Buscar

Participação feminina no comando de grandes editoras ainda é baixo, dizem mulheres que atuam no mercado editorial

Reportagem
25 de janeiro de 2025
04:00

No ano passado, a escritora Lella Malta recebeu uma mensagem de um homem dizendo que queria ser patrocinador do evento “Elas publicam”, para mulheres do mercado editorial. Ela achou ótimo, porque o cara era um figurão do setor, e mandou para ele a tabela comercial. O projeto costuma receber patrocínios polpudos, e ela achou que poderia ser o caso. Mas o dinheiro não veio. No lugar, ela recebeu um esclarecimento: “Ele falou que eu não tinha entendido, que o patrocínio seria uma palestra dele para as mulheres”, diz. 

Mas o projeto Elas Publicam, explica, nunca recebeu nenhum homem, é apenas de mulheres que atuam na cadeia produtiva dos livros, para criar um espaço de acolhimento e troca de experiências. “Ele se acha tão bom que não precisa pagar uma cota de patrocínio, só a presença dele já teria que ser muito valorizada. É uma cara de pau sem tamanho.”

Na última edição da Flip – Feira Literária Internacional de Paraty, um dos maiores festivais do setor no país, ela e outras mulheres lançaram uma antologia de contos e poemas. Mas o evento foi constantemente interrompido por um homem que queria declamar os seus próprios poemas e falar sobre o próprio trabalho. “É muito comum que os homens queiram chamar a atenção para falar sobre eles, querem corrigir o que as mulheres estão falando, e às vezes até sobre a temática do livro delas, que elas que estudaram”, diz.

Relatos como esse são comuns entre autoras, editoras e outros cargos ocupados por mulheres que atuam no mercado editorial brasileiro. A Agência Pública conversou com dez mulheres e ouviu, de modo quase unânime, que ainda há muito machismo no meio e falta muito para que o setor seja igualitário entre homens e mulheres. A maioria não quis se identificar justamente para não sofrer represálias de seus colegas. 

O assunto ganhou destaque nos últimos dias com a repercussão do podcast “CPF na Nota”, da Rádio Novelo. Nele, a escritora Vanessa Barbara relata a sequência de fatos misóginos que ocorreram no fim de seu casamento com André Conti, que hoje é um dos sócios da editora Todavia. Na época, ele fazia parte de um grupo de e-mails com 15 homens, entre jornalistas, escritores e editores – parte da nata do mercado editorial hoje – em que falavam sobre mulheres, seus corpos e o que faziam com elas.

Depois que o podcast furou a bolha e monopolizou as redes sociais, Conti publicou uma nota reconhecendo que manipulou e foi misógino com sua ex-esposa. Outros membros do grupo também reconheceram que erraram por participar de atitudes machistas, ou de calar sobre elas. De qualquer maneira, a carreira de Vanessa Barbara nunca mais foi a mesma depois do trauma. Ela era apontada como uma das escritoras mais promissoras quando despontou, em 2008. Não deixou de trabalhar, mas teve resultados mais tímidos que a de alguns membros do grupo, que ascenderam em suas áreas, como a própria relata no podcast.

“O empurrão dos parças influentes pode ser fundamental para que um nome se estabeleça e um livro faça sucesso. Ou, no sentido contrário, para que alguém desapareça dos holofotes —ou seja levado a se distanciar deles, precise disso para se recompor”, como escreveu o jornalista especializado em Literatura Rodrigo Casarin.

Entre as pessoas ouvidas pela Pública, todas sinalizaram que o relatado por Barbara é uma situação comum em editoras. Não há um complô sistemático para prejudicar mulheres, mas a teia de conexões que favorece os homens (o chamado machismo estrutural) cumpre este papel, relegando-as a posições inferiores e em que ainda há medo de denunciar situações de abuso por medo de afetar a própria carreira.

“Homens brancos com dinheiro e com poder sempre se protegem. E exatamente por esse motivo não vai acontecer nada com o principal envolvido. Isso causa uma desesperança entre nós”, disse uma editora que não quis se identificar.

“O caso da Rádio Novelo gera uma discussão indispensável sobre como o machismo que estrutura nossa sociedade circula (até hoje), inclusive em meios progressistas. Também mostra que denúncias de violência têm o potencial para gerar reações violentas e afetar muita gente”, afirma Florência Ferrari, uma das fundadoras da editora Ubu, que possui parte expressiva do catálogo de livros traduzidos, editados e escritos por mulheres.

“Nos mais de vinte anos que venho atuando no mercado editorial, é claro que, como todas as mulheres, vivenciei episódios de misoginia. Muitos desses passavam despercebidos; outros, embora bastante sofridos, na época eu nem nomeava como misóginos”, ela continua. 

Poucas mulheres no comando das maiores editoras brasileiras

Joana Monteleone, uma das fundadoras da editora Alameda, conta que foi demitida de um jornal por um editor que, em suas palavras, “não gostava muito dela”. Ela estava grávida da primeira filha. “Ele disse que eu não ia escrever nenhuma matéria até o final da gravidez. Era muito humilhante, eu era repórter e não podia escrever. Ele tinha medo que eu roubasse o seu cargo”, diz.

Ela então decidiu migrar para o mercado editorial, em uma editora universitária. Foi bem sucedida, mas sentia que ali também não conseguiria subir na carreira. Então fundou a Alameda com o marido e um amigo. No próprio negócio, conseguiu chegar a um patamar de quase 50% de autoras mulheres entre os cerca de mil títulos do catálogo. Em outras editoras comerciais, ela diz, a proporção é de cerca de 60% a 40% ou 70% a 30%.

Monteleone fala sobre a existência de um teto de vidro para mulheres nas editoras. “Você chega a uma certa instância, mas dificilmente à editora principal”, afirma. “Editar é dar voz ao que está dentro de você, a sua voz ecoa na voz de outras pessoas. Se não tem mulher editando, vai ter menos mulher publicada, menos ponto de vista de mulheres. E isso limita a participação das mulheres na sociedade como um todo.”

O teto de vidro, para ela, é parte de um problema mais amplo, onde um “clubinho fechado de homens” é responsável pelas decisões, ocupa os maiores postos e até as premiações do mundo literário, fazendo com que a influência deles seja a que mais se sobressaia.

Não há um dado oficial sobre o número de mulheres no topo da hierarquia de editoras. Mas é possível ter uma ideia. Recentemente, o site Publishnews ouviu 16 CEOs e representantes das maiores editoras do país sobre expectativas para o ano de 2025. Apenas seis eram mulheres.

Um estudo do Sindicato Nacional dos Editores de Livros apontou que mulheres ocupam cargos de liderança em 87% das editoras entrevistadas. O dado parece indicar um cenário positivo, mas ele é contestado por um especialista no mercado editorial, que também não quis se identificar. “Esse número é condizente quando você leva em conta lideranças diversas dentro das empresas, como de um setor específico, ou até cargos como editora executiva. Mas quando a gente pega presidentes, CEOs e sócios, o número é menor, certamente”, afirma.

Lella Malta aponta para as raízes do machismo estrutural no mercado editorial. “Apesar de sermos maioria tanto entre os leitores quanto entre os profissionais da área, mesmo ainda não ocupando a maioria das posições de liderança, o protagonismo feminino muitas vezes é apagado ou subestimado”, diz, citando como exemplo que gêneros considerados femininos geralmente são colocados como “menores”. 

“Não é só a dificuldade de sermos ‘levadas a sério’, mas também o assédio e a invalidação da nossa escrita, dos nossos posicionamentos. Quantas vezes a gente vê mulheres, sejam autoras, editoras, tradutoras, ou até críticas literárias, tendo suas ideias ignoradas ou, pior ainda, apropriadas?”, pergunta.

Além do “Elas publicam”, Malta também idealizou o projeto “Escreva, garota!”, que capacita mulheres que escrevem para enfrentar o mercado editorial de cabeça erguida. “Quando penso nos dois, vejo espaços seguros para que possamos nos acolher, nos profissionalizar, empreender. Quem dera não precisássemos deles”, lamenta.

Uma das saídas para a maior representatividade no setor é a de criar editoras e livrarias comandadas por mulheres desde a sua base. “Hoje há uma nova leva de editoras e livrarias fundadas e lideradas por mulheres (na maioria branca, ainda), o que era raro dez anos atrás. Temos liberdade de publicar o que desejamos, sustentar nosso posicionamento, criar redes de troca e parcerias, influenciar o debate público. Ainda assim, o mercado como um todo permanece bem masculino e a misoginia segue correndo solta”, afirma Florência Ferrari.

Edição:
Arquivo pessoal

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Leia de graça, retribua com uma doação

Na Pública, somos livres para investigar e denunciar o que outros não ousam, porque não somos bancados por anunciantes ou acionistas ricos.

É por isso que seu apoio é essencial. Com ele, podemos continuar enfrentando poderosos e defendendo os direitos humanos. Escolha como contribuir e seja parte dessa mudança.

Junte-se agora a essa luta!

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes