Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Antes que seja tarde, enviada às quintas-feiras, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.
Talvez o caro leitor já esteja um pouco sufocado com tanta notícia sobre fogo, mas não tem como falar de outro assunto nesta semana. Os focos de queimadas estão por todo lado: do Pantanal ao Cerrado, da Amazônia ao interior de São Paulo. Botaram fogo até no agro.
(E até o agro agora diz que quer aprovar leis para tornar a punição a crimes de incêndio mais severa no Brasil. Só queria saber se a lei poderia ser retroativa para punir os criminosos por trás do fatídico Dia do Fogo, de agosto de 2019, quando se suspeita que fazendeiros de Novo Progresso (PA) tenham se mobilizado para promover uma grande queima coordenada. Até hoje ninguém foi punido, conforme reportagem da Agência Pública. Aliás, podiam aproveitar e também enterrar um monte de outros projetos que tentam flexibilizar as leis ambientais, né? Mas desconfio que isso não esteja nas prioridades do setor.)
Mais do que punição ou combate, no entanto, queria discutir neste espaço a necessidade de prevenção. Porque, depois que o fogo foge ao controle, apagá-lo não só é mais difícil, como muito mais custoso – podendo, inclusive, custar vidas, como a do brigadista Uellinton Lopes dos Santos, de 39 anos, que morreu enquanto combatia incêndios florestais na Terra Indígena Capoto/Jarina, em São José do Xingu (MT).
Focando especificamente na Amazônia, o dilema que se coloca é que talvez a forma mais óbvia de prevenção de fato foi adotada: o governo federal conseguiu reduzir o desmatamento. Mas ainda assim, como sabemos, as queimadas não estão dando trégua. Em julho, o bioma alcançou o maior número de queimadas desde 2005 e, agora em agosto, os focos já são 65% superiores aos do mesmo mês do ano passado.
Não é a primeira vez que os dois danos ambientais se descolam. Em 2007 e 2010, anos em que o desmatamento estava em queda, as queimadas também subiram, atingindo níveis até maiores que os atuais. Assim como agora, foram anos de muita seca. O caso de 2010 chama ainda mais atenção porque a taxa anual de desmatamento na ocasião estava até mais baixa que agora e ainda assim a floresta queimou demais da conta.
São comparações importantes, mas que não servem exatamente como um alívio para o momento atual porque temos de levar em conta o longo processo de degradação da floresta, que tem ficado mais frágil, mais inflamável, e sob risco, como o corpo humano, de sofrer uma falência múltipla dos órgãos. Ela pode, simplesmente, não suportar mais tantas agressões e atingir o chamado ponto de não retorno.
No episódio desta semana do nosso novo podcast aqui na Pública, o Bom Dia, Fim do Mundo (aliás, se você não conhece ainda, corre lá assim que terminar de me ler aqui!), a gente discute quais são os desafios que estão postos. Mas quero me aprofundar um pouco mais neles nesta newsletter porque a realidade é complexa e exige uma mudança de estratégia.
Recorri mais uma vez à ecóloga Erika Berenguer, pesquisadora da Universidade de Oxford e da Rede Amazônia Sustentável, e uma das maiores especialistas em fogo na Amazônia, para questionar: se derrubar o desmatamento não tem sido suficiente para evitar o fogo na floresta, está na hora de pensar em novas estratégias?
Para resumir: sim! Segundo ela, não se pode mais pensar no fogo apenas como uma consequência do desmatamento, mas como um problema específico que precisa ser encarado diretamente.
Antes de detalhar o que Erika quis dizer, vou reproduzir aqui uma aulinha que ela deu sobre como o fogo ocorre em uma floresta tropical úmida como a Amazônia. Assim todo mundo fica na mesma página.
“O fogo, para ocorrer, depende de duas coisas: de fonte de ignição – ou seja, de alguém botando fogo – e da paisagem estar inflamável. Se a floresta estiver super úmida, você pode botar fogo quantas vezes quiser que o fogo não vai conseguir se alastrar. Agora, com uma paisagem muito seca, o fogo consegue se propagar”, explica.
Esse é o cenário climático do momento. Pelo segundo ano consecutivo, a Amazônia tem enfrentado uma estiagem severa. E as temperaturas estão tão altas que a umidade da floresta está evaporando.
Erika continua: “No PPCDAM, que é o Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento da Amazônia, o governo tem lidado com fogo pela perspectiva das fontes de ignição ao considerar que o fogo está diretamente relacionado ao desmatamento. A lógica é que, quanto mais desmatamento a gente tem, mais [o desmatador] precisa ‘limpar’ aquela biomassa que foi derrubada e com isso haveria mais fontes de ignição na paisagem. De modo que, diminuindo essas fontes de ignição, haveria menos fogo entrando para dentro de florestas e criando os incêndios florestais”.
A pesquisadora ressalta que o pensamento da política pública está correto, mas que, no contexto das mudanças climáticas, que necessariamente deixam a paisagem mais seca, é preciso ir além.
“Mesmo com poucas fontes de ignição [reduzidas pela queda do desmatamento], a gente vê o fogo escapando para dentro de áreas de floresta porque está muito, muito, muito seco” – um reflexo do El Niño turbinado pelas mudanças climáticas.
(Mais um parêntese importante para melhorar a compreensão. Quando se fala que a Amazônia está pegando fogo, muita coisa pode estar acontecendo no chão. Pode ser a queima das árvores derrubadas. Pode ser um uso agropecuário, de queima de uma pastagem. E pode ser que a floresta esteja ardendo. Vistas de cima, as chamas de um tipo ou de outro podem parecer tudo meio igual, mas, com imagem de satélite e equipamentos que distinguem o calor das chamas, dá para diferenciar bem.
Essa plataforma da Nasa, que mostra os focos registrados nos últimos três meses, deixa isso bem claro: em vermelho, o fogo de desmatamento; em azul, fogo de pastagem; em amarelo, fogo de roçado; em verde, incêndio florestal. Repare que as “limpezas” de pasto e de roçado são maioria, mas há bastante incêndio florestal ao sul da Amazônia.)
Erika tem atuado como um Grilo Falante, alertando para esse risco desde o começo do ano passado. Em uma das minhas primeiras newsletters, eu contei que ela e um grupo de pesquisadores tinham enviado uma carta ao governo federal, que preparava naquele momento uma revisão do PPCDAm – paralisado nos anos Bolsonaro –, pedindo que fosse dada a devida atenção ao processo de degradação da Amazônia.
Se o desmatamento é a destruição da floresta de uma vez só, colocada abaixo por motosserras e correntões, a degradação é um dano mais lento, provocado pela extração de madeira e pelo fogo, que leva a uma perda da qualidade dessa floresta. Ela sofre uma redução da sua capacidade de absorver carbono da atmosfera ou de gerar umidade. Mais fraca, pode mesmo morrer diante de uma nova ocorrência de fogo, por exemplo.
Segundo os pesquisadores, a degradação já é maior do que o desmatamento. Ou seja, mesmo a Amazônia que permanece em pé tem uma parcela importante que já não funciona como deveria.
A preocupação quando eles enviaram a carta, em abril de 2023, era justamente com as queimadas que já estimavam que viriam com força na segunda metade do ano porque já se sabia que um El Niño estava se formando. Eles não podiam estar com mais razão.
Erika comparou o quadro atual com os anos Bolsonaro, que tiveram altas taxas de desmatamento e também uma grande quantidade de fogo, mas talvez não proporcional ao tanto que foi derrubado. “Passou-se dos 10 mil km2 sendo desmatados anualmente, que era uma marca que a gente não atingia desde 2008, mas ainda assim teve menos fogo escapando para a floresta, porque foram anos de La Niña [fenômeno que, ao contrário do El Niño, leva mais chuva para a Amazônia], que durou três anos do governo Bolsonaro.”
No ano passado, na época da carta, ela chegou a brincar que a Amazônia teve alguma sorte nos anos do ex-presidente justamente porque, se tivesse ocorrido naquele período um El Niño, o estrago teria sido infinitamente maior. Lula deu esse azar.
“Agora estamos no segundo ano de seca extrema [como reflexo ainda do El Niño do ano passado combinado com as mudanças climáticas]. Então, por mais que o desmatamento tenha caído muito, está com tanto fogo porque a paisagem está muito quente, mais inflamável. É preciso que o governo lide com o fogo como um problema específico, e não apenas como uma consequência do desmatamento”, diz a pesquisadora.
É o caso, por exemplo, de atentar bem mais para o uso agropecuário do fogo, que acabou ficando sem muita atenção e voltou a correr solto. Mas não só.
“A gente precisa de planos de prevenção aos incêndios florestais. Eu não estou falando só das fontes de ignição, seja em áreas desmatadas, seja para manejo do pasto, seja para roçado. A gente precisa encarar o problema do fogo como um problema do século 21, um problema do Antropoceno, uma consequência das mudanças climáticas. A gente não pode mais usar políticas que deram certo no início dos anos 2000, porque o clima já não é mais como era antigamente”, complementa.
Para finalizar esta news, que já parece mais um “saiba tudo sobre o fogo”, queria recomendar uma entrevista que publicamos nesta terça com o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho. Ele reconheceu os desafios e disse que os criminosos, diante do maior controle do desmatamento, têm se valido mais do fogo para degradar a floresta a ponto de, posteriormente, ser mais fácil desmatar e colocar gado. Botar fogo, diz ele, é mais barato do que desmatar. E também mais difícil de fiscalizar. Recomendo muito a leitura.