Buscar

Governo de SP vetou PL de educação climática 12 dias após anunciar plano de envolver estudantes a favor do agronegócio

Reportagem
28 de novembro de 2024
04:00

O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) vetou o Projeto de Lei nº 80/2023, que incluía conteúdos sobre as mudanças climáticas na grade curricular das escolas estaduais de São Paulo, 12 dias após ter anunciado o programa Agro Jovem, destinado a “incentivar a participação da juventude no agronegócio paulista”. O PL havia sido aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e recebeu a oposição do governo paulista no mês passado. Segundo especialistas ouvidos pela Agência Pública, o movimento “oficializa” a oposição da gestão à educação climática.

A Pública apurou que a equipe mais próxima ao governador está envolvida na elaboração do Agro Jovem, que inclui ações educativas em universidades e escolas estaduais de ensinos médio e fundamental II e prevê o recrutamento de estudantes para compor um “conselho” da juventude rural. O programa também oferecerá 200 vagas de estágios na Secretaria de Agricultura e Abastecimento e premiações de projetos desenvolvidos pelos estudantes, mas ainda depende de decreto para ser instituído.

As emissões de gases causadores do efeito estufa pela agropecuária corresponderam a 22,7% do total emitido em 2023 pelo estado de São Paulo, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases (Seeg), do Observatório do Clima. O setor ocupa a segunda posição no ranking de maiores emissores do estado, ficando atrás apenas do de energia.

O veto de Tarcísio ao PL 80/2023 foi publicado no Diário Oficial em 8 de outubro. De autoria do deputado Guilherme Cortez (PSOL), o projeto previa a inclusão de conteúdos sobre as mudanças climáticas no programa de ensino da rede estadual, de maneira transversal e interdisciplinar. O texto havia sido aprovado pela Alesp em votação simbólica, quando a maioria dos parlamentares é favorável à proposta e apenas os votos contrários são computados. Somente oito dos 94 deputados votaram contra o projeto.

Em entrevista à Pública, Cortez afirmou que planeja dialogar com a base bolsonarista da Assembleia para derrubar o veto do governador. “O veto é uma sinalização clara do negacionismo que existe no governo e da pressão de setores econômicos que não querem o avanço da consciência da população em relação à mudança climática. Sabemos dos interesses políticos e econômicos dessa administração, que impedem o governador de ter uma postura coerente com o tema”, disse o parlamentar.

“O agronegócio é predominante no estado de São Paulo, principalmente no interior. É um setor que trabalha com métodos que são insustentáveis e causam emissão de poluentes na atmosfera, como as queimadas, o uso indiscriminado de agrotóxicos e as formas antiquadas e predatórias de uso do solo. É um setor que economicamente apoia o governo e para o qual o governo faz todas as sinalizações possíveis”, complementa Cortez.

A abertura para valorização do agronegócio nas escolas, como prevê o programa Agro Jovem, acentua um posicionamento do governo paulista quanto à priorização da educação climática. “A educação ambiental climática é realmente antagônica a essa dita educação sobre o agro, que parece muito com o movimento Escola Sem Partido. O agronegócio é o modelo da insustentabilidade”, afirma Rachel Trajber, coordenadora do Cemaden Educação, programa do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais.

Escola Sem Partido à la agro

O programa Agro Jovem foi apresentado durante o seminário Agrotalk Mind, cujo anfitrião foi o próprio governo paulista. Com o tema “A educação brasileira e o ecossistema da indústria agrocultural”, o encontro reuniu mais de 150 produtores rurais no Salão Nobre da Secretaria de Agricultura, no dia 26 de setembro. O evento teve ares de festa e foi organizado pela AGX Estratégias, agência de marketing comandada por Aryane Garcia, que integrou a campanha à reeleição do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e do governador Tarcísio.

O secretário-executivo de Agricultura, Edson Fernandes, apresentou o Agro Jovem no evento, que teve participação do deputado estadual Lucas Bove (PL), vice-presidente da Comissão de Educação da Alesp e que votou contra a aprovação do PL de educação climática, e da presidente da associação De Olho no Material Escolar, Letícia Jacintho.

A De Olho no Material Escolar foi criada em 2021 com o objetivo de “contribuir para uma educação positiva e atualizada sobre o agro”. A associação faz lobby entre os parlamentares e atua para revisar material didático que “demonizaria” o agro – tendo, inclusive, chamado atenção após ter criticado questões do Enem 2023 que envolviam o agronegócio.

Jacintho, que vem de família ruralista, disse em entrevista ao podcast da revista agropecuária Coopercitrus que “pode-se fazer propaganda dizendo que o ‘agro é pop’ e o ‘agro é tudo’ ou qualquer outro tipo de publicidade, mas se não consertarmos a base, que é a educação, será muito difícil conseguir mostrar toda a grandeza do agronegócio”.

Em entrevista ao Canal Rural durante o Agrotalk Mind, o deputado Lucas Bove enalteceu o foco do evento no que chamou de “doutrinação nas escolas contra o agronegócio”. “A ideia [do Agro Jovem] é justamente fazer com que esse tipo de problema não ocorra mais e que a gente possa, de fato, ter uma educação de qualidade que não prejudique o nosso agronegócio e também ajude o produtor rural”, disse o parlamentar.

“Nós [lideranças do agronegócio] estamos correndo atrás do prejuízo e do tempo em que não nos envolvíamos com política e não fazíamos questão de debater o que nossos filhos estão aprendendo na escola. Eu vejo vídeos de meninas e meninos que mudaram completamente a personalidade e estão irreconhecíveis por conta daquilo que é ensinado ideologicamente nas escolas”, afirmou Aryane Garcia, idealizadora do Agrotalk Mind, em entrevista ao portal Notícias Agrícolas.

Durante o evento, foi assinado um protocolo de intenções entre a Secretaria de Agricultura e o Instituto Presbiteriano Mackenzie, com o objetivo de firmar um “projeto de qualificação e formação especializada, teórico e prático de estudantes universitários e a transferência de conhecimento por meio de estágios”. O diretor do instituto, Milton Flávio, recebeu a “joia do agro”, banhada em ouro de 18 quilates.

Diálogo e coincidência de objetivos

À Pública, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento afirmou que o programa Agro Jovem “busca fortalecer o diálogo entre a sociedade civil e o poder público, estimulando o desenvolvimento de soluções inovadoras e a formação de uma nova geração de profissionais qualificados para o agronegócio”. 

A pasta negou que o Agro Jovem tenha qualquer relação com a associação De Olho no Material Escolar, “apesar de ambos possuírem objetivos convergentes, como capacitação da juventude, divulgação do setor agropecuário e difusão das características do segmento”.

A secretaria acrescentou que “tem diálogo aberto e recebe os pleitos desta e qualquer outra iniciativa com objetivo pedagógico e de conscientização, quando fundamentadas na produção científica e acadêmica disponível e que demonstram a sustentabilidade e contribuição social da agropecuária para o desenvolvimento da sociedade”.

Procurada, a De Olho no Material Escolar afirmou que “iniciativas que tenham os mesmos princípios e propósitos são bem recebidas”. A entidade negou que tenha qualquer participação no programa Agro Jovem. Em relação ao PL de educação climática vetado por Tarcísio, a De Olho afirmou que “desconhece seu teor e, portanto, reserva-se à posição de não comentá-lo”.

A reportagem também procurou o governo de São Paulo, mas não houve retorno até a publicação.

Na contramão da tendência nacional e internacional

Tarcísio de Freitas apresentou dois programas estaduais como razões para o veto ao projeto de lei: o “Escola Mais Segura”, que trata sobre resiliência estrutural das escolas e não cita educação climática, e “Alfabetização Ambiental”, que promove temáticas socioambientais no ensino público.

Para a professora de educomunicação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e membro da Coalizão Brasileira pela Educação Climática Thaís Brianezi, as justificativas apresentadas pelo governador durante o veto ao PL não seriam suficientes para garantir a implementação da educação climática.

“Há uma certa distância entre a educação ambiental e as ciências do clima. Por isso, o governo federal considerou importante que a educação climática fosse uma prioridade e constasse como um destaque dentro da política de educação. Cai por terra a justificativa do Tarcísio, porque, senão, o governo Lula também teria reconhecido que não era necessário fazer essa inclusão.”

Em julho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a Lei nº 14.926/2024, fruto de um projeto de lei apresentado pelo Senado. A legislação inclui as mudanças do clima, a proteção da biodiversidade e os riscos e vulnerabilidades a desastres socioambientais na Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), instituída em 1999. Na prática, o veto de Tarcísio à educação climática não impede as escolas estaduais de abordarem o tema em sala de aula, já que a atualização na PNEA supre essa lacuna.

Diretrizes para a educação sobre mudanças climáticas também estão estabelecidas por organizações internacionais. A Unesco, órgão das Nações Unidas para a educação, promove a iniciativa Greening Education Partnership, que estimula a colaboração entre governos e a sociedade civil para incentivar a educação climática. A 29ª Conferência do Clima da ONU (COP29), que se encerrou na semana passada, também teve programações voltadas para a educação.

“É lamentável, simboliza uma não priorização do tema”, analisa Brianezi. “Da maneira como foram pautados esses dois movimentos antagônicos, um ganhando projeção e espaço na agenda [a educação sobre o agro], e o outro sendo simplesmente vetado [a educação climática], passa a mensagem de que o governador não quer rever os privilégios que o agronegócio desfruta e nem repensar as práticas da agricultura industrial. Quando o governador veta, ele está se comportando como o capitão do Titanic, que não deixou soar os sinos da emergência.”

Edição:
Alesp/Divulgação
Agrotalk/Instagram
Agrotalk/Instagram
Agrotalk/Instagram
Ricardo Stuckert/PR

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes