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Enganados, cidadãos dos EUA são condenados a 10 anos de prisão após mudança na lei contra imigração

Reportagem
12 de janeiro de 2025
04:00

Quando Justin Persinger conheceu uma mulher em um supermercado na cidade de San Antonio, no Texas, Estados Unidos (EUA), ele estava sem dinheiro e dormindo no sofá da casa de um amigo. Depois do flerte, a moça perguntou se ele estaria interessado em ganhar um dinheiro extra buscando algumas pessoas na fronteira com o México, na cidade de Eagle Pass.

A mulher ofereceu cerca de mil dólares e ele concordou, na esperança de que isso aumentaria suas chances de sair com ela. Além do mais, um dinheiro extra nunca faz mal. Mas quando Persinger dirigiu duas horas e meia até a fronteira, um policial escondido nas proximidades o prendeu. O relato é dos advogados do rapaz. 

Persinger está entre os milhares de estadunidenses acusados de tráfico de pessoas desde que o Texas iniciou a Operação Lone Star (em inglês, Estrela Solitária), para controlar sua fronteira com o México, há quase quatro anos. Embora políticos digam que estão concentrando os esforços nos cartéis mexicanos que comandam o tráfico de drogas, a maioria das pessoas acusadas no Texas são cidadãos dos EUA — e as prisões por tráfico aumentaram cerca de 1.150% depois que o estado iniciou sua repressão na fronteira.

As pessoas detidas geralmente são atraídas por anúncios de teor vago em redes sociais como TikTok, Instagram e Snapchat. Os posts buscam motoristas e oferecem pagamento. As informações são de oito advogados de defesa, três promotores e quatro pessoas presas por tráfico de pessoas ouvidas pela reportagem do Texas Tribune.

Quem responde aos anúncios recebe instruções pelo WhatsApp de alguém que não se identifica nem informa que esta pessoa vai cometer um crime. Ela é instruída a dirigir até pontos específicos no lado texano da fronteira EUA-México, pegar um grupo de desconhecidos e levá-los até cidades grandes do estado, como Houston, San Antonio e Dallas. 

As pessoas são orientadas a enviar mensagens para o desconhecido ao longo do caminho, a fim de confirmar pontos importantes na jornada — como a chegada ao destino inicial ou mesmo avisar quando imigrantes entram no veículo.

“Em serviços como o Uber e o Lyft, cidadãos comuns dirigem carros. Então não é nada fora do comum alguém solicitar um motorista”, disse Mary Pietrazek, advogada de defesa de San Antonio que representou quase 500 pessoas presas sob a lei estadual de tráfico de pessoas.

A lei de tráfico de pessoas do Texas está em vigor há 25 anos, mas, na última década, a Assembleia Legislativa do estado a ampliou e tornou a punição mais extrema. Pessoas condenadas enfrentam, em média, 15 meses de prisão. No ano passado, os legisladores estaduais impuseram uma sentença mínima obrigatória de dez anos para qualquer condenado.

A lei gerou preocupações entre advogados e defensores dos direitos dos imigrantes. Eles dizem que a legislação sobrecarregou os sistemas de justiça locais, envolveu pessoas que estão longe de serem criminosos convictos e se transformou em um estatuto vagamente inconstitucional que dá à polícia estadual licença para buscar imigrantes indocumentados.

“O sistema de fiscalização da imigração do estado está tentando criminalizar muitos aspectos de nossas vidas”, disse Priscilla Olivarez, do Immigrant Legal Resource Center, que, junto com outras organizações, publicou um artigo afirmando que a lei estadual de tráfico está “alimentando uma crise de encarceramento em massa”.

A lei foi usada para fundamentar 1,4 mil prisões por tráfico de pessoas em 2020, um ano antes de o governador republicano Greg Abbott lançar a Operação Lone Star, em 2021. Em 2022, o número saltou para 17,5 mil.

Análise do Texas Tribune das prisões feitas pelo Departamento de Segurança Pública do estado — cujos policiais têm invadido a fronteira atuando na Operação Lone Star — mostra que cerca de metade das pessoas presas por tráfico nos últimos três anos tinham menos de 27 anos. Adolescentes com menos de 18 anos representaram aproximadamente 6% das prisões a cada ano.

Os advogados dizem que algumas pessoas estavam um pouco céticas quanto à tarefa que lhes era pedida, mas não entendiam completamente que estavam sendo requisitadas para traficar pessoas, já que não estariam transportando ninguém através da fronteira.

Persinger tinha 33 anos quando chegou ao Texas, em 2023, durante uma viagem de costa a costa, entre os estados da Carolina do Norte e Califórnia, onde morava na época. Seu pai acabara de morrer e lhe deixou alguns pertences — incluindo um carro. Músico que sempre teve dificuldades para ganhar dinheiro, ele se encontrou com um amigo em San Antonio, onde os dois iriam gravar algumas canções. Ele disse que planejava ficar cerca de um mês na cidade.

Quando conheceu a mulher na loja, Persinger ficou surpreso com o flerte. E quando ela ofereceu o bico de motorista — que incluía dinheiro para gasolina — ele não desconfiou. Ele conta que já tinha pegado caronas pelo país e podia se identificar com alguém que precisasse do favor. Persinger se recusou a compartilhar certos detalhes do encontro porque temia retaliação da mulher que “arruinou” sua vida, segundo seu advogado.

“Eu não sabia o que era ‘crise da fronteira’ até eu estar prestes a ir a julgamento”, disse ele, na Cadeia do Condado de Maverick.

“Cadê meus motoristas?”: Criminosos recrutam nas redes sociais

Dois homens vestidos com roupas camufladas, no banco de trás de um SUV, aparecem em uma postagem no stories do Instagram. A legenda diz:

“A estrada tá verde

foda-se o [trabalho de] 9-5 e vem trabalhar

pagamento garantido

carona garantida.”

Outra postagem mostra uma pilha de dinheiro com a legenda: “Cadê meus motoristas?”. Uma terceira traz um print de um mapa e diz: “Quem estiver a fim de ganhar 10k [10 mil dólares] às 6 da manhã, me liga. É garantido”.

Foi uma postagem semelhante a essas — compartilhada com o Texas Tribune por um advogado — que chegou a Nathan Perrow via redes sociais.

Meses após se formar no ensino médio em 2021, Perrow recebeu a mensagem pelo Snapchat, perguntando se poderia dar uma carona para uma pessoa e seus amigos por 1,2 mil dólares. Eles também pagariam o combustível para ir e voltar da fronteira.

“Não pensei nada disso”, disse Perrow, em Houston, em depoimento a uma comissão da Câmara do Texas, durante uma audiência sobre as mudanças propostas na lei de tráfico. “Eu só achei que ia dar uma carona e receber o pagamento.”

Mas quando ele chegou ao destino que lhe foi dado, na cidade de Del Rio, não encontrou ninguém e viu as sirenes da polícia atrás dele. Perrow foi acusado seis vezes por tráfico de pessoas, porque os policiais encontraram seis imigrantes perto do local onde ele foi parado. “Nunca interagi com eles, mas eles estavam lá”, disse Perrow aos legisladores.

O Texas Tribune não conseguiu falar com Perrow para comentar a reportagem.  

A viagem parece simples, mas é preciso passar pelos pontos de controle da Patrulha de Fronteira dos EUA em todas as principais rodovias do estado e por vários agentes de segurança do país, que vigiam veículos suspeitos. Depois dos pontos de controle e mais para o interior, a fiscalização da imigração diminui. 

“O que é anunciado [nas redes sociais] não parece particularmente ruim — é pegar e levar alguém para outro lugar”, analisa Jack Winfrey, advogado do escritório da Defensoria Pública da cidade de Rio Grande.

Sylvia Delgado, que representou 171 pessoas acusadas de tráfico de pessoas, diz que a maioria de seus clientes conta uma variação da mesma história. Eles estavam procurando uma maneira de ganhar dinheiro quando receberam uma solicitação no WhatsApp do tipo: “Quer ganhar uma grana dando uma carona para alguém? É só ligar para este número e nós vamos te passar para alguém que precisa de transporte”.

“Geralmente é assim que acontece. [O anúncio] Não diz, ‘Isso é ilegal, então tome cuidado,’” conta Delgado. 

Pietrazek, a advogada de San Antonio, relata que já teve clientes que primeiro receberam dinheiro para a gasolina — até 300 dólares enviados por aplicativos, com a promessa de pagamento pelo trabalho assim que concluído.

“Provavelmente as pessoas percebem quando [os imigrantes] entram no carro, com cheiro de mato e lama nas botas, sem falar inglês”, disse ela.

Como o Texas aumentou as penas

Em 1999, os legisladores queriam ir atrás dos “coiotes” — termo usado para se referir a traficantes de pessoas, que exploram imigrantes, extorquindo dinheiro e muitas vezes colocando-os em risco de morrer durante longas jornadas por áreas acidentadas e isoladas, lembra Norma Chávez, deputada estadual democrata de El Paso que escreveu o texto, apelidado de “Projeto de Lei Coiote”.

A lei foi aprovada sem muita oposição. Com pena de até dois anos de prisão, ela instituiu como crime estadual o transporte de alguém por dinheiro, escondendo a pessoa das autoridades e “criando uma probabilidade substancial” de que ela pudesse se ferir.

“Reconheci que também precisávamos ir atrás de quem usa isso para lucrar. Eu estava à frente do meu tempo”, disse Chávez em entrevista recente.

Mas a migração no mundo estava começando a mudar. 

O governo federal intensificou os esforços de segurança nacional após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 — incluindo ao longo da fronteira EUA-México, de acordo com Guadalupe Correa-Cabrera, professora da Universidade George Mason, que estuda o tráfico de pessoas. O governo dobrou os esforços de fiscalização, adicionando milhares de novos agentes da Patrulha de Fronteira, investindo pesado em tecnologia de vigilância e começando a construção de um muro que ainda está incompleto.

A repressão não impediu que migrantes fugindo da pobreza, da violência ou da repressão política tentassem cruzar a fronteira. Mas, à medida em que a travessia se tornou mais difícil, o tráfico de pessoas se transformou em um império bilionário global que se tornou fonte de lucro para organizações criminosas, diz Correa-Cabrera.

À medida em que o tráfico se tornou maior e mais lucrativo, os legisladores do Texas elevaram a punição do crime para até 10 anos de prisão, em 2011. Quatro anos depois, para até 20 anos, se a vítima corresse o risco de se ferir ou fosse menor de 18 anos. A pena pode chegar a 99 anos, se a pessoa se ferir ou se tornar vítima de agressão sexual.

Em 2021, três meses após Joe Biden assumir o cargo, o governador do Texas, Greg Abbott, lançou a Operação Lone Star, repressão na fronteira que já custou aos contribuintes mais de 11 bilhões de dólares até hoje.

A polícia do Texas começou a superar as autoridades federais no número de prisões e processos por tráfico de pessoas. Agentes federais acusaram 5.046 pessoas sob a lei nacional em 2021 — 3.471 no Texas. No mesmo ano, a polícia do Texas prendeu 7.755 pessoas sob a lei estadual.

A diferença aumentou. Entre outubro de 2022 e outubro de 2023, as autoridades federais acusaram 2.745 pessoas de tráfico de pessoas no Texas. Já as autoridades estaduais fizeram cerca de 17.592 prisões.

A revisão mais recente da lei estadual, aprovada pela Assembleia Legislativa há um ano, é talvez a mais ampla. Ela não menciona o status de imigração do passageiro — o que significa que a polícia pode legalmente parar, interrogar e prender alguém suspeito de esconder um passageiro, mesmo que seja um cidadão dos EUA.

Kelli Childress, Defensora Pública da cidade de El Paso, cujo escritório tem quase 400 casos de tráfico de pessoas, coloca o seguinte cenário: se ela der uma carona para seu pai, em um carro com vidros escuros, e ela dirigisse para longe de um policial, poderia ser presa sob suspeita de traficar seu próprio pai.

Os promotores da fronteira dizem que os casos já estão lotando suas agendas nos tribunais e que a sentença mínima obrigatória significa que mais réus devem ir a júri. Poucos casos apresentados sob a nova lei, que entrou em vigor em fevereiro de 2024, chegaram a uma conclusão final.

O número de crimes estaduais registrados nos condados que fazem fronteira com o México aumentou 286% desde 2020, de 7.350 para 28.366 no ano passado, de acordo com a Unidade de Processamento da Fronteira, um coletivo de 17 escritórios de promotores. A maioria desses casos são de tráfico de pessoas, diz Tonya Spaeth Ahlschwede, presidente da unidade.

Preso perto da fronteira  

Persinger parou o Hyundai de seu pai, ainda com placas da Carolina do Norte, na Rota 57, fora da cidade de Eagle Pass, em uma noite de maio de 2023. A cerca de 400 metros de distância, um policial estava em um carro com todas as luzes apagadas, observando o veículo em uma área “conhecida por um alto volume de tráfico de pessoas”, segundo o relato do oficial.  

Após ver várias pessoas saírem do mato e entrarem no Hyundai, o policial parou Persinger. Um “imigrante indocumentado” correu imediatamente e foi seguido por mais dois, apesar das ordens do policial para “parar e mostrar as mãos”, de acordo com o agente.

Persinger permaneceu parado no banco do motorista. Ele concordou em conversar com o policial, contando sobre a mulher que conheceu no supermercado e o dinheiro oferecido para buscar quatro pessoas. Mais tarde, ele mostrou as instruções em seu telefone.

O policial prendeu Persinger. Ele já havia sido preso antes, por crimes de menor potencial ofensivo, como embriaguez pública, deitar na calçada e beber na rua [ato proibido nos EUA].

“Eu estava como os motoristas de Uber, táxis, carros privados — coisas desse tipo,” escreveu Persinger para o Tribune. “Nunca pensei que poderia acabar nessa situação por supostamente dar uma carona para algumas pessoas de um lugar para outro.”

Diretora da Lone Star Defenders, que supervisiona nomeações de defesa para prisões da Operação Lone Star, Amrutha Jindal diz que o caso de Persinger destaca alguns dos piores aspectos das prisões de tráfico de pessoas do estado: a polícia está prendendo pessoas de baixo risco e não parece interessada em investigar os criminosos maiores, conectados aos cartéis.

“Não faz sentido. É chocante que essas pessoas recebam uma sentença de dez anos— e a maioria desses jovens não tem ideia”, disse Jindal.

Segundo os advogados de Persinger, o policial que prendeu o rapaz disse que nunca ligou para nenhum dos números que estavam no telefone de Persinger para obter instruções. O oficial também não fez uma busca nos nomes das pessoas associadas aos números de telefone.

No depoimento, o policial não disse que Persinger tentou esconder as pessoas no carro.

O júri considerou Persinger culpado. Os promotores queriam uma sentença de dez anos de prisão. Como ele foi acusado antes da implementação da sentença mínima de dez anos, seus advogados pediram três anos. Ele foi condenado a quatro.  

*Esta reportagem faz parte de uma colaboração com o FRONTLINE, série da PBS, realizada com a Local Journalism Initiative, financiada pela Fundação John S. e James L. Knight.

*O Texas Tribune é uma organização de mídia sem fins lucrativos e apartidária que informa e interage com texanos sobre políticas públicas, política, governo e questões estaduais.

© Tomas Castelazo, www.tomascastelazo.com / Wikimedia Commons / CC BY-SA 4.0
LoneStarMike / Wikimedia Commons / CC BY-SA 4.0
Cortesia de Justin Persinger
Noah Wulf/ Wikimedia Commons / CC BY-SA 4.0
Gage Skidmore/USA/Wikimedia Commons/ CC BY-SA 4.0

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