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Episódio 4: “Eu queria encontrar um equilíbrio entre a guerra, o trabalho e a vida”

A guerra transforma a vida em diferentes dimensões e se torna uma parte integral da vida das pessoas que a vivem

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2 de julho de 2024
06:00

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No quinto dia, choveu. As primeiras gotas finas nos apanharam quando saíamos do Ministério do Exterior, um bonito prédio de estilo clássico adornado por grandes colunas em estilo grego, ainda protegidas pelas pilhas de sacos de areia que ali foram colocados no começo da tentativa de cerco russo a Kiev em 2022, e por lá ficaram mesmo depois da retirada. Myroslava Iaremkiv, nossa anfitriã do Ukraine Crisis Media Center (UCMC), ouviu um trovão ao longe e estremeceu. “Agora eu odeio esse som. Trovões soam exatamente como bombas caindo ao longe.”  

Myroslava, como a chamávamos, já tinha me contado que da sua janela se acostumara a ver drones russos sendo neutralizados pelo sistema antiaéreo Patriot: a explosão é brilhante, disse, e os pedaços de drones caem do céu como se fossem uma chuva de fogos de artifício. “É bem bonito”, contou. 

É algo que persiste com a guerra, por mais que a linha de frente esteja a centenas de quilômetros de distância. Bombardeios e ataques de drones russos continuam atingindo Kiev, assim como boa parte do território ucraniano, com o objetivo de danificar a rede elétrica – objetivo esse bastante bem-sucedido: depois que saímos do país, os apagões aumentaram, hoje há diversos deles todos os dias na capital. 

A energética Myroslava tem a difícil tarefa de me explicar como o conflito invadiu a sua vida e a de seus amigos. Quando comento, talvez pela segunda ou terceira vez, que a tranquilidade que se respira nas ruas de Kiev me impressiona, ela suspira. “Você diz que Kiev parece tranquila para os estrangeiros, mas tudo o que falo com meus amigos, agora, é sobre a guerra. Não temos mais conversas leves, não jogamos mais papo fora, sobre rapazes ou garotas com quem estamos saindo. Sempre que a gente se vê, falamos sobre a linha de frente, sobre uma nova eleição em um país onde um dos candidatos é pró-Rússia…”, detalha.

É que a guerra significa o fim de um mundo, de uma ordem das coisas que representava a vida normal para todos os ucranianos urbanos, de classe média, como ela. A guerra vai entrando na linguagem das pessoas e vai transformando as conversas mais íntimas, não só pela enxurrada de vocabulário bélico, pelo tanto que se aprende sobre novas armas em produção ou já caindo sobre as suas cabeças, mas pelo peso que as palavras passam a obter no cotidiano. “Muitas pessoas estão fazendo coisas diferentes”, diz Myroslava. “As pessoas constantemente doam para o Exército, sejam óculos ou equipamentos de proteção, sejam drones, até carros e veículos”. 

“Eu atuo na frente de informação, então estou de certa maneira ajudando a batalha”, concluiu. 

Enquanto chovia pouco nas ruas de Kiev, o Rio Grande do Sul era atingido por um dilúvio que mobilizou toda a sociedade brasileira. E eu, que estava bem mais perto do fim do mundo da guerra do que do fim do mundo climático, via que as mobilizações eram parecidas. Nos shopping centers e nas lojas havia pontos de doação de dinheiro para o front. Uma feirinha de artesanato na praça Euromaidan vendia ingressos avisando que 50% da verba levantada seria doada para o Exército. Grupos de jovens se juntaram para fazer crowdfunding para uniformes, capacetes e veículos a serem enviados para o front; escritores e poetas fizeram visitas cotidianas à linha de frente para fazer saraus ou simplesmente levar doações e ajudar a fortalecer o moral das tropas. Uma fundação e um blogueiro ucraniano conseguiram levantar dinheiro suficiente para comprar o primeiro microssatélite da Ucrânia, da empresa finlandesa Icye.   

“Quando um amigo foi para o front, levantamos em 24 horas o dinheiro para comprar toda a sua vestimenta e equipamento de proteção”, ela me conta. Peço para conhecer esse amigo, um dos que, ela explica, atuam como “freelancer” na linha de combate.  

Myroslava me leva para conversar com ele no pátio externo de um bar, ainda sob a luz do dia. Sentamos diante das longas mesas de madeira com bancos marrom-escuros e pedimos um café-tônica para acompanhar a conversa. Igor, que pede para não dizer o sobrenome, é um bonito rapaz de cabelos encaracolados e grandes olhos negros, que faria 29 anos dali a dez dias. Formado em economia e finanças, ele conta que decidiu virar voluntário no front depois de um inverno particularmente sombrio, no final de 2023, quando ele ficou “desesperado”.

“Tive alguns períodos, nos últimos dois anos, em que fiquei meio à parte disso, apenas porque me sentia mentalmente sobrecarregado com tudo isso. Mas você apenas acorda, se senta na cama e pensa: ok, eu deveria… Não posso ficar de fora se tenho planos de viver neste país, se quero ter minha família aqui e se me importo com o que está acontecendo”, diz. “Agora eu tenho uma compreensão clara de como é o Exército. Quando você está sentado em Kiev tomando um café e apenas assistindo às notícias, não é o mesmo que estar nas trincheiras. Se você se senta e lê notícias e toda aquela porcaria, você começa a perder um pouco a fé. E a motivação.”

Igor começou a responder aos anúncios que se espalham por outdoors na cidade, onde se vê soldados altivos, portanto armas de última geração. Diante do problema de conscrição no Exército ucraniano, esses outdoors têm se multiplicado na tentativa de ampliar o número de homens que se voluntariam. Segundo Myroslava, alguns de seus amigos cansaram de esperar o dia em que serão chamados.  

Foi o que fez Igor alistando-se como operador de drone voluntário. Ele decidiu entrar na guerra “passo a passo”.  

“Eu queria encontrar um equilíbrio entre a guerra, o trabalho e a vida”, diz ele.

Como voluntário de uma unidade de drones, ele passa algumas semanas em Kiev, onde mantém seu trabalho em uma empresa que ajuda a buscar investimentos para startups europeias, e depois vai para o front durante uma semana a cada dez dias. Quando conversamos, ele havia retornado da sua segunda missão, na região de Odessa, e preparava-se para viajar de novo para o front dali a alguns dias. Embora não seja o trabalho mais pesado, é um dos mais letais: como é uma tecnologia barata e que pode ser fabricada ali mesmo na Ucrânia, o Exército russo tem alvejado particularmente esses operadores. 

“Chegamos à base, que está a uns 10 ou 20 quilômetros da linha de frente. Acordamos às 4 da manhã, às 6 da manhã estamos nas posições. São turnos de 12 horas. Você pode trabalhar na floresta, ou de um abrigo, um bunker, mas precisa estar escondido, quero dizer, desde que você tenha pelo menos árvores acima de você ou uma rede camuflada, está tudo bem. O problema é que eles te rastreiam, seja porque te veem na posição ou, se você tem conexão com a internet, podem te rastrear e até hackear o seu fone.” 

Segundo ele, o drone FPV é o mais assustador: “É o que pode te matar. Ele pode voar diretamente para sua posição, é o drone que tem uma bomba acoplada a ele, e ele simplesmente voa para onde quer”.

Igor esteve na região de Kharkiv quando a iniciativa russa recrudesceu. Era seu último dia. “Foi o dia mais intenso em termos de explosões, havia bombas aéreas, drones FPV de artilharia atacando, e havia muitas pequenas unidades das forças especiais russas nos vigiando e sabotando”, lembra.

“O medo é constante”, diz. 

Mesmo assim, ele diz que está seguro em seguir como voluntário. Enquanto falamos, Myroslava olha para ele com carinho nos olhos e orgulho. Eu pergunto se ele mudou. “Sim, de maneira geral, como todos mudaram. Ele amadureceu, tornou-se mais maduro e adulto do que costumava ser”, ela responde. Igor concorda, diz que, mesmo quando está de volta à sua vida em Kiev, não consegue mais esquecer o front. “Bem, eu moro em Kiev. Ainda alugo meu apartamento. Eu venho aqui, eu vou ao escritório, eu treino crossfit, encontro meus amigos, vou para o clube noturno. A cada mês temos um destacamento na linha de frente. Normalmente é meio período aqui, meio período ali”, lista. 

“Uma vez que você esteve lá, você não esquece como é estar lá. Não digo que isso me afete de maneira ruim. Apenas se tornou uma integral da minha vida.”

No nosso último dia na capital, Myroslava decide nos levar para conhecer o lugar onde, em algumas semanas, ela e os amigos iriam celebrar os 29 anos de Igor. É um clube underground, sem nome, inspirado em um dos mais celebrados clubes de Berlin, o Berghain. Por causa do toque de recolher, o clube que promovia raves que varavam a noite agora abre as portas nos sábados ao meio-dia e encerra a festa às dez horas em ponto. 

O clube funciona em uma antiga fábrica com tijolo aparente e grandes salões escuros com parca iluminação. Quando chegamos, a fila já estava enorme de um público muito particular: rapazes e mulheres com cabelos coloridos, roupas pretas, sapatos de sola alta, piercings e tatuagens nos braços, nas pernas, nos troncos que estão à mostra. A audiência clubber poderia estar se reunindo diante de qualquer clube europeu, se não fosse tão claro o dia, e se eu não tivesse reparado no estêncil que adornava o muro exterior: “the dance floor is our battle ground”, algo como “a pista de dança é nosso terreno de batalha”. Aqui, as pessoas vêm para tomar MD, uma droga sintética, e esquecer os sinais da guerra. Somos avisadas de que a entrada é seletiva, os clientes têm que estar bem-vestidos para entrar, mas, ao ver duas brasileiras na fila, a hostess sorri e dispara um agradecimento comovido: “Obrigada por terem vindo até aqui”. 

Na entrada, o recepcionista avisa que não há um valor determinado, mas você pode doar o valor que quiser para as Forças Armadas. Todo mundo recebe um carimbo como comprovação que pode circular por ali: 5488, número de um projeto de lei que proibiria qualquer tipo de crime de ódio; ou 9103, outro projeto de lei que garantiria o direito à união civil de pessoas do mesmo sexo.

Lá dentro, seguindo as regras do clube berlinense, é proibido tirar fotos ou gravar vídeos, e a impressão é que estamos de volta a uma era pré-redes sociais, pré-exposição generalizada o tempo todo. As pessoas sentem-se livres. Há mulheres com os seios de fora, homens somente de tanga; alguns usam máscaras de couro e abundam as vestimentas sado-masoquistas. Mas, principalmente, todos dançam. A principal pista fica do lado de fora, sob o sol. Três DJs mulheres mandam o som em uma torre central que sobreolha a pista de concreto lá embaixo. Há colunas de tijolo aparente de diferentes níveis onde mulheres seminuas, bonitas como modelos, dançam de olhos fechados em transe. O local tem um quê de anfiteatro, onde escadas levam a um pátio externo, uma espécie de museu de esculturas de concreto. Há dois bares onde se vendem bebidas alcoólicas, mas a maior parte dos presentes se agarra às drogas sintéticas e às garrafinhas de água que podem ser preenchidas com água filtrada nas muitas torneiras. Lá dentro, no labiríntico prédio, há uma gaiola que balança de um lado para o outro e onde meia dúzia de pessoas deita-se sobre um sofá; parece que há dark rooms. Mas não é uma balada de pegação, não é isso que atrai toda essa gente. É uma balada de libertação.

“Aqui vêm muitos oficiais graduados do Exército que são gays e só se sentem à vontade porque não é permitido câmeras”, diz a Myroslava. Depois, ela me aponta um político conhecido, que está se esbaldando em cima de uma das colunas de tijolo aparente. Dançamos durante duas horas até ter que deixar o local para organizar nossa partida. Na saída, vejo um rapaz de cabelos negros, curtos, com uma camiseta: “anti-russian social club”. 

A guerra é o extremo da polarização. É a lenta e gradual transformação do inimigo em subumano, em algo que se deseja ver morto. Mais do que as noites maldormidas, é talvez a constatação de que a vida de cada um de seus entes queridos não mais lhe pertence que leva a essa compreensão terrível do mundo. 

Ao longo de todos os dez dias em que estive na Ucrânia, nenhum momento me pareceu tão brutal quanto a última noite, quando pela primeira vez o alarme soou – e era pra valer. Era por volta das duas da madrugada, e eu, ainda cheia de sono, pude ver no aplicativo que o mapa estava aceso apenas para as regiões de Chernihiv, que faz fronteira com a Bielorrússia ao norte, e Kiev. Desci mais uma vez para o corredor que era chamado de abrigo antiaéreo do nosso hotel e encontrei a María Jimena e a Carolina Martins, repórter do Estadão. Todas decidimos descer porque, já tarde da noite, Myroslava nos avisou pelo WhatsApp que um dos canais de Telegram mais populares – de uma fonte anônima, mas que todos garantem ter acesso à inteligência russa – avisava que haveria um alarme que deveria ser levado a sério. Bombardeiros soviéticos Tu-95 haviam decolado e deveriam atingir a Ucrânia durante a madrugada. “Por favor, deve haver um alarme, não ignorem esse”, escreveu Myroslava. 

Dessa vez, diferentemente de todas as outras, o aplicativo acendia a cada tantos minutos, dando atualizações sobre o roteiro dos mísseis teleguiados que se dirigiam para nós. “Míssil vindo de Chernihiv na direção de Kiev”, dizia o primeiro.  

Poucos minutos depois, outra mensagem: “míssil segue avançando em direção a Kiev”. As notícias começam a pipocar também no Twitter: há um enorme bombardeio russo em todo o território ucraniano; um ataque como havia tempos não se via. Penso que por mais que a chance seja pouca de um maldito míssil atingir um único prédio no centro de Kiev, e que esse prédio seja o nosso e desabe sobre nossas cabeças, não há outra maneira de lidar com a arbitrariedade da morte em uma guerra que alveja civis do que o ódio profundo. “Se você ouvir o barulho de uma bomba durante a madrugada”, me ensinou Myroslava, “é um bom sinal, porque caiu em outro lugar. Se ela caísse sobre sua casa, você não ouviria nada”. 

Depois de cerca de 25 minutos, a luz da tela do celular brilha para avisar que o míssil mudou de direção. “Míssil saindo da região de Kiev em direção a Khmelnytsky”. Um alívio imediato, seguido da percepção horripilante de que, naquele momento, milhões de ucranianos estavam olhando aquele mesmo aplicativo, acompanhando em tempo real o trajeto de um míssil que poderia cair sobre suas cabeças. 

Afinal, o míssil foi interceptado pela Força Aérea ucraniana sobre a região de Khmelnytsky. Segundo comunicado da Força Aérea, um total de 12 mísseis e 31 drones foi destruído naquela noite em partes do sul, centro, oeste e leste da Ucrânia. A Força Aérea polonesa enviou jatos para a fronteira, caso os ataques cruzassem o espaço aéreo. 

Talvez pela movimentação polonesa, talvez pela persistência honrosa de Myroslava e Igor, talvez porque a Rússia não vai desistir; ao entrar no trem na manhã seguinte, dia 27, imperturbado pelos mísseis que cruzaram os céus na noite anterior, tive a triste a sensação de que eu assisti apenas ao começo.

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