No início de uma noite de terça-feira, a Avenida 18 de Julho, que corta o centro de Montevidéu, começa a ser ocupada por uma marcha de pessoas. Idosos, adultos, jovens e crianças levam mate e garrafas térmicas debaixo do braço, alguns com cartazes e camisetas com um símbolo que identifica a causa de estarem ali: a flor da margarida faltando uma pétala, que representa os desaparecidos durante o período da ditadura cívico-militar no Uruguai (1973-1985).
Como em todo 20 de maio desde 1996, é em silêncio que familiares de uruguaios desaparecidos pela ditadura exigem as respostas que ainda não chegaram. ‘‘Onde estão?’’, é um dos lemas da Marcha do Silêncio que, neste ano de 2025, chegou à 30ª edição. Além do ato na capital do país, outras marchas foram mobilizadas, desde o interior do Uruguai a outros países, como o Japão.
Nos arredores da Faculdade de Direito, na Praça dos Desaparecidos, sai a marcha liderada por retratos em preto e branco. Conforme ela avança, a rua vai abrindo passagem, se juntando à massa que caminha. A maior parte do tempo, o único som ouvido é de alguma criança ou dos drones que sobrevoam para registrar o ato.
Por que isso importa?
- Assim como no Brasil, a ditadura do Uruguai também levou a prisões arbitrárias, desaparecimentos e mortes de opositores ao regime.
- Promotoria tem conseguido condenações de crimes da ditadura e investigações têm encontrado respostas sobre os desaparecidos.
Karina Tassino, 55 anos, caminha junto a três gerações da família. O pai dela, Óscar Tassino Asteazú, funcionário público, militante comunista, foi sequestrado pela ditadura aos 40 anos, em julho de 1977. Dados do governo uruguaio contam que ele foi levado ao Centro Clandestino de Detenção e Torturas de La Tablada. Em 1980, depois do governo dizer por anos não saber sobre a situação e que ele não havia estado preso, foi confirmado a um grupo de trabalho da Organização das Nações Unidas (ONU) que Tassino era requerido por atividades subversivas. Cinco anos depois, a mulher dele, Disnarda Flores, também presa política, denunciou seu desaparecimento à Justiça.
Em setembro do ano passado, a Suprema Corte de Justiça do Uruguai confirmou a condenação de 2023 de dois militares por crimes de lesa-humanidade, incluindo a desaparição forçada de Tassino. Foi a primeira vez que a corte reconheceu o crime como tal. Antes, casos assim eram tratados como homicídio. O corpo dele nunca foi localizado.
‘‘Minha avó morreu sem saber o que aconteceu com o filho. Minha mãe morreu, meu irmão Gabriel morreu aos 45 anos, meus tios morreram sem saber. Esperamos quase 50 anos para levá-los à Justiça com todas as garantias da lei’’, diz Karina.
‘‘É um crime que se comete hoje porque o desaparecimento segue hoje. Por isso demos ênfase, quando a sentença da Corte Internacional de Direitos Humanos [em 2021], que abarcava cinco casos, mas que foi coletiva, que é um tema da sociedade. Vamos seguir sendo indiferentes? Que democracia completa vamos ter com esses casos de desaparecimento e impunidade?’’.

Quase 200 pessoas estão na lista de desaparecidos pela ditadura uruguaia
A lista oficial de desaparecidos do Uruguai tem 197 nomes, incluindo alguns localizados, mas que seguem na contagem porque foram vítimas do crime de desaparecimento pelo terrorismo de Estado. Há estimativas de que ela pode ser maior. Em um comunicado, a organização de Mães e Familiares de Uruguaios Presos Desaparecidos (Famidesa) diz que ‘‘se desaparecer nossos familiares, torturá-los e eventualmente assassiná-los são atos de crueldade infinita, mantê-los desaparecidos até hoje é a continuação perversa do crime, o que corrobora para o caráter permanente da desaparição forçada.’’
A família de Zelmar Michelini, político e jornalista, atuou na criação da primeira marcha de maio em 1996, na data que marcava vinte anos do sequestro e assassinato dele e de outras três pessoas – Héctor Gutiérrez Ruiz, Rosario Barredo e William Whitelaw. A chacina ocorreu em Buenos Aires, em uma ação da Operação Condor. Os corpos dos quatro foram encontrados com sinais visíveis de tortura no dia 21 de maio.
O Uruguai já havia tido manifestações de familiares, mas a partir dali, criou-se o ritual de que as pessoas saíssem em silêncio: silêncio pelas vítimas e para que ninguém levantasse outras causas em meio a manifestação, explica Rafael, filho de Michelini.
Ele avalia que a chacina que vitimou o pai marcou o princípio do fim da ditadura no Uruguai, ainda que a retomada democrática tenha demorado uns anos mais.
Lema contra ditadura no futebol
‘‘Quando um dos principais times de futebol do Uruguai, o Peñarol, sai a campo com uma camiseta que diz ‘Todos Somos Familiares’, que é o lema dos familiares de desaparecidos, é porque não importa se você tem laços de sangue ou não. É um tema político, não político-partidário, que a sociedade como um todo tem que abraçar. Buscar verdade, justiça, memória, nunca mais terrorismo de Estado e seguir perguntando onde estão’’, diz ele. ‘‘Isso já é algo imparável’’.

Jogadores do rival do Peñarol, o Nacional, também usaram camisetas com a mensagem antes deste 20 de maio. Em comunicado, porém, o clube se disse comprometido com ‘‘valores democráticos, direitos humanos e memória histórica do país’’, mas que mantém ‘‘neutralidade diante de manifestações políticas e sociais.’’ O presidente do Peñarol, Ignacio Ruglio, publicou uma mensagem dizendo que autorizou a camiseta e que entendia que a causa dos desaparecidos ‘‘não tem nada a ver com política’’ e deveria doer em todos.
Horácio Goicoechea, irmão de Gustavo Goycoechea, sequestrado em Buenos Aires com a mulher, Graciela Basualdo, em 1977, viajou da casa em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, até Montevidéu, para caminhar pedindo respostas por ele. ‘‘É impressionante. A sensação é de que eles estão junto ali’’, diz emocionado. ‘‘Parece que logo você vai vê-los.’’

Uruguai enfrenta impunidade dos militares da ditadura
O primeiro caso de desaparecimento por vias institucionais no Uruguai é de 1973, mesmo ano em que é instalada a ditadura no país, explica Nilo Patiño, integrante da organização de Mães e Familiares e co-autor de ‘‘Desaparecidos – Em busca da verdade’’ (2024). Antes disso, há casos que se deram pelas mãos de esquadrões paramilitares ou parapoliciais.
‘‘É coincidente com o período que as Forças Armadas tomam o poder, ou seja, dão o golpe de Estado’’, afirma ele, primo de Nebio Ariel Melo Cuesta, sequestrado em Buenos Aires.‘‘As desaparições são institucionais, porque foram instituições de Estado que fizeram desaparecer pessoas quando elas eram inconvenientes a seus planos’’.
Os avanços se deram aos poucos. Em 2000, a Comissão para a Paz reconheceu pela primeira vez a existência de desaparecidos no país. Cinco anos depois, com o primeiro governo da Frente Ampla, coalizão de esquerda que levou Tabaré Vázquez à presidência, equipes entram pela primeira vez em edifícios militares para buscas. Em 2018, começa a atuar uma promotoria especializada em crimes de lesa-humanidade, seguindo outra condenação do país em corte internacional, no caso do sequestro de Macarena Gelman.
Enquanto o Brasil teve a lei de anistia, em 1979, que impediu que se processasse ou punisse repressores por crimes durante a ditadura (1964-1985), o Uruguai teve a chamada ‘‘lei de caducidade’’, em 1986. Mantida após plebiscito, ela não era exatamente uma anistia, já que deixava brechas para alguns processos. Acabou derrubada anos depois.
Ricardo Perciballe, promotor, diz que a promotoria tem hoje 40 causas processadas, 30 condenações e 15 denúncias pendentes, o que leva a total de cerca de 120 pessoas imputadas.
‘‘Hoje temos poucas causas onde seguimos com investigação e um número significativo entre elas já têm imputação pela promotoria, falta apenas a resolução judicial. Todas as imputações realizadas pela promotoria, 100% dos casos, foram contemplados e acolhidos pelos tribunais. Ou seja, não temos nenhuma causa onde tenhamos feito uma imputação e o poder judicial não a tenha contemplado’’, conta ele. ‘‘E a Marcha do Silêncio é um termômetro grande para constatarmos como está a temperatura do tema [junto à população]’’.
Com o novo governo da Frente Ampla, com Yamandú Orsi como presidente, há expectativas de avanços. Na posse, em março, ele e sua vice, Carolina Cosse, quebraram o protocolo para cumprimentar familiares de desaparecidos. Um dia após a Marcha do Silêncio, foram anunciadas medidas como levantar travas burocráticas que atrapalhem a obtenção de informações sobre locais onde pode haver corpos, remover referências a pessoas condenadas por crimes contra a humanidade de estabelecimentos e do espaço público e um pente fino sobre militares foragidos fora do país, mas que seguem recebendo aposentadoria.
‘‘Uma das 63 prioridades estabelecidas pelo presidente tem a ver com fazer todo o possível para conseguir a informação que nos permita encontrar os desaparecidos ou ter a verdade para entregar às famílias, caso os restos não possam ser encontrados’’, afirma Alejandra Casablanca, diretora da Secretaria de Direitos Humanos para o Passado Recente.
‘‘São anúncios muito importantes, que estão em sintonia com que pedimos’’, diz Ignacio Errandonea, integrante de Mães e Familiares. ‘‘Eu acho que a força nisso está em que grande parte da cidadania tem feito sua a nossa reivindicação, o que faz com que o clamor popular cresça, que os governantes escutem e ajam em consequência.’’

‘‘Mentem. Estavam aí”: as buscas pelos desaparecidos
A 500 metros do ponto final da Marcha, na Plaza Libertad, conhecida como Cagancha, em frente à sede da Intendência de Montevidéu, o silêncio da Marcha se quebra. Um telão passa fotos dos desaparecidos, alguém lê seus nomes e a multidão responde: presente. Entre eles está Eduardo Bleier, militante do Partido Comunista, cujos restos foram localizados em 2019 no Batalhão 13 e o colocou entre um dos oito desaparecidos localizados no Uruguai. Um dos fatores que ajudou na identificação foram marcas nos ossos que indicavam alguém que costumava tocar violino.
Para Gerardo Bleier, filho e que trabalhou em políticas sobre buscas, o encontro dos restos do pai ajudaram a mostrar para boa parte da população o que foi o terrorismo de Estado. ‘‘Que alguns senhores enterrem, matem, torturem e assassinem a um indivíduo, escondam isso em um cemitério clandestino, dentro de um local que pertence às Forças Armadas e ainda ocultem por 43 anos, abriu [uma percepção]’’, avalia ele.
Cada um em sua família viveu a ausência inexplicada de forma diferente, com diferentes danos e efeitos na vida. Receber a notícia da localização dos restos do pai, porém, abriu outro processo complexo para Gerardo, que tem o olhar de Eduardo.
‘‘No processo anterior, o essencial era seguir ‘vivendo’. Por muito tempo não se sabe se ele está preso num hospital psiquiátrico ou em qualquer circunstância onde pode estar ‘vivo’. Mas conforme você vai incorporando dados da realidade, ela vai te levando a uma racionalidade natural e você precisa dizer: ele morreu. Isso de decidir que a pessoa morreu é um processo muito doloroso, conheço poucas pessoas que o resolveram bem”, diz ele, que dedicou a maior parte da vida às buscas por desaparecidos.
A identificação de Bleier foi feita pelo GIAF – Grupo de Investigação em Antropologia Forense. As buscas feitas pelo grupo começaram desesperançadas em 2005, já que a narrativa oficial dizia que as vítimas haviam sido desenterradas, cremadas e tiveram as cinzas espalhadas. Quem caminha por Montevidéu neste maio se depara com cartazes com imagens dos restos encontrados e a frase: ‘‘Mentem. Estavam aí.’’
‘‘Há uma mescla de coisas que confabulam contra nossa investigação. Uma é o contexto repressivo, em que se deram os desaparecimentos, que deixa pouca informação sobre para onde foram levados. Em alguns casos, há relatos de sobreviventes que reconheceram a voz, que por algum traço físico suspeitam que viram essas pessoas nos centros de detenção, mas aí termina o rastro. Não é uma história que nos permita ter certeza do paradeiro’’, explica Alicia Lusiardo, coordenadora do grupo.
‘‘Além disso, o ocultamento de corpos aqui se deu de forma diferente de outros países. Não temos valas clandestinas, foram enterros individuais. Isso é um problema porque são enterros difíceis de serem detectados na paisagem, ainda mais em locais grandes como territórios militares. Estamos falando de 400 hectares de terra para ocultar um corpo’’, explica ela.
Em geral, a identificação de ossadas por eles leva alguns meses. O caso mais difícil até aqui, porém, demorou um ano. Foi o de Amelia Sanjurjo Casal, também comunista, grávida, a única mulher localizada no país. Há casos em que o DNA disponível não é o ideal para comparações, que seriam de pais ou filhos, o que pode levar a exumações de familiares falecidos para extração de amostras, explica Lusiardo.
A maioria dos desaparecidos uruguaios foram localizados na Argentina. Registros policiais, com impressões digitais feitas na época das mortes, possibilitaram a identificação anos depois. A última identificação através de restos mortais ocorreu em setembro de 2024, no Batalhão 14. Era Luis Eduardo Arigón, comunista e sindicalista, submetido a torturas em La Tablada.
O dado reacendeu as esperanças na família Tassino, já que Óscar também passou por lá. ‘‘Essa é a lógica, que ele também esteja ali. Mas não está. Há quanto tempo estão cavando e buscando, buscando, buscando?’’, questiona Karina.

“O que aconteceu não será esquecido”, diz familiar em busca de respostas
Em 2020, a pandemia do novo coronavírus marcou o primeiro 20 de maio em que a marcha não pode sair às ruas. Como solução, a data ocupou mobilizações convocadas e espontâneas durante todo o mês, em vários lugares. Um movimento que ajudou a expandir a adesão, que hoje conta com cada vez mais jovens na causa.
Dentro da organização de familiares, Kiara Lucas, 25 anos, é a caçula. O tio dela, Enrique Joaquín Lucas, integra a lista de desaparecidos. Quando criança, ela lembra de tentar entender o que havia acontecido na família e do impacto que sentiu com um vídeo no Museu da Memória. Quando ela decidiu ingressar no movimento organizado, em 2021, foi a primeira da família.
‘‘Acho que há um sentimento em comum na sociedade de que o que aconteceu foi uma injustiça, que já deveria estar resolvida e que não queremos que volte a acontecer”, conta.
Karina Tassino era adolescente, como tantos estudantes uruguaios em meio à marcha hoje, quando a ditadura chegou ao fim no Uruguai. No seu aniversário de 15 anos, parecia uma certeza que o pai, desaparecido então há quase oito anos, reapareceria. Ela lembra que para a avó era uma certeza, por que seguiriam com ele preso? Não passava pela cabeça que alguém o matasse e não entregasse o corpo à família.
Karina cresceu com essas questões. Aos 5 anos, ela foi deixada sozinha com os dois irmãos também crianças em casa, à noite, quando a mãe foi levada presa. Durante nove meses, não se teve qualquer notícias sobre seu paradeiro. Quando a localizaram em uma prisão, Karina se deparou com uma mulher em um macacão cinza, cabelos grisalhos, cercada por homens armados, em um espaço com cheiro de lugar fechado. Até os 9, ela não teve a mãe no dia-a-dia. O pai tentava fazer visitas mesmo estando na clandestinidade, mas quando ela tinha sete anos, toda notícia sobre ele cessou.
‘‘Todas as vivências são intransferíveis, quase todos tivemos alguém que morreu porque adoeceu ou teve um acidente, alguma coisa triste, mas o desaparecimento é permanente. A sua cabeça, seu coração não conseguem entender’’, conta.
Embora o apoio às buscas e aos pedidos de verdade e justiça tenham crescido nos últimos anos e mesmo políticos de diferentes cores partidárias se manifestem a favor, há ainda uma reação contrária. Nas redes, comentários falam sobre desaparecidos estarem na Europa, caminho de muitos exilados, ou de serem fictícios. No ano passado, um primo de Karina, que levava a bandeira dos familiares no carro, foi ao supermercado e voltou para encontrar um recado: ‘‘eu sei onde estão e você pode terminar igual.’’ O caso foi registrado na polícia.
‘‘O que precisamos é não deixar que isso morra, porque quando desaparecem [com nossos familiares] é para fazer com que as pessoas esqueçam. Essa batalha eles já perderam no Uruguai. O que aconteceu já não será esquecido’’, diz Javier Tassino, ex-preso político, que aos 79 anos segue esperando notícias do irmão.