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Vítimas e ativistas denunciam omissão de Prevost em casos no Peru. No Brasil, faltam dados sobre as denúncias

Reportagem
22 de maio de 2025
12:00

No primeiro domingo de seu pontificado, no dia 11 de maio, o Papa Leão 14 apareceu do alto do balcão central da Basílica de São Pedro, ao meio-dia em ponto, para falar com uma multidão que o aguardava. A praça e as ruas do entorno da Cidade do Vaticano pareciam bem mais cheias que quatro dias antes, quando, da mesma sacada, o cardeal estadunidense naturalizado peruano Robert Francis Prevost foi apresentado pela primeira vez como o novo chefe da Igreja Católica. No domingo, além de uma mensagem enfática contra a guerra, Leão 14 chamou os jovens a aceitarem as vocações “sacerdotais e religiosas”, com uma exortação firme e direta: “Não tenham medo! Aceitem o convite da Igreja e de Cristo Senhor!”

De baixo, na Praça São Pedro, sobreviventes de abuso sexual praticados por padres e lideranças católicas ouviram estas mesmas palavras com aversão. “Os jovens têm medo. As vítimas têm medo e o papa precisa dizer, com todas as letras, que o estupro de crianças na Igreja é um crime e será punido. Mas ele permanece em silêncio”, afirmou Sarah Pearson, porta-voz da SNAP (Survivors Network of those Abused by Priests). O grupo de sobreviventes esteve no Vaticano para exigir respostas, durante a realização do Conclave e também nos primeiros dias do pontificado de Leão 14. O cenário não é novo, mas o contexto é alarmante: sob uma nuvem de desconfiança, um novo papa, suspeito de acobertar abusos no Peru, assume o trono de São Pedro.

Por que isso importa?

  • O novo papa é suspeito de acobertar abusos no Peru, enquanto era cardeal. Vaticano ainda não se pronunciou sobre o assunto;
  • Grupo de sobreviventes de abusos denuncia impunidade nos casos. Ausência de dados contribui para impunidade na América Latina e no Brasil.

França e Espanha são os países com maior quantidade de casos de abusos sexuais clericais do mundo. Nos últimos 80 anos, a estimativa é de mais de 655 mil vítimas nessas nações. Com base em estudo conduzido pelo Instituto Nacional Francês de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm), a Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja (CIASE) informou, em um relatório, publicado em 2021, que aproximadamente 330 mil menores foram vítimas de abusos na França desde 1950. Outro relatório estima que aproximadamente 440 mil pessoas na Espanha possam ter sido vítimas de abusos sexuais relacionados à Igreja Católica.

Ainda em território europeu, Portugal e Polônia apresentam levantamentos com números expressivos, tendo o primeiro uma estimativa de 4.815 casos de abusos entre 1950 e 2022. O número foi reportado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal, em 2023, no qual também é apresentado o perfil dos abusadores: “Predominam adultos jovens com estruturas psicopatológicas agravadas por fatores de risco como o alcoolismo ou o mau controle de impulsos. Destacam-se as perturbações de personalidade, com facetas socialmente integradas, revelando capacidade de sedução e manipulação.

Na Polônia, foram publicados três relatórios desde 2019. O primeiro considerou 625 casos entre o período de 1990 e 2018, mapeados pela Conferência Episcopal Polaca (KEP). Já no segundo, de 2021, 368 novas denuncias foram recebidas, enquanto o último relatório, apresentado em 2022, adicionou mais 84 novas denúncias de abuso sexual, ocorridas entre 1965 e 2022.

Nos Estados Unidos, o relatório mais abrangente sobre o tema é o John Jay Report, encomendado pela Conferência dos Bispos Católicos dos EUA e publicado em 2004, que estimou 4.392 sacerdotes implicados desde 1950 até 2002.

O papa Francisco deu passos importantes em direção ao combate de abusos sexuais, desde o primeiro ano de seu pontificado, em 2013. Os principais ocorreram em 2019, primeiro com a promulgação do motu proprio Vos estis lux mundi (“Vós sois a luz do mundo” em latim), que obriga clérigos a reportar abusos e estabelece procedimentos para investigação, e depois, com a publicação do Vademecum, o manual sobre a condução de investigações de abuso sexual cometidos por clérigos. Mas não são poucas as críticas sobre a eficácia das orientações do Vaticano.

Praça de São Pedro lotada para pronunciamento Leão 14

O próprio Vademecum trata das investigações canônicas, ou seja, no âmbito da Igreja, mas não obriga a autoridade eclesiástica que têm a ciência do caso a denunciar às autoridades civis. Ativistas enxergam uma brecha para a impunidade, em países onde isso não é legalmente exigido, o que inclui o sigilo da confissão religiosa, que no Brasil é protegido pela Constituição Federal e pelo Código Penal.

Francisco também alterou a constituição apostólica Pascite Gregem Dei (“Apascentai o rebanho de Deus”), em 2021, passando abusos sexuais do capítulo “crimes contra obrigações especiais dos clérigos” para “crimes contra a vida, a dignidade e a liberdade humana” e considerando o abuso de membros de institutos de vida consagrada e outros fiéis, que vão além de clérigos.

Novo papa é acusado de acobertar abusos

É na esteira da atuação do papa Francisco, considerada insuficiente pelos ativistas, que o SNAP lançou o Conclave Watch, uma iniciativa global liderada por sobreviventes de abuso sexual clerical. O observatório foi desenvolvido com base em uma análise de registros públicos, evidências fornecidas por vítimas e denúncias de omissões dentro da Igreja. A iniciativa avaliou o histórico de cardeais papáveis em relação à gestão de casos de abuso sexual, utilizando critérios estabelecidos pelo decreto papal Vos estis lux mundi, ou seja, considerando não apenas os abusadores, mas também os clérigos que possam ter contribuído para o acobertamento de abusos.

O objetivo central do observatório era garantir que a eleição de um novo papa representasse um ponto de inflexão na resposta da Igreja Católica aos casos de abuso sexual. O projeto buscava assegurar que o novo pontífice não tivesse histórico de acobertamento e que se comprometesse, desde o início, a implementar uma política universal e vinculativa de tolerância zero.

“Eu, pessoalmente, e a SNAP, estamos seriamente preocupados com esse novo papa”, afirma o presidente do Conselho da rede, Shaun Dougherty. “Há apenas quatro semanas nossa organização apresentou seis relatórios ao cardeal Parolin, o secretário de Estado, e o cardeal Prevost estava entre os seis primeiros, porque sentimos fortemente que ele nunca deveria ser papa. Pessoalmente, acho que ele não deveria nem mesmo ser cardeal.”

Segundo a SNAP, como provincial dos agostinianos, nos Estados Unidos, Prevost teria permitido que um acusado de abusar de menores, já impedido de celebrar missas, residisse em uma casa dos agostinianos em Chicago em 2000. Além disso, a proximidade com uma escola primária católica tornava a situação ainda mais preocupante. Uma outra informação é a de que, quando Prevost era bispo de Chiclayo, no Peru, três vítimas denunciaram um padre às autoridades civis em 2022, depois que não houve nenhum movimento em seu caso canônico apresentado pela Diocese. Desde então, as vítimas alegaram que Prevost não abriu uma investigação, enviou informações inadequadas a Roma e que a diocese permitiu que o padre continuasse a celebrar missas.

“Ele sabe quem são os padres pedófilos. Ele sabe onde eles estão. Ele tem a obrigação de expor isso aos 1,4 bilhão de católicos no mundo”, afirma o presidente do conselho do SNAP.

A fala indignada tem mais um motivo: assim como muitos membros do SNAP, Shaun Dougherty é um sobrevivente de abuso sexual clerical na infância. Embora já tenha falado publicamente muitas vezes sobre o assunto, se emocionou a relatar para a Agência Pública uma tentaiva de suicídio aos 24 anos e todo o caminho para “reencontrar a alegria”, com ajuda de terapia e do ativismo. “Engoli trezentos comprimidos. Felizmente, sobrevivi. Mas muitos dos meus amigos não tiveram a mesma sorte. Eu os enterrei. Dez, vinte, talvez mais. Todos vítimas. Todos sobreviventes. Todos mortos”.

O ativista, que perdeu a mãe há um ano, revela que não conseguiu comparecer ao velório na paróquia de sua infância, onde foi violentado repetidamente após missas fúnebres. “Roubaram minha fé, minha inocência, minha dignidade”. Dougherty rejeita o uso de eufemismos. “Não vamos suavizar. Não vamos dizer ‘abuso’. Estamos falando de estupro. Estupro de crianças.”

Aos 13 anos, Sebastián Cuattromo sofreu abuso sexual por um religioso do Colégio Marianista

Em 2002, ele buscou o papa Francisco, então cardeal Jorge Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires à época, para denunciar a tentativa da Congregação Marianista de silenciar as vítimas mediante acordos de confidencialidade. Munido de documentos, procurou o arcebispado e foi recebido pelo secretário de Bergoglio. “Queria saber de que lado estavam: das vítimas ou da escola que queria nos fazer calar”, relatou. A resposta: Bergoglio nunca o recebeu pessoalmente. Em seu lugar, Sebastián foi encaminhado ao bispo Mario Poli, que expressou apoio institucional à escola, segundo o relato. “Foi uma resposta marcada por arrogância e subestimação da gravidade do crime. Eu era só um jovem lutando por justiça, e eles me deixaram claro quem detinha o poder”, lamenta.

Quando, em 2013, Bergoglio foi eleito papa Francisco, Sebastián tornou públicas suas tentativas frustradas de diálogo. Em mais de uma década de pontificado, afirma, jamais recebeu qualquer contato, desculpa ou convite ao diálogo. “A Igreja Católica na América Latina continua agindo como se fôssemos o quintal do Vaticano, sem as mesmas exigências de transparência e justiça que vemos na Europa”, denuncia. A Pública pediu respostas ao Vaticano sobre a suspeita de encobrimento de abusos por parte do papa Leão 14, mas não recebeu resposta até a publicação. Também enviamos perguntas à Arquidiocese de Buenos Aires que não respondeu até a publicação.

O apelo das vítimas na América Latina

No mesmo dia em que vimos a fumaça branca sair pela chaminé da Capela Sistina, 8 de maio, a SNAP entregou ao Vaticano uma carta aberta com princípios de justiça que devem ser adotados pelo novo papa urgentemente, entre eles: criação de um conselho global de sobreviventes de abusos que conte com a colaboração da Igreja, mas que não esteja sob seu controle; adoção de uma política de tolerância zero no direito canônico, suporte legal e formação de um fundo de reparação às vítimas que ofereça apoio psicológico, financeiro, além de espaços de memória, e a abertura dos arquivos secretos da Igreja.

Em paralelo, foi apresentada à VELM (Vatican Entity for Listening and Mediation) uma denúncia formal contra o cardeal Robert Prevost, o papa Leão 14, acusando-o de manter padres suspeitos de abuso em atividades pastorais e de ignorar apelos de vítimas enquanto bispo da Diocese de Chiclayo, no Peru. O documento detalha vários casos e sugere que a omissão foi deliberada e sistemática.

Essas revelações tornam ainda mais grave o fato de que, mesmo com diretrizes oficiais da Santa Sé, que orienta o encaminhamento das denúncias, a aplicação dessas normas varia fortemente entre regiões. No caso do Peru, as acusações feitas por duas jovens contra Prevost mostram que, apesar do regimento, a omissão pode manter impune até mesmo o mais alto escalão da Igreja. A porta-voz do SNAP questiona a assimetria, na comparação com Estados Unidos, em que a formação de redes contra o abuso sexual clerial avançou bastante desde que o Jornal “Boston Globe publicizou diversos escandalos em 2002.

“Quando você está em um lugar onde não há esse mesmo tipo de rede de segurança, onde é muito mais difícil processar, é muito mais difícil abrir um processo civil, acho que a igreja tem uma responsabilidade maior com essas vítimas. E as vítimas no Peru não devem receber tratamento desigual em relação às vítimas nos Estados Unidos. Quero dizer, o catolicismo deve ser universal.O Vaticano não pode controlar as leis dos Estados Unidos, do Peru, da Itália. Mas pode controlar a lei de sua igreja. Portanto, eles não deveriam estar tratando uma vítima nos Estados Unidos melhor do que uma vítima no Peru”.

O novo Papa, no entanto, ainda não se pronunciou sobre o tema. E embora a Santa Sé possua diretrizes internas, como o Vademecum, ativistas denunciam a distância entre as normas e sua aplicação real — especialmente na América Latina. “O fato da América Latina ser o maior continente católico do mundo afeta muito o quanto que se consegue desconstruir a estrutura clerical e como se lida com assuntos mais complexos”, explica Suzana Regina Moreira, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro e doutoranda pela mesma instituição.

Leão 14 fez seu primeiro pronunciamento exortando jovens a aceitarem vocações sacerdotais

“Quando começou a explodir mais a questão dos abusos sexuais durante o pontificado do papa Francisco, com as implementações que ele tentou colocar nos diversos países da América Latina, foi muito lento o processo para pegar essas diretrizes e implementar a nível nacional. A gente teve o Chile, que foi um dos casos mais graves, a Argentina também. No Brasil, está sendo um processo extremamente lento”.

O relatório Justiça para os sobreviventes de abuso sexual de crianças na Igreja Católica na América Latina, produzido pela Child Rights International Network (CRIN), em 2019, mostra que, apesar de ser o continente mais católico do mundo, a América Latina registra as menores taxas de denúncia de abuso sexual clerical. “Não existem os números, porque ainda não existe o trabalho sendo feito para coletar todos os casos que existem. Quando eu olho até para a minha experiência, junto com comunidades ou as histórias que eu escuto de quem atua mais em comunidades periféricas, rurais, são muitos casos de abusos. Há um silenciamento muito forte das vítimas, das famílias das vítimas, especialmente quando são pessoas menores, porque quando se trata de um padre ou, pior ainda, se for um bispo, às vezes a própria família prefere que a criança não denuncie”, explica Moreira.

Dentre os motivos do silenciamento estaria a tamanha centralidade na figura de padres, bispos, pastores e monsenhores como a única representatividade possível de Cristo na Terra. Alinhada a outras questões sociais construídas a partir de visões e valores patriarcais, o ser clerical tornou-se não apenas parte da estrutura em um nível ritual, mas o ideário específico sobre a possibilidade de ministrar a graça de Deus na igreja.

“O clericalismo é essa lógica que hierarquiza, além da estrutura institucional, hierarquiza a nível relacional humano, de qual é a opinião que o povo nas paróquias acredita quando tem alguma dúvida de fé. É só no padre, é só no bispo. Só eles sabem defender e dizer o que é o que a igreja ensina. E perdem então a dimensão horizontal do que é ser povo de Deus, o que é ser igreja enquanto comunidade”.

Para Moreira, isto é reflexo de um processo histórico de colonização em que missionários foram os principais agentes da evangelização. “Quando a gente olha, por exemplo, para os Estados Unidos, sempre foi uma religião de minoria. Não tinha o aspecto tão colonizador quanto era aqui”, explica. Essa centralidade hierárquica e afetiva torna especialmente doloroso e confuso, para muitos fiéis, lidar com denúncias de abusos cometidos por membros do clero.

Questionar a conduta de um padre, para grande parte das comunidades, é questionar a própria fé. A questão é mais complexa do que parece. “Os abusadores têm essa dupla face. Em muitos casos eles têm realmente uma relação muito afetiva com as pessoas. Então é óbvio que a comunidade não vai pensar que ele cometeu um crime. Vai questionar até o máximo possível, porque tem uma relação pessoal com essa figura”.

A estrutura simbólica do catolicismo latino-americano, moldada por séculos de autoridade clerical, dificulta a quebra do silêncio, mesmo quando o crime é inegável. Um dos resultados disso é a falta de iniciativas da sociedade civil que, no Brasil, por exemplo, não tem força suficiente para quebrar esta barreira.

A ausência de dados no Brasil

No Brasil, o cenário de abusos e estupros praticados por clérigos também é nebuloso. O maior país católico do mundo carece de dados sistematizados, canais transparentes de denúncia e políticas claras de responsabilização. A comparação com outros países é gritante: nos Estados Unidos, promotores estaduais já produziram relatórios com mais de mil nomes de padres acusados, baseados em investigações profundas. No Brasil, nada semelhante foi sequer tentado.

“Não dá nem para dizer que é um estágio embrionário. Simplesmente, não existe”, afirma o jornalista Giampaolo Braga. Em parceria com o jornalista Fábio Gusmão, ele produziu uma investigação de três anos que expôs um cenário alarmante de negligência, falta de transparência e ausência de políticas públicas e eclesiásticas efetivas e deu origem ao livro Pedofilia na Igreja, lançado em 2023.

Durante a apuração, os autores tentaram contato com diversas instâncias da Igreja Católica, inclusive o Vaticano, em busca de respostas e dados. Após dois anos de tentativas frustradas, a resposta oficial foi protocolar e remeteu os jornalistas a uma comissão nacional: o Núcleo Lux Mundi, criado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 2019, com objetivo de implementar as diretrizes motu proprio Vos Estis Lux Mundi, do Papa Francisco. No entanto, o que encontraram foi desanimador.

Segundo Braga, “não havia estrutura alguma de acolhimento de vítimas ou de cobrança das dioceses”. Era só uma comissão de orientação, de boas práticas. Tudo ainda no plano da vontade, sem nada efetivo sendo feito”. “Não tinha nada pronto. Era tudo muito no plano das boas intenções”, completa Gusmão. O que explica este cenário, de acordo com os jornalistas, é que a maioria das dioceses sequer publica nomes de padres afastados ou expulsos por abuso.

O trabalho alcançou 80 Dioceses e Arquidioceses, de 23 estados e do Distrito Federal, totalizando 96 cidades. Os jornalistas chegaram a 170 nomes de padres abusadores no Brasil, mas usaram apenas 108 no livro, destes, apenas 60 foram condenados. “Não colocamos mais porque não tínhamos segurança jurídica. Muitos casos já haviam prescrito ou estavam arquivados”, explica Braga. Porém, a escassez de informações é tamanha que os jornalistas estimam que os 108 nomes representam apenas uma pequena parte do problema. De acordo com o levantamento dos autores, o Brasil possuía, em 2023, 27 mil sacerdotes atuando em 111 mil igrejas.

“No início da apuração, entrevistamos o Tim Lennon, que era o presidente da SNAP à época. Uma das perguntas que a gente fez era: pela experiência de vocês, do clero todo, qual é o percentual de abuso? Ele falou 10%. Aí a gente falou, mas isso no Brasil vai dar 2,7 mil padres! A gente achou 170, botamos 108 no livro. Tem uns 2 mil padres faltando para mais!”, afirmou Braga.

Sobre essa diferença de tratamento entre os casos de abuso clerical ocorridos no Norte e no Sul Global, a organização Adultxs por los Derechos de la Infancia, criada por Cuattromo, em 2012, deu o nome de “duplo padrão da Igreja Católica”. Países do Norte Global, como os Estados Unidos e nações europeias, têm implementado comissões de inquérito, investigações públicas e sistemas de indenização para vítimas, refletindo uma abordagem mais proativa na abordagem de abusos. Ou seja, além da dor individual, há um padrão sistêmico: o tratamento desigual entre vítimas do Norte Global e da América Latina. Em países como Estados Unidos, Alemanha e Irlanda, comissões de inquérito, investigações públicas e indenizações começaram a emergir após pressão social. Já na América Latina, o caso de Cuattromo é uma exceção: o silêncio ainda é regra.

A única saída, defendem os autores do livro Pedofilia na Igreja, é a transparência. Tornar públicos os processos, prestar contas à sociedade e garantir apoio às vítimas. “A luz do sol é o melhor desinfetante”, diz Braga. Além disso, defendem a responsabilização não apenas do abusador, mas de quem acoberta — seja bispo, arcebispo ou funcionário da cúria. Eles propõem que a Igreja informe regularmente o número de denúncias, publique os nomes dos envolvidos após comprovação, colabore com a Justiça comum e ofereça apoio às vítimas. “A vítima tem que estar em primeiro lugar. A Igreja precisa cortar na própria carne, por mais doloroso que seja. Porque esconder é perpetuar. E, nesse caso, perpetuar significa deixar que mais crianças sejam abusadas”, conclui Gusmão. Shaun Dougherty cobra esta mesma transparência, a partir do Vaticano: “O cardeal Prevost sabe quem são os padres pedófilos. Ele tem os relatórios. E agora, como Papa, deve isso a 1,4 bilhão de católicos. Se estamos mentindo, que abra os arquivos e prove”. A denúncia apresentada pela SNAP reacende as discussões sobre o compromisso da Santa Sé com a justiça. Se for ignorada, reforçará a percepção de que, mesmo com documentos formais como o Vademecum, a estrutura da Igreja continua a proteger seus próprios membros, inclusive quando acusados de crimes graves. “A distância entre as normas e sua aplicação real é o que destroi a confiança”, afirma Sarah Pearson, responsável pela comunicação da SNAP. “O Papa Leão XIV sabe o que tem de fazer. A questão é: ele vai fazer?”

Edição:
Elaine Schmitt
Arquivo pessoal

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