Desde que começou a analisar a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a trama golpista, o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não havia liberado nenhum dos acusados do processo. Mas, nesta terça-feira (20), a 1ª Turma decidiu que dois militares “kids pretos” – o general de divisão Nilton Diniz Rodrigues e o coronel Cleverson Ney Magalhães – não serão réus no caso por “ausência de justa causa”, ou seja, por falta de provas consistentes contra ambos. Os dois foram os únicos liberados entre os acusados nos quatro núcleos em que foi dividida a denúncia da PGR ofertada ao STF, que conta com um total de 31 réus, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Junto a outros nove oficiais do alto escalão do Exército e um policial federal, os militares liberados integravam o “núcleo 3” da trama, segundo a PGR. O núcleo teria se envolvido em operações de manipulação, monitoramento ilegal e até mesmo o planejamento de sequestro e assassinato de autoridades.
Por que isso importa?
- Em julgamento marcado pela primeira vez em que acusados pela PGR se livraram da acusação perante o STF, os ministros da 1ª Turma tornaram 10 oficiais e um policial federal réus no caso que investiga tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022.
Um dos principais alvos das operações era o ministro da 1ª Turma Alexandre de Moraes, que votou pela rejeição da denúncia contra os dois militares. Os outros membros do núcleo viraram réus, incluindo o general Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, comandante dos “kids pretos” e membro do Alto Comando à época da trama.
“Se a execução se iniciou, mas o golpe não se consumou, o crime é consumado. Porque, se o golpe for consumado, não há crime a se analisar… ninguém acredita que se houvesse golpe estaríamos aqui julgando esse caso, não?”, disse Moraes na sessão. “Talvez a minha ‘suspeição’ [no caso] fosse analisada pelos ‘kids pretos’”, emendou o ministro, comentando o pedido de muitas das defesas por sua saída do caso.

Durante a leitura de seu voto, Alexandre de Moraes afirmou ainda que ouviu, “de vários generais”, que “agora não havia um ‘inimigo externo’, como o [golpe] de 64, que usava o comunismo, a Guerra Fria… que foi uma tentativa de golpe dos mais radicais entre os radicais”.
“Quebra” da hierarquia e disciplina
Ministros do STF enfatizaram o comportamento dos “kids pretos” e dos militares, agora réus. “Tinha a ‘ideia’ de que as armas usadas eram apenas Bíblias… não há dúvida que, pela natureza das funções, havia pessoas armadas, sim, porque eram militares e policiais”, disse o ministro Flávio Dino, acompanhando o voto de Moraes.
Ministro da Justiça e Segurança Pública no fatídico dia 8 de janeiro, Dino ainda criticou a dimensão simbólica do papel de militares de elite estarem envolvidos no caso. “O que distingue as Forças Armadas de um bando? Hierarquia e disciplina. Sem isso, não existem Forças Armadas, mas outra coisa… não estamos falando apenas de cassação de ministros, mas também do ‘caçar’ ministros”, pontuou Dino ao longo de seu voto.

Já a ministra Cármen Lúcia, ao acompanhar o voto do relator, destacou a dimensão política da trama golpista. “Por que alguns votos não são aceitos na caserna, nos quartéis de polícia, mas são aceitos em outros? Não sei se o que se vê é o ‘inimigo interno’, mas o que acontece frequentemente são os ‘inimigos fantasmas’ – e tudo isso se trata de manter-se no poder”, disse.
“Nestas quatro sessões, não vi ninguém dizer que não aconteceu uma tentativa de golpe. Houve quem disse ‘ah, meu cliente estava, mas não estava fardado’… não se trata de um desfile de moda: trata-se de um atentado contra a Constituição, as instituições e contra pessoas, é disso que estamos a cuidar”, afirmou ainda a ministra.

‘Chumbo trocado’, alfinetadas, pedidos
Os argumentos de grande parte das defesas variaram. Houve abordagens mais discretas, concisas nos termos legais e no tom adotado, e outras menos ortodoxas. Em uma delas, o defensor começou citando, por quase dois minutos, um salmo bíblico no início da argumentação em nome do tenente-coronel – e “kid preto” – Hélio Ferreira de Lima.

Os advogados defendem que o material golpista encontrado com o militar, um dos oficiais que sugeriram ao tenente-coronel Mauro Cid “causar o caos” para forçar Bolsonaro e o Exército a aderirem ao golpe, conforme a delação de Cid, foi produzido apenas porque Ferreira de Lima era um “oficial de inteligência”.
Outro momento inusitado foi quando a defesa do agora réu tenente-coronel Rodrigo Bezerra de Azevedo, suspeito de ser um dos “kids pretos” envolvidos na operação “Copa 2022”, disse, incisivamente, ao ministro Fux: “Um ‘faixa coral’ [segunda graduação mais alta no jiu-jitsu] não vai deixar uma injustiça dessa prevalecer… vossa excelência conhece o que é um ‘caveira’, sei disso”.
O ministro Moraes – principal alvo da fatídica operação – olhava atentamente a cena, enquanto um leve burburinho se fez no auditório da 1ª Turma, como testemunhou a Agência Pública.

Votos apontam para debate sobre as provas
Os votos da 1ª Turma neste quarto julgamento sobre a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023 sugerem muitas discussões futuras sobre o caso, especialmente sobre as provas reunidas até aqui. Ao concordar com a “ausência de justa causa” nos casos do general Nilton e do coronel Cleverson, o ministro Luiz Fux citou outros réus do mesmo núcleo, enfatizando a necessidade de provar seu envolvimento na trama.
Fux mencionou, como exemplo, o caso do coronel Bernardo Romão Corrêa Netto, réu suspeito de articular, com assistentes diretos de comandantes militares, uma carta de oficiais para pressionar o Comando do Exército a aderir ao golpe ainda em novembro de 2022. “Temos de ver até que ponto ocorreu essa pressão ‘de baixo para cima’ no Exército”, afirmou o ministro.

Assistente do comandante militar do Sul à época, o coronel foi para a reserva do Exército apenas em janeiro passado, segundo o Diário Oficial da União – quase um ano depois de ser alvo da Polícia Federal durante as investigações. Único dos réus presente na sessão desta terça no STF, o militar não quis comentar o caso à Pública. Sua defesa disse que falará “apenas nos autos”.

O único caso relativo à tentativa de golpe ainda não analisado pela 1ª Turma refere-se ao ex-apresentador da Jovem Pan Paulo Figueiredo. Ele é acusado de disseminar fake news no período da crise, inclusive para desestabilizar o Alto Comando, pressionando o Exército para aderir ao golpe.
Neto do ex-ditador militar João Batista Figueiredo, ele foi citado por Alexandre de Moraes como um “pseudojornalista foragido” – o comunicador reside nos Estados Unidos e não apresentou defesa, o que pode fazê-lo ser julgado à revelia pelo STF.