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A gritaria nas redes sobre a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) demonstra que Elon Musk tem muito poder de mobilização da indústria de desinformação e que conseguiu, com o tema, fazer um novo “Twitter Files” e atacar jornalistas do mundo todo de uma só tacada. Mas ensina pouco além disso. Assim como no Twitter Files, aquele vazamento seletivo de emails internos do Twitter orquestrado por Musk, as informações sobre a Usaid são parciais e contam apenas metade da história – aquela que interessa a ele.
Tenho visto muitas matérias na imprensa afirmando que a Usaid, embora tenha apoiado golpes de Estado nos anos 1960 e 1970, teria agora se voltado para a promoção da democracia. Também é uma visão ingênua e pouco informada. Afinal, como um dos principais instrumentos de soft power do governo norte-americano, a agência de desenvolvimento internacional sempre apoiou grupos de direita, em especial aqueles que se opuseram a governos que poderiam de fato reduzir a influência americana aqui no nosso continente.
Basta dar uma olhada nos arquivos da Agência Pública, que há mais de uma década investiga a influência norte-americana na América Latina. Aliás, você pode ajudar a Pública a fazer mais investigações sobre o tema apoiando aqui.
Temos complô contra o governo de Hugo Chávez? Temos. Nessa reportagem, feita com base em dezenas de arquivos do WikiLeaks, relatamos tintim por tintim a estratégia traçada pelo embaixador americano para derrotar o bolivariano, em 2004. “O foco da estratégia é: 1) Fortalecer instituições democráticas, 2) Infiltrar-se na base política de Chávez, 3) Dividir o Chavismo, 4) Proteger negócios vitais para os EUA, e 5) Isolar Chávez internacionalmente”, relatou o embaixador, sem papas na língua.
Na mesma linha, outra reportagem que vale ler relata como um espião machista e assediador chegou a ser plantado pela Usaid em Caracas – ele dirigia uma empresa financiada pela agência – e teve que sair correndo do país depois de ter sido acusado de olhar os peitos das funcionárias e dizer coisas como “se vocês conseguissem segurar uma pílula entre os joelhos, eu não teria que gastar dinheiro pagando por licença-maternidade”. Sua função era minar a confiança no governo Chávez.
No Haiti, a Usaid deixou suas digitais na orquestração para retirar do poder o presidente Jean-Baptiste Aristide, retirado do país em um avião militar norte-americano na madrugada de 29 de fevereiro de 2004, depois de meses de greves e protestos que degeneraram em rebelião armada.
A organização IRI, International Republican Institute, financiada pela Usaid, havia treinado 600 líderes rebeldes durante meses em “cursos de treinamento político” na República Dominicana nos anos de 2002 e 2003. Investigado pelo Congresso dos Estados Unidos, o IRI foi acusado de estar por trás de duas organizações que conspiraram para derrubar Aristide: o Grupo 184, coalizão de 184 ONGs capitaneada por André Apaid, empresário que participou do primeiro golpe contra Aristide, em 1991; e a Convergence Démocratique, frente oposicionista formada em 2000 por diversas facções da elite do país.
Na Bolívia, segundo documentos do governo americano obtidos pelo jornalista Jeremy Bigwood, a Usaid manteve um “Escritório para Iniciativas de Transição”, que investiu 97 milhões de dólares em projetos de “descentralização” e “autonomias regionais” por uma década, fortalecendo os governos estaduais que se opunham a Evo Morales. Em 2013, Morales expulsou a agência do seu país, acusando-a de financiar a oposição ao seu governo.
O impeachment de Fernando Lugo, em 2012, também teve influência da Usaid, como demonstrei detalhadamente na série “O bispo e seus tubarões”. Durante cinco anos, a Usaid financiou, com mais de 100 milhões de dólares, o treinamento de policiais, militares e juízes que estiveram presentes em momentos cruciais da trama que tirou do poder o único presidente de esquerda do país.
Entre 2005 e 2010, cerca de mil militares e policiais foram treinados – a maioria em 2009, ano seguinte à posse de Lugo – e dali saíram alguns comandantes das Forças Armadas nomeados pelo seu sucessor, Federico Franco, quando assumiu o poder. O chefe da Usaid no país foi flagrado, em emails que obtivemos via pedidos pela Lei de Acesso à Informação (LAI), orquestrando alianças com o governo que assumiu depois de Lugo, antes mesmo de o impeachment ter sido votado.
Mas e o Brasil? Você me pergunta.
Sim, também no Brasil a Usaid fortaleceu grupos de direita. Na reportagem “A nova roupa da direita”, escrita por Marina Amaral em 2015, ela demonstrou a influência da Atlas Network na construção da emergente direita “renovada” na América Latina, incluindo o MBL, que nasceu do capítulo nacional da organização Students for Liberty. A Atlas recebeu financiamento da Usaid, segundo reportagem do Intercept, e chegou até mesmo a recomendar a um diretor da filial da Coca-Cola no Panamá colaborar com a Atlas para a criação de um think tank liberal no país.
Entre os membros da Atlas Network estão institutos que foram cruciais para a reorganização da direita política no Brasil antes do impeachment de Dilma Rousseff, como o Instituto Millenium, o Instituto Mises Brasil, os institutos liberais de São Paulo e do Rio, além do Livres.
A Usaid é tão importante para os planos da direita americana que o famoso documento Projeto 2025, da Heritage Foundation, que tem servido de “mapa de ação” ao governo Trump, sugeria que ela deveria ser usada para servi-lo, focando em impulsionar “políticas pró-vida e pró-família” – leia-se antimulheres – e projetos que defendam “liberdade religiosa”. Coisa, aliás, que Donald Trump já fez em seu primeiro mandato.
Não será aqui que você vai ler uma defesa da Usaid, portanto.
Mas me pergunto por que, então, Elon Musk ignora o quanto a agência serviu à direita no seu “exposé”, e por que pretende destruí-la?
A resposta pode ser mais prosaica – e mais deprimente – do que parece. Talvez Musk esteja apenas se vingando da agência, que em maio do ano passado iniciou uma investigação sobre o uso das antenas Starlink pelo governo ucraniano cedidas pela Usaid. Porque, afinal, embora Musk se esqueça de mencionar isso, a Usaid colaborou no contrato de 3 milhões de dólares à Starlink para apoiar a resistência da Ucrânia à invasão russa, além de mais 1 milhão para levar a internet ao Zimbábue e à África do Sul.