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Pelo menos 18 ações podem ser destravadas após discussão no STF que citou Ainda Estou Aqui, incluindo caso Rubens Paiva

Reportagem
2 de março de 2025
08:00

O legado do filme “Ainda Estou Aqui” pode ser muito maior que as três estatuetas inéditas que a película pode garantir ao cinema brasileiro no Oscar neste domingo (2). O filme provocou ampla discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) e a Corte decidirá se a Lei da Anistia se aplica a casos de desaparecimento de vítimas da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Um levantamento da Agência Pública mostra que das 56 ações criminais divulgadas pelo Ministério Público Federal (MPF) entre 2012 e 2024, 18 seriam destravadas, caso a Corte decida afastar a Lei de Anistia nestes casos.

No último dia 24 de fevereiro, o STF, por unanimidade, decidiu que vai analisar se a Lei de Anistia se aplica a casos de desaparecimento, mas ainda não há data para o julgamento. O STF analisou recursos do MPF, que tramitam na corte sobre as ações penais envolvendo os desaparecimentos de Rubens Paiva e Mario Alves e o assassinato de Helber José Gomes Goulart, cujo corpo ficou desaparecido por 19 anos. A Corte seguiu o relatório do ministro Alexandre de Moraes e entendeu que cabe a repercussão geral do assunto, ou seja, o que o STF vier a decidir vai se aplicar a casos semelhantes que tramitam na Justiça e que estão travados por diferentes motivos.

Ganhador de prêmios internacionais, o filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, conta como Eunice Paiva (viúva de Rubens Paiva, interpretada por Fernanda Torres) liderou a família em meio ao luto e se transformou em uma advogada respeitada na luta por direitos humanos no Brasil, e é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado cassado que foi morto sob tortura em janeiro de 1971. O corpo do político jamais foi encontrado. 

Por que isso importa?

  • Popularidade do filme indicado ao Oscar jogou nova luz sobre a ditadura e, em um período em que a cessão de anistia volta a ser uma pauta, o Brasil ganha nova chance de responsabilizar e punir autores de crimes até então impunes, reforçar a importância da defesa da democracia e prestar respeito a familiares e vítimas do regime militar.

Entre 2012 e 2024, o MPF ajuizou ao menos 56 ações penais contra ex-agentes da repressão da ditadura. A instituição entende que a Lei de Anistia não se aplica para beneficiar os autores de violações de direitos humanos no período da ditadura militar brasileira, marcado por ataque sistemático a uma parcela da população que, com ou sem armas, se opunha ao regime. Os crimes praticados neste contexto seriam contra a humanidade e não prescreveriam, cabendo às autoridades brasileiras processá-los e julgá-los. 

A prescrição é o limite de tempo previsto no artigo 189 do Código Civil que define até quando uma ação judicial pode ser movida para que um direito seja assegurado – vale desde cobranças até para a punição por crimes.

Em dezembro, ao analisar um recurso em uma ação sobre um caso de ocultação de cadáver de uma vítima da campanha militar das Forças Armadas contra a Guerrilha do Araguaia na ditadura, o ministro do STF Flávio Dino citou o filme ao decidir que o tema era de repercussão geral.  

“No momento presente, o filme ‘Ainda Estou Aqui’ tem comovido milhões de brasileiros e estrangeiros. A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho”, afirmou. 

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região já decidiu afastar a Lei da Anistia para casos de desaparecimento ao julgar recurso sobre o desaparecido Carlos Zaniratto, um ex-soldado do Exército que desertou para seguir Carlos Lamarca na Vanguarda Popular Revolucionário (VPR), como mostrou a Pública.

Até 200 novas ações ainda poderiam buscar culpados por crimes na ditadura 

O levantamento feito pela reportagem da Pública apontou que, além dos casos de Rubens Paiva, Mario Alves e Helber Goulart, outras 15 ações penais poderão ser afetadas – 32% das ações propostas pelo MPF – e os acusados poderiam ser responsabilizados e punidos. Outros 15 casos permanecerão impunes, uma vez que os envolvidos faleceram ou as ações já transitaram em julgado.  

São 15 ações semelhantes às três já em discussão no STF: 

  • Oito são como o processo de Rubens Paiva, nos quais o MPF denunciou crimes como homicídio e incluiu a ocultação de cadáver, a exemplo de Virgílio Gomes da Silva, que participou do sequestro do embaixador dos EUA, Charles Burke Ellbrick, e que foi morto sob tortura, em 1969, mas o corpo, sepultado como desconhecido no cemitério de Vila Formosa, nunca encontrado;
  • Três são como o de Mário Alves, jornalista e dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, possivelmente morto em janeiro de 1970 e cujo corpo jamais foi encontrado. No caso de Alves, o MPF denunciou o desaparecimento como sequestro qualificado, por entender que não havia informações sobre o paradeiro do corpo e das circunstâncias da morte presumida. Outro caso semelhante é o do corretor de valores Edgar Aquino Duarte, preso que ficou por mais tempo no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi) de São Paulo, entre 1971 e 1973, e cuja data da morte e desaparecimento é incerta;
  • Quatro são como o de Helber Goulart, ex-militante do PCB, e que foi preso quando integrava a ALN e morto por agentes do Doi-Codi em 1973. No caso dessas vítimas, o MPF denunciou ex-legistas, como Harry Shibata, que alterou informações no laudo de necropsia de Goulart, o que dificultou por 19 anos a localização de seus restos mortais, sepultados no Cemitério de Perus. 

Se a discussão no STF tivesse iniciado mais cedo, o número de casos poderia ser bem maior, uma vez que 33 das ações movidas pelo MPF (59% do total) são de desaparecimento. 

O Brasil perdeu a oportunidade de julgar os responsáveis pelo desaparecimento de 15 vítimas. Em nove casos, os réus já morreram e as ações se extinguem com a morte dos acusados (aqui se enquadram, por exemplo, quatro ações contra Sebastião Curió Rodrigues de Moura, que comandou a campanha de extermínio contra a Guerrilha do Araguaia, e morreu em 2022, aos 87 anos). Outros seis foram extintos por decisões da Justiça. O MPF não pode pedir reabertura de ações penais que transitaram em julgado. 

“Se as decisões que bloquearam a continuidade das ações penais transitaram em julgado  não tem muito o que fazer porque não há revisão penal em prol da acusação em nosso sistema de processo penal”, afirma o advogado Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça e ex-Vice-Procurador-Geral Eleitoral. 

Aragão ressalta, porém, que novas ações poderão ser propostas pelo MPF relativas a outros casos de desaparecimento, que giram em torno de 200 dos 434 registros apontados no relatório da Comissão Nacional da Verdade e essas ações “não terão qualquer obstáculo prescricional”. 

A procuradora regional da República Eugênia Augusta Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, concorda: “tem muita gente viva ainda que não foi processada”, referindo-se a agentes da repressão autores de graves violações de direitos humanos na ditadura.

O deputado Rubens Paiva: corpo nunca foi encontrado
Caso do político e engenheiro civil Rubens Paiva, retratado em Ainda Estou Aqui, é um dos 18 que podem ser destravados caso entendimento sobre Lei da Anistia seja alterado

Ações criminais que podem ser destravadas caso o STF julgue que a Lei da Anistia não vale para casos de desaparecimento:

  1. Alex de Paula Xavier Pereira e Gelson Reicher;
  2. Ana Rosa Kucinski Silva, Armando Teixeira Frutuoso, David Capistrano da Costa, Eduardo Collier Filho, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, João Batista Rita, João Massena Melo, Joaquim Pires Cerveira, José Roman, Luiz Ignácio Maranhão Filho, Thomaz Antonio da Silva Meirelles Netto e Wilson Silva;
  3. André Grabois, João Gualberto Calatrone e Antonio Alfredo de Lima;
  4. Aylton Adalberto Mortati;
  5. Carlos Nicolau Danielli;
  6. Carlos Roberto Zanirato;
  7. Divino Ferreira de Souza;
  8. Edgar Aquino Duarte;
  9. Elson Costa;
  10. Helber José Gomes Goulart;
  11. Joaquim Alencar de Seixas;
  12. Manoel Lisboa de Moura e Emanuel Bezerra dos Santos;
  13. Mário Alves de Souza Vieira;
  14. Osvaldo Orlando da Costa (Osvaldão);
  15. Paulo de Tarso Celestino da Silva;
  16. Rubens Beyrodt Paiva;
  17. Sônia Maria de Moraes Angel Jones e Antônio Carlos Bicalho Lana;
  18. Virgílio Gomes da Silva.

Lei da Anistia: casos sem desaparecimento não poderão ser revistos

Pela forma como os ministros do STF votaram para que os casos de desaparecimento sejam analisados na repercussão geral não é possível afirmar que a Lei de Anistia será afastada em plenário, mas já é possível observar que 23 ações (41% do total) ficariam de fora do entendimento, já que não envolvem desaparecimento. São casos em que os corpos das vítimas foram entregues às famílias ou em que não houve homicídio, como em denúncias de tortura feitas pelo MPF.

Não seriam atingidos pelo resultado da repercussão geral casos rumorosos como o do Atentado do Riocentro, o processo que apura os estupros sistemáticos sofridos por Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis (RJ), o processo que denuncia os acusados pela morte de Vladimir Herzog, ou processar os torturadores de Frei Tito, frade dominicano acusado de integrar a Aliança Nacional Libertadora, de Carlos Marighella, torturado por um mês e que, após ser trocado pela liberdade do embaixador suíço Giovanni Bucher, exilou-se na França, onde se matou aos 28 anos.  

Segundo o advogado Eugênio Aragão, uma vez analisada a repercussão e decidido que a Lei de Anistia não se aplica a casos de desaparecimento, o efeito de decisão é imediato e “poderão ter curso normal” as 18 ações. Um outro cenário é de que a decisão pode ser modulada, ou seja, aplicada a casos de desaparecimento, mas com ressalvas, a exemplo dos casos em que houve também ocultação de cadáver, crime entendido como contínuo até a localização do corpo – nesse caso, apenas nove ações poderiam prosseguir.

Uma outra possibilidade seria a de afastar a Lei da Anistia em casos de desaparecimento, mas também internalizar decisões de cortes internacionais sobre violações de direitos humanos no Brasil, permitindo que todas as ações penais em que os réus não morreram ou não foram arquivadas pela Justiça terminassem, o que destravaria 39 ações. 

“Quando vejo o número de processos que ainda teriam chance de punição a depender do resultado da repercussão geral, entendo que é mais um reflexo da não-Justiça”, reflete a procuradora Eugênia Gonzaga, que desde 2007 defende que crimes cometidos por ex-agentes da ditadura são passíveis de punição. 

Edição:
Rosinei Coutinho/SCO/STF
Gustavo Moreno/STF
Arquivo pessoal família Paiva
Clarice Castro/MDHC/Ascom

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