagem procurou a Secretaria de Saúde de São Paulo, mas não teve retorno. 

Com o fechamento do Vila Nova Cachoeirinha, Ana ficou sem alternativa. Então recorreu à ONG Projeto Vivas. No começo estava receosa, com medo de que poderia receber mais um “não” ao seu caso. Fez muitas perguntas, até se certificar de que a entidade tinha um trabalho sério. “Desculpe perguntar tanta coisa, é que minha mãe ficou com medo”, disse Ana.

A organização entrou em contato com os três únicos serviços do país que continuam fazendo o procedimento em fase de gestação avançada, localizados em Salvador (BA), Recife (PE) e Uberlândia (MG), de acordo com levantamento da ONG. 

Mas a unidade de Uberlândia só tinha vaga para o fim de março, quando Ana já estaria com mais de 30 semanas de gravidez. A de Recife informou que estava lotada, sem previsão de quando iria abrir novas vagas. Após muitas ligações, eles conseguiram um encaixe no hospital soteropolitano, e a ONG pagou pela sua passagem e hospedagem.

“Eles absorveram parte da demanda do Vila Nova Cachoeirinha e ficaram sobrecarregados”, diz Rebeca Mendes, diretora e fundadora do Vivas, que faz a ponte entre as mulheres e os serviços de saúde. “Elas não recebem sequer uma orientação sobre onde procurar ajuda, quais serviços ainda funcionam. Quem não tem dinheiro para viajar fica numa situação desesperadora”, continua. 

Ana não tinha dinheiro nem tempo para viajar a outro estado. Uma de suas maiores preocupações durante a preparação para a viagem a Salvador era saber quanto tempo teria que se ausentar do trabalho. Ela conseguiu a ajuda financeira pela ONG, mas outras mulheres podem não ter tido a mesma sorte. “Quando o Cachoeirinha fechou, em dezembro, tinha paciente agendada para o dia seguinte. Ninguém avisou elas”, diz Mendes.

O caso de Ana não chegou até a Defensoria Pública de São Paulo, que até agora não recebeu nenhum caso de pessoas que tiveram atendimento negado. “Mas muitas vezes essas mulheres sequer sabem que têm esse direito”, disse Tatiana Campos Bias Fortes, do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres.

Clima de tensão

A Justiça chegou a ordenar que o serviço fosse retomado no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, mas a prefeitura recorreu e obteve uma liminar em segunda instância para manter o serviço fechado. A decisão favorável à prefeitura diz que a suspensão do aborto legal na unidade não é ilegal porque pacientes seriam encaminhados a outros hospitais da cidade – o que não está acontecendo, segundo quem procura o serviço.

A insistência na suspensão do atendimento tem gerado um clima de tensão entre os funcionários da unidade e de outras que ainda fazem aborto legal. Segundo relatos ouvidos pela Pública, há o entendimento de que a alta cúpula da prefeitura não concorda com a interrupção de gestações avançadas por motivos morais. Segundo interlocutores da área de saúde, que não querem se identificar, foi que Secretaria de Saúde teria copiado os prontuários de todas as pacientes que passaram por aborto legal no Vila Nova Cachoeirinha nos últimos anos.

De acordo com a prefeitura, está sendo feito um pente-fino nos casos em busca de possíveis procedimentos que teriam sido realizados fora das previsões da lei. Mas os autos foram enviados com dados pessoais das pacientes, que são sigilosos, sem autorização dos envolvidos nem ordem judicial. “Eles podem procurar qualquer coisinha nos prontuários para alegar que o aborto foi ilegal”, disse um funcionário do Vila Nova Cachoeirinha, que prefere manter sua identidade em sigilo, citando que há medo entre os profissionais de saúde de serem perseguidos por terem feito um atendimento previsto na lei.

Com isso, segundo fontes ouvidas pela reportagem, unidades que fazem aborto legal em São Paulo estariam cobrando apresentação de boletim da ocorrência da paciente que procura atendimento após violência sexual. “Isso é totalmente ilegal. Entendo que pode proteger o profissional de saúde para não ser depois acusado de agir fora da lei, mas a mulher não precisa fazer boletim de ocorrência para acessar o seu direito. É uma forma de intimidação, de dificultar o acesso delas”, afirma Mendes, do Projeto Vivas.

A Pública enviou três e-mails e tentou falar por telefone com a assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde de São Paulo, mas não obteve nenhuma resposta.

No início da tarde desta quinta-feira (7), Ana havia sido atendida pela equipe médica do hospital e aguardava o início do procedimento. Rebeca Mendes, que esteve em contato com ela desde o começo da saga, mandou uma mensagem por WhatsApp perguntando como ela estava se sentindo. “É isso mesmo que eu quero fazer, estou com um pouquinho de medo talvez por estar sem ninguém da família mas vai dar tudo certo”, Ana respondeu.

Edição:

*O nome foi trocado para proteger a identidade da entrevistada

Matheus Pigozzi/Agência Pública

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