Buscar

Uso de armas e discursos violentos se tornaram algo comum na vida política da região

Reportagem
8 de outubro de 2024
14:21

“Se houver covardia, vai ser três vezes pior! Vou meter o [Batalhão de] Choque, o Bope e o Bac”, vocifera um homem branco ao microfone sem fio, trajando um colete balístico sobre sua blusa polo alva, enquanto caminha ao lado de um caveirão da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ).

“É aqui, ó, o caveirão aqui! Não tem história irmão: se vier, vai tomar no…”, prossegue ele, ao passo que o blindado roda lentamente pelo bairro Jardim Leal, em Duque de Caxias, o principal município da Baixada Fluminense. O homem ao microfone é ninguém menos que Marcelo Dino, o deputado estadual e então candidato a vice-prefeito da cidade pelo União Brasil, em dupla com o político Celso de Alba. Eles não foram eleitos.

Ao microfone o então candidato a vice-prefeito de Duque de Caxias, Marcelo Dino (União Brasil)
Ao microfone o então candidato a vice-prefeito de Duque de Caxias, Marcelo Dino (União Brasil)

A cena foi filmada por moradores no dia 26 de setembro deste ano, a poucos dias das eleições municipais, e faz parte da bravata do político contra traficantes que, supostamente, estariam tentando impedi-lo de realizar sua campanha em determinadas favelas de Duque de Caxias. Antes de estar envolvido com a política, Marcelo já era policial militar, situação cada vez mais comum no Brasil: nestas eleições, ao menos 6,6 mil candidatos são militares ou ligados a forças de segurança. A reportagem procurou o candidato, que não respondeu.

Violência é tradição na política da Baixada

O uso de armas ou a instrumentalização do aparato policial para construir sua imagem política é uma tradição da política da Baixada. Segundo José Cláudio Alves, sociólogo e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), esse fazer político ligado ao belicismo tem uma história que vem lá da década de 1930, com o Tenório Cavalcanti, deputado federal da região que andava pelos bairros com uma metralhadora à qual apelidou carinhosamente de Lurdinha. Soma-se a isso o aumento dos conflitos por terras durante a década de 1950 e o recrudescimento da repressão na ditadura militar e você tem um cenário no qual a arma se torna um artefato basilar da política na Baixada, conforme explica o pesquisador.

Por que isso importa?

  • Desde 1988, os municípios da Baixada Flumimense registraram 89 assassinatos ou tentativas contra políticos e pessoas que trabalham com política, como jornalistas, blogueiros e assessores.

“Ter armas e dominar essa dinâmica violenta que a arma possibilita a imposição de vontade, de resolução de conflitos, de participar de confrontos, isso tudo começa a projetar, a ser como uma espécie de credencial para essas pessoas construírem trajetórias políticas. Hoje essas figuras se lançam candidatos, se projetam com essa plataforma do ‘bandido bom é bandido morto’, do ‘vamos armar a população’, que estabelece violência para enfrentar a violência, como se isso fosse possível, como se de fato resolvesse alguma coisa”, conclui.

Houve um total de 89 casos de assassinato ou atentado a políticos entre 1988 e o primeiro semestre de 2024 na Baixada, segundo um levantamento que a Agência Pública fez a partir de uma base de dados do pesquisador Huri Paz, do Afro-Cebap, e outra do Instituto Fogo Cruzado. Algumas dessas histórias mostram como o próprio porte de arma dos políticos da região gera maior insegurança na região e dita o tom das campanhas eleitorais.

A coronhada que custou caro

Às vezes, o político morre por consequência da sua própria arma. Nelson Gomes de Souza, vulgo Nelson Lilinho, tinha 52 anos quando, em 16 de dezembro de 2015, foi morto na rua Tancredo Neves, no bairro Tomazinho, em São João do Meriti (RJ), após um conflito iniciado por ele mesmo.

Segundo o processo relativo ao crime, a situação começou por volta do meio-dia, quando ele, ex-vereador do município pelo Partido Social Cristão (PSC), secretário e policial militar reformado, parou seu Saveiro branco no meio de uma curva da rua ao notar seu amigo que fora da Polícia Civil Francisco José Costa Machado na frente de seu estabelecimento, o “Lava Jato do Chiquinho”.

O carro parado atrapalhou o trânsito, obstruindo o caminho do ônibus dirigido pelo guarda municipal José Carlos Luiz da França, que, segundo consta em seu interrogatório, atuava como agente de trânsito havia três anos. Naquela manhã, França dirigia o transporte da prefeitura, com crianças das escolas de todo o município. O guarda então começou a buzinar e tirar fotos do Saveiro, o que instigou uma discussão entre ele, que gritava de dentro do ônibus, e Lilinho, que decidiu pôr o cabelo curto e o bigode grosso para fora do carro a fim de se justificar melhor. 

A porta do motorista ficou aberta e, conforme os testemunhos coletados pelos policiais, enquanto os dois debatiam, chegou um terceiro veículo: uma moto CG vermelha 2014 com dois ocupantes, pega de surpresa pela obstrução da via. Ela colidiu contra a porta do carro, fazendo com que caísse. O condutor da moto, Rodrigo de Siqueira Moura, preocupava-se em levantar a motocicleta e checar o estado do veículo enquanto Alexandre Magno de Aquino Sampaio, o garupa, armava uma discussão com Lilinho.

Foi então que o motorista do Saveiro irritou-se e puxou uma pistola calibre 40. Os motoqueiros saíram. O político permaneceu junto ao dono do lava-jato e o guarda municipal discutindo o que havia acabado de acontecer. Machado, preocupado, aconselhou-o a ir embora, pois acreditava que os dois voltariam armados para vingar-se da humilhação. Dito e feito. Um Kadett azul-marinho surgiu pela rua, dele saiu o garupa da moto, que teria disparado contra Lilinho, ferido fatalmente com dois tiros no rosto e um nas costas. As crianças que estavam no ônibus se assustaram ao ouvir o estampido da pistola.

A família do condutor da moto ligou para a Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense e explicou que o rapaz estava disposto a se entregar desde que descobriu que estaria envolvido com o assassinato do ex-vereador. Todavia, tenha colaborado com a Justiça e explicado não ter conhecimento do que seu amigo pretendia fazer, foi condenado e preso, enquanto o garupa permaneceu foragido até 2017, quando foi preso em Minas Gerais em decorrência da divulgação de seu rosto no portal de procurados.

A arma que sumiu

Outras vezes, a posse de arma não impede alguém de ser executado por opositores. Assessor parlamentar na prefeitura de Queimados, também na Baixada Fluminense, Clayton Damaceno Pereira (sem partido) passara parte do ano de 2023 iniciando sua pré-campanha para vereador do município, mirando a eleição de 2024. Ao seu lado nas investidas por comunidades e bairros da cidade, Paula Ribeiro Menezes Costa atuava como sua coordenadora de campanha. 

Segundo todas as testemunhas próximas a ele ouvidas pela polícia, Clayton era muito bem quisto pelos bairros em que passava. Homem alto, de porte atlético, o político atuava também como empresário do ramo de roupas na Uruguaiana, o principal camelódromo do centro da cidade do Rio de Janeiro. Contudo, a extensão de suas boas relações e a facilidade de trânsito mesmo pelas regiões mais tensas da cidade levantavam suspeitas entre a população local. 

No inquérito da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense, consta o relato de Eric, sobrinho de Clayton, que explica que a região do bairro Inconfidência tinha a fama de ser influenciada por uma milícia e que milicianos buzinavam para seu tio quando o viram caminhando pela rua. Todavia, embora as suspeitas fossem fortes e vivessem na boca do povo, o suposto envolvimento nunca fora oficialmente reconhecido pela Justiça ou por ele mesmo, que, em vida, sempre negara.

Sua trajetória findou-se no dia 28 de outubro de 2023, quando, ao passar parte da noite conversando com sua coordenadora de campanha, amigos e familiares numa loja de açaí no bairro Inconfidência, onde morava com sua esposa e filha de 10 anos de idade, foi executado por dois atiradores que pularam de motocicletas. Nos laudos cadavéricos do político e da sua coordenadora constam, respectivamente, como causa da morte: “ferimentos transfixantes de tórax e abdome com lesões em pulmão esquerdo, coração, fígado e baço” e “ferimento penetrante de crânio com lesão encefálica”. 

Cruzando relatos de testemunhas com imagens de câmeras, a polícia concluiu que a autoria do crime seria de três rapazes com passagem por envolvimento com tráfico: Cleiton “Binho” Alves Francisco, Anderson “Parazinho” Correia Ramos e Lucas “Monstrinho” de Souza Ignacio. A motivação, segundo a Justiça, seria que eles teriam agido em nome da facção Comando Vermelho em retaliação ao suposto envolvimento de Clayton com milícias.

Assim que os motoqueiros e os executores saíram em disparada, um sobrinho de Clayton, que estava na casa de sua tia ali perto, voltou correndo para a loja de açaí. Ele encontrou o tio perto de morrer, sangrando no chão. Sabendo que ele costumava carregar consigo uma pistola em coldre, vasculhou a cintura dele e retirou de lá a arma, levando-a para casa de seu agora falecido tio. Essa situação foi toda relatada aos policiais que tomaram o depoimento.

Ao fim, a arma do político assassinado, que não chegou a ser usada para defesa durante o ataque devido ao fator surpresa, sumiu. “Indagado acerca do destino da arma, o depoente disse que a levou para a casa de seu tio e que, chegando lá, alguém a tirou de suas mãos, mas que não se recorda quem foi.” 

Atirar é como cantar

Há ainda vezes em que a arma é um objeto tão comum para os políticos que eles já estão preparados para trocar chumbo para tentar salvar a sua vida. André Luís de Oliveira Cristino, vulgo Andrezinho do Japeri, estava na última semana de sua primeira campanha pelo Partido Republicano Progressista (PRP) para prefeito de sua terra natal na Baixada Fluminense, quando sofreu uma emboscada quase fatal. 

À época com 39 anos de idade, Andrezinho tinha vasta experiência na PMERJ: ele já tinha vivido um cadinho de tudo, tendo sido atirador de ponta do Exército pelos cinco anos em que serviu; policial do 14º Batalhão, por onde trabalhou no Complexo Prisional de Gericinó; membro do Batalhão de Operações Especiais (Bope); dono de empresa de rastreamento de veículos e pessoas sequestradas; e segurança do político e empresário Benedito Amorim, que fora prefeito de Itaguaí, cidade contígua a Japeri, entre 1993 e 1996.

Embora legalmente um policial não possa trabalhar como segurança privado em seu horário de folga, Andrezinho iniciou seu aprendizado sobre política ao acompanhar a campanha de Benedito: “Acho que quase 100% [naquela época] fazia segurança. O custo de vida de um policial militar é alto. Não pode morar em qualquer lugar, entendeu? Ele tem que andar de carro. Hoje em dia, tá mais alto, [pois] o policial hoje militar tem que andar de carro blindado”, justifica.

Seu desempenho como segurança chamava atenção de Benedito, pois se diferenciava dos outros graças ao treinamento que recebeu do Exército e do Bope. Segundo ele mesmo descreve, o político ficava impressionado com a frieza e o profissionalismo dele, sempre com a arma em mãos, observando qualquer variante no meio urbano, preparado para um ataque-surpresa em potencial. Sua vida, nessa época, envolvia pouco sono e muita tensão. 

“Tiro é dom. É igual cantar. O cara tem a voz boa, ele só precisa ouvir para aprender as notas, né? Ele já canta [naturalmente]”, explica.

O dito dom facilitou sua vida e fez com que sua progressão de carreira dentro da polícia fosse simples e mais ágil do que para outros colegas que almejavam alcançar o panteão de soldados do Bope. Isso, por sua vez, ajudava-o a conseguir bicos externos, afinal, a fama de policial desse batalhão sobressai no cenário da segurança privada e até mesmo no mercado de palestras. 

E foi também o tal dom, em sua avaliação, o que o salvou na madrugada de 23 de setembro de 2016. Ele havia recebido uma carta de intimidação para abandonar a campanha política poucos dias antes, quando, naquela noite, acompanhado de seu motorista, na casa dos 40 anos de idade, e do profissional de colagem de adesivos de campanha, cuja idade, conforme lembra, não passava dos 20 anos, Andrezinho pretendia parar numa lanchonete para pagar a comida deí seus dois funcionários e comemorar o fim do longo expediente daquela sexta-feira. Estavam os três dentro da Pajero blindada, com o automóvel parado na rua Santo Antônio, próximo do largo da Chacrinha, a postos para dar ré e seguir para o estabelecimento que visavam quando um Honda City parou à frente e dele saíram quatro rapazes que passaram a atirar contra.

Andrezinho sempre carregava consigo uma espingarda, escondida no interior do carro. Ele abriu o vidro do passageiro e por uma pequena fresta passou o cano da arma e desferiu dois tiros, percebendo que talvez fosse melhor trocar para uma arma mais apropriada para média-longa distância. Guardou a arma de calibre alto e pegou uma pistola, tornando a atirar pelo mesmo feixe de janela. A troca de tiros durou poucos minutos. O silêncio no carro indicava o nervosismo de seus companheiros, tensos com os ribombos de pólvora. O segurança notou que os rivais haviam recuado suas armas e estavam imóveis. Aproveitou a folga e ordenou que o motorista atravessasse a barreira rumo ao posto da Polícia Militar. 

Quando retornaram acompanhados das autoridades, encontraram apenas um boné azul perfurado e duas poças de sangue no chão, indicando que, de fato, ele havia ferido dois dos quatro atiradores. “A gente começou a investigação [informal] no outro dia; [dois homens] tinham dado entrada num hospital. Tinha sido dois baleados. Eu fiquei sabendo que vieram a óbito, mas assim, não sei onde foi o enterro, não sei de nada.”

Desde então, não voltou a concorrer a cargos eletivos, mas segue na pretensão de se candidatar a prefeito de Japeri na próxima eleição municipal, em 2028.

Edição:

Essa reportagem foi financiada graças ao programa de bolsas para jornalismo investigativo da Meedan.

Diários Associados
Leo Coelho/Agência Pública
Tânia Rêgo/Agência Brasil
Reprodução
Fernando Frazão/Agência Brasil

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes