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Pessoas trans que vivem nos EUA têm camada maior de preocupações com decisões de Donald Trump que vão além da imigração

Reportagem
27 de janeiro de 2025
04:00

Crises de choro, ataques de pânico e uma sensação de tristeza profunda. Essas foram algumas das reações relatadas por brasileiros transgênero residentes nos Estados Unidos ouvidos pela Agência Pública após o início do segundo mandato do republicano Donald Trump à frente da Casa Branca.

Em seu discurso de posse, na segunda-feira (20), Trump reafirmou promessas de campanha e, em tom incisivo, reiterou que, dali em diante, a “política oficial do governo dos Estados Unidos reconheceria apenas dois gêneros, feminino e masculino”. Já nas primeiras horas de governo, o republicano assinou e revogou ordens executivas, incluindo algumas que visavam proteger a população LGBTQIA+, como medidas que garantiam proteção contra discriminação e ampliavam direitos de pessoas trans nas Forças Armadas.

No mesmo dia, Trump decretou que agências do governo passassem a usar o termo “sexo”, em vez de “gênero”. A alteração vale para passaportes e outros documentos federais de identificação – Marco Rubio, novo chefe de diplomacia do governo norte-americano mandou suspender os pedidos de passaportes que tinham “X” como marcador de sexo, em vez de “masculino” ou “feminino”, segundo o The Guardian. O governo decidiu também que detentas trans sob custódia federal sejam colocadas em celas masculinas. A ordem inclui, ainda, uma orientação para que todas as agências “acabem com o financiamento federal da ideologia de gênero”, sem deixar claro como isso seria posto em prática.

Trump pôs fim também aos programas e políticas conhecidos sob a sigla “DEI” (Diversidade, Igualdade e Inclusão, na sigla em inglês), voltados a grupos que historicamente foram sub-representados ou enfrentam discriminação. A ordem é que todos os funcionários públicos federais de setores de diversidade, equidade, inclusão e acessibilidade sejam colocados em “licença administrativa remunerada” – enquanto as agências federais tomam medidas para encerrar os programas.

Nascida em Fortaleza, Klas Gomes, 21, mora em Nova York desde os 12 anos e teme que o segundo mandato de Trump seja pior que o primeiro. O receio não se deve só aos decretos, mas ao fato de que a postura do presidente passaria “a mensagem de que está tudo bem ser transfóbico”. 

Ela conta que há um sentimento de tristeza desde o dia 6 de novembro de 2024, quando Trump foi declarado vitorioso. “Passei o dia inteiro acompanhando a apuração. Quando vi que ele havia ganhado, foram lágrimas e lágrimas – não só minhas, mas de todos os meus amigos”, relata a jovem, que se descobriu mulher trans apenas aos 18 anos, no início da faculdade – ela estuda inglês e quer se tornar professora ou tradutora.

Klas confessa que, inicialmente, chegou a cogitar deixar os Estados Unidos, tamanho foi o choque após a vitória eleitoral de Trump. Hoje, está convencida a ficar e se diz privilegiada por viver em uma das cidades mais cosmopolitas e diversas do mundo, onde, segundo ela, o preconceito não seria tão explícito. “Precisamos usar a nossa voz e gritar o mais alto possível que não concordamos com o que está sendo imposto. Somos reais e temos um lugar nesse país, mesmo que nos digam o contrário.”

Manter-se nos EUA é uma opção que não vem sem preocupações, não apenas para quem é atingido pelas mudanças, mas para quem vê nas ações de Trump um incentivo para crimes de ódio contra a população LGBTQIA+. “Não sou a favor de armas. Apesar disso, estou pensando seriamente em pegar uma licença e andar com uma arma sempre comigo”, afirma Luca Lima, homem trans brasileiro de 25 anos que mora em Nova Jersey. “Não dá para ficar vivendo a vida com medo de entrar em um banheiro e nunca mais sair”, completou.

“Tive até que tomar remédio para ansiedade”

Luca está entre o 1,6 milhão de pessoas trans nos Estados Unidos, segundo estimativa de 2022 do Instituto Williams, líder em pesquisas sobre leis e políticas de orientação sexual e identidade de gênero, e vê seus direitos ameaçados diante da volta de Trump ao poder. “No dia da posse, tive até que tomar remédio para ansiedade porque não estava bem. Infelizmente, já está ruim e só vai piorar”, conta.

O brasileiro nasceu no Rio de Janeiro e mora em Nova Jersey há dois anos, após se mudar de Connecticut, onde vivia desde os 13 anos. Aos 16, descobriu ser uma pessoa trans. “Eu pensava: ‘Não tenho problema em me ver no espelho, mas, se eu pudesse ter um corpo diferente, eu teria’. Um dia, meus amigos me perguntaram se eu queria que eles me tratassem no masculino para eu ver como me sentia. Depois, começamos a pensar em nomes. Esse foi um dos finais de semana mais felizes da minha vida”, lembra.

Para Luca, ser uma pessoa trans é difícil, mas ele se sente privilegiado em comparação a outras pessoas da comunidade. Além de ter o apoio da família, ele é percebido como um homem cisgênero e, por esse motivo, não sofre tanto preconceito, mas o receio ainda é grande em situações específicas, como ao usar banheiros públicos ou ao praticar artes marciais – que ele decidiu aprender justamente para se sentir mais seguro. 

“Certa vez, estava no vestiário e ouvi alguns homens conversando. No meio da conversa, um deles soltou: ‘Isso é muito gay’. Não sei qual foi o contexto, mas deu para perceber que não são pessoas de mente aberta”, afirma. “Imagina se esses caras descobrem que eu estava rolando no chão com eles. O que aconteceria?”

Luca já tem o chamado green card – visto de residência permanente concedido a imigrantes – e está prestes a obter a versão do documento para estrangeiros que moram no país há pelo menos dez anos, por isso não considera a ideia de voltar ao Brasil. Sua carteira de habilitação e cartão do Seguro Social, equivalente à importância do CPF no Brasil, foram emitidos em seu novo nome e apresentam o gênero “masculino”. O green card ainda não. E para a nova versão do documento, a questão do gênero ainda é incerta.

“O green card não é um documento que eu uso no dia a dia. Eu o deixo guardado em casa e é algo que ninguém vê”, conta.

“Um passo de cada vez”

A goiana Sara Wagner York, mulher trans de 49 anos que mora em Pittsburgh, na Pensilvânia, desde agosto de 2024, já enfrentou uma série de dificuldades e situações discriminatórias por se entender trans desde os 12 anos, em um meio – e época – em que havia pouca informação sobre o assunto. Ela foi expulsa de casa quando se assumiu.

Sara chegou a morar na rua e conta que apanhou diversas vezes – da mãe, de colegas de escola e da polícia. Aos 15, membro de uma igreja evangélica e encampando uma tentativa de “virar homem”, engravidou uma mulher – o filho tem hoje 32 anos.

Colecionando experiências desafiadoras, Sara não encara o novo mandato de Trump com tanto medo e o enxerga como mais um obstáculo a ser enfrentado. Pesquisadora na área de educação e saúde e estudante de doutorado na Universidade de Pittsburgh, ela diz que “o que Trump está propondo é um retrocesso aos direitos humanos, uma tentativa de apagar nossa identidade e, mais do que isso, deslegitimar nossa existência. Precisamos nos manter organizados e unidos para garantir que a voz da comunidade seja ouvida”.

“Esses ataques, em vez de nos silenciarem, só nos fortalecem. Continuaremos a existir, a lutar e a exigir respeito, independentemente de ameaças. Nossas vidas são válidas, nossas existências são dignas e vamos continuar a desmantelar o ódio, um passo de cada vez”, acrescenta.

Sara nunca cogitou deixar os Estados Unidos. “Entendi que existem formas mais incisivas de luta, e uma delas é o enfrentamento. Então não, não penso em voltar”, diz. “O ato de ‘abandonar’ não faz mais parte da minha vida. Tenho metas a cumprir e estou focada nisso.”

Edição:
Arquivo pessoal/cortesia
Arquivo pessoal/cortesia

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