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Projeto de lei que desmonta regras de proteção ao meio ambiente deve ir a votação hoje (21) no plenário do Senado

Entrevista
21 de maio de 2025
04:00

Sob o argumento de que irá “desburocratizar” os processos de licenciamentos ambientais no Brasil, dinamizando a economia e gerando empregos, está para ser votado nesta quarta-feira (21), no plenário do Senado, o projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 2.159/2021). Os relatórios foram aprovados nesta terça nas comissões de meio ambiente e de agricultura da Casa e o texto já seguiu, com regime de urgência, para o plenário.

Aprovado em 2021 na Câmara dos Deputados, onde tramitou por mais de 17 anos, o projeto foi apelidado de “PL da Devastação” por ambientalistas, e sua possível transformação em lei é vista por diferentes organizações como o mais grave ataque legislativo ao meio ambiente desde a redemocratização do Brasil. Caso aprovado no Senado, ele voltará à Câmara para mais uma votação, seguindo então para a sanção ou o veto da Presidência da República.

Em entrevista à Agência Pública, Suely Araújo, que presidiu o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) entre 2016 e 2018 e atualmente é coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, analisou alguns dos pontos que considera mais problemáticos no atual projeto. Pela organização, ela assinou uma nota técnica que analisa o texto em tramitação no Senado em comparação com o que foi aprovado na Câmara.

Na avaliação de Araújo, além de abraçar os “principais retrocessos” do PL aprovado na Câmara, os relatores do projeto no Senado, Tereza Cristina (PP-MS) e Confúcio Moura (MDB-RO), alcançaram uma proeza: piorá-lo. “Com o mecanismo do ‘autolicenciamento’, a proposta simplesmente transforma quase todas as licenças ambientais do país, cerca 90% delas, em um simples apertar de botão, em que sai a licença impressa sem a entrega de estudo ambiental pelo empreendedor e sem análise de alternativas técnicas”, critica.

O “autolicenciamento” é apenas um dos muitos pontos negativos do projeto elencados por Araújo. As condicionantes ambientais – espécie de contrapartida social e econômica que empreendimentos de grande impacto têm de oferecer às regiões afetadas – seriam flexibilizadas, assim como a validade de estudos ambientais, que poderiam ser desprezados pelo órgão expedidor das licenças ambientais.

Direitos indígenas e quilombolas, diz a especialista, também passam ao largo do projeto, que restringe a participação de autoridades que respondem pela proteção desses territórios na expedição das licenças, caso essas terras não estejam ainda formalmente homologadas. “É um negacionismo generalizado de direitos coletivos”, sintetiza Araújo.

Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.

O Observatório do Clima produziu uma nota técnica sobre o PL do Licenciamento, em que afirma que os principais retrocessos presentes no texto aprovado em 2021 na Câmara dos Deputados estão mantidos. Quais são eles?

Há, por exemplo, a questão do autolicenciamento. Da forma como está, o projeto, que prevê uma ampliação das possibilidades de licença por adesão e compromisso (LAC), simplesmente transforma quase todas as licenças ambientais do país, cerca de 90% dos processos, em um simples apertar de botão em que sai a licença impressa, sem entrega de estudo ambiental pelo empreendedor e sem análise de alternativas técnicas locacionais.

O que o empreendedor botar no papel, vai ficar. Esse é o pior artigo, que faz do PL o caso mais grave de retrocesso em políticas ambientais nos últimos 40 anos. Além disso, contraria o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que determina que a LAC dos estados, que já existe hoje, só pode ser aplicada em empreendimentos de baixo risco e pequeno potencial poluidor.

Só que o texto do PL inclui [a possibilidade de que empreendimentos de] médio impacto e médio potencial [também peçam a LAC]. Com isso, eles pegam praticamente 90% dos processos de licenciamento, porque nem 10% dos processos de licenciamento têm o EIA, o estudo ambiental completo [esses não podem ser feitos via LAC].


Então isso implode com o licenciamento ambiental. Está nos dois textos [Câmara e Senado], e o texto do Senado consegue piorar, porque fala que a única coisa que o empreendedor entrega na LAC é um relatório de caracterização do empreendimento.

Há ainda uma emenda adicionada no Senado, um parágrafo que fala que a análise do relatório do empreendimento será feita por amostragem.

Ao priorizar o autolicenciamento e a flexibilização dos estudos ambientais, das condicionantes ambientais e do monitoramento, na prática, é possível afirmar que o licenciamento ambiental se tornará uma mera formalidade?

Essa é a questão. Eles veem o licenciamento como entrave, e entrave se tira da frente. Então eles priorizaram o autolicenciamento, sem estudo ambiental prévio. É o único tipo de modalidade de licenciamento que não entrega estudo, só entrega uma descrição, com algumas condicionantes prontas. Isso significa que ninguém vai analisar o local, nem alternativas técnicas, nem locacionais. O PL fere de morte a avaliação de impactos ambientais, como é praticado no Brasil e no mundo.

A avaliação de impactos ambientais, que precisa de análises alternativas, eles eliminam, porque na LAC o empreendedor entrega o que quer fazer. E pelo texto do Senado, ninguém nem está obrigado a ler isso. Bota no computador alguma inteligência artificial que seleciona as condicionantes e acabou.

Outro ponto destacado na nota técnica é de que o PL pode não só aumentar a poluição e o desmatamento, mas as desigualdades sociais. Como?

Ao tratar das condicionantes, o PL procura afastar todas aquelas que têm um perfil de políticas públicas.

Hoje existem condicionantes para mitigar impacto e para compensar. E uma das áreas em que essas condicionantes são aplicadas é o que a gente chama de meio socioeconômico. Por exemplo, se uma cidade, onde se instalou uma hidrelétrica, multiplicou por cinco seu tamanho em pouquíssimos anos, o empreendedor, que é o concessionário da hidrelétrica, tem que assegurar, por um tempo, a instalação de escolas, de postos de saúde, porque a prefeitura não vai ter dinheiro para isso. Estamos falando de cidades que multiplicaram várias vezes de tamanho em poucos anos, mas que ainda nem estão recebendo royalties ou qualquer compensação em razão da obra.

Mas pelo projeto, a hidrelétrica não mais teria de se responsabilizar por contrapartidas consideradas “sociais”. Parte-se do princípio de que tudo isso tem de cair no colo do poder público. Mas é claro que naquilo que é decorrente diretamente da obra, o empreendedor teria de ter responsabilidade. Assim como por ajudar a fiscalizar um desmatamento que está aumentando demais por causa da obra.

A nota técnica aponta, ainda, pontos do PL que seriam inconstitucionais. Se aprovadas, é possível que as novas regras de licenciamento ambiental cheguem ao STF, sendo anuladas pela corte?

Não tenho dúvida nenhuma, e provavelmente [será judicializado] por mais de um autor, entre os legitimados para irem diretamente ao STF. Porque tem vários pontos sobre os quais o Supremo já tomou uma decisão contrária [ao que o PL propõe].

Um dos exemplos é a LAC, que o Supremo decidiu que só pode ser usada em empreendimentos de baixo risco e pequeno potencial poluidor. O PL está contrariando isso.

Tem outro ponto, que é a parte das autoridades envolvidas no processo de licenciamento. Isso é inconstitucional de pai e mãe. Pelo PL, só seriam chamados para se manifestar os órgãos ligados à proteção dos direitos indígenas e dos quilombolas se forem [afetados pelo empreendimento] terra indígena homologada e território quilombola titulado.

Quer dizer, um território pode não estar titulado por omissão do Estado, e a partir dessa omissão estatal, o PL pretende tornar invisível perante o licenciamento ambiental o direito indígena e quilombola. Acontece que tanto os direitos indígenas quanto os direitos quilombolas estão expressamente defendidos na Constituição.

O PL estabelece que os pareceres de órgãos técnicos de Estado (como Funai) não tenham caráter vinculante, ou seja, poderiam ser desconsiderados pelos órgãos licenciadores. Como a senhora avalia este ponto?

Trata-se de uma desconsideração da importância dos direitos indígenas, dos direitos dos quilombolas, da importância do patrimônio histórico do país, da importância da saúde pública, porque tem processo em que o Ministério da Saúde se manifesta, quando o projeto é em zonas endêmicas de malária, por exemplo.

Então, é desconsideração de muita coisa. É um negacionismo generalizado de direitos coletivos.

Desde a promulgação da Constituição de 1988 tramitam no Congresso projetos de regulamentação nacional do licenciamento ambiental. Por que é tão difícil chegar a um consenso sobre o tema no legislativo?

O primeiro projeto foi de 1988, do ex-deputado Fabio Feldman. Ele queria regulamentar o EIA [Estudo de Impacto Ambiental], mas no curso desse processo, o conteúdo foi ampliado para regulamentar, em geral, o licenciamento ambiental. Esse processo tramitou por muitos anos e acabou sendo arquivado. Aí, em 2004, começou esse processo em que nós estamos hoje.

Ele começa por um parlamentar ambientalista, o ex-deputado Luciano Zica. Ele tem uma trajetória na área de qualidade ambiental de cidades e era da bancada ambientalista. Com o passar do tempo, esse texto, principalmente por influência da bancada ruralista e da Confederação Nacional da Indústria, que atuam juntas nesse processo, foi se tornando a lei da não licença e a lei do autolicenciamento.

Isso realmente significa um retrocesso histórico. Eu não conheço um texto com tantos problemas para a legislação ambiental como esse. A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que institucionalizou o licenciamento em nível nacional, é de 1981.

Desde então, não vai haver nada com retrocesso tão forte. O licenciamento pode ser racionalizado, ninguém nega isso. Agora, o que eles estão fazendo é implodir com o licenciamento.

É muito assustador, é uma ferramenta que é importante em todos os países que têm política ambiental, é a principal ferramenta de prevenção de danos ambientais e socioambientais que existe no país. Um projeto como esse, eu acho que era melhor jogar fora e ficar com a confusão normativa que temos hoje, porque ninguém vai ganhar com esse texto.

E não vai trazer segurança jurídica, porque os próprios processos de licenciamento vão ser judicializados, mesmo que o conteúdo esteja em lei.

O texto em votação no Senado põe em risco a segurança hídrica nacional?

Sim, porque desvincula a outorga dos direitos de recursos hídricos e a certidão de uso do solo. A outorga é dada pelos órgãos de gerenciamento de recursos hídricos, e a certidão de uso do solo, pelos municípios. O projeto prevê que  o empreendedor, na licença, não precisa provar que tem outorga, nem que tem certidão municipal de uso do solo.

O que vai acontecer? O licenciador vai começar a dar licença, por exemplo, para uma termelétrica que não tem água [garantida]. Se não mostrar no processo que tem outorga de direitos de uso de recursos hídricos, o licenciador pode perder todo o trabalho dele, porque ele vai dar licença para uma termelétrica que não tem como captar água.

Então, essa desvinculação não ajuda em nada. Ela vai atrapalhar o empreendedor em vez de ajudar. Parece que está eliminando a burocracia, mas está atrapalhando, porque as coisas são conectadas. Eu não posso dar licença para um empreendimento, uma indústria em área urbana por exemplo, em uma área que for estritamente residencial. Mas se eu não tiver a certidão municipal de uso do solo, isso pode acontecer.

Se aprovado, o PL pode prejudicar acordos comerciais brasileiros com o exterior, ao contrariar compromissos internacionais de proteção ao meio ambiente assumidos pelo Brasil?

Olha, eu acho que o impacto será até mais amplo, porque os compradores vão saber que os nossos produtos estão sendo gerados sem controle ambiental. Isso vai gerar desconfiança, vai tirar a credibilidade dos produtos brasileiros.

Você enxerga esforços do governo para barrar a aprovação do PL ou para amenizar seu atual teor?

A ministra Marina Silva [do Meio Ambiente e Mudança do Clima] tem se manifestado com muita preocupação sobre as consequências do projeto. Há uma posição da liderança do governo que aponta problemas no projeto. Mas, na prática, essas manifestações ainda não têm tido a repercussão necessária. O governo não está conseguindo colocar obstáculos na votação desse texto. A impressão que dá é que vai passar de tratorado.

É possível acelerar os processos de licenciamento ambiental sem desbaratar a legislação que protege o meio ambiente?

Processos mais ágeis serão conseguidos com estudos ambientais melhores. Muitas vezes, no processo, o que o gestor agroambiental faz é devolver o estudo várias vezes porque ele faz uma demanda e o empreendedor nunca entrega o material completo.

Isso está acontecendo, por exemplo, no processo da perfuração do Bloco 59 na Foz do Amazonas. A Petrobras já teve N oportunidades de completar o estudo. O problema da incapacidade do empreendedor de entregar estudos completos ou de entregar estudos bons, robustos, é notório.

Muitos órgãos ambientais sofrem com esse problema. E vários tipos de empreendedores, tanto públicos quanto privados. Esse é um problema grave no licenciamento. Estudos insuficientes, malfeitos, copiados.

Outra coisa: os órgãos ambientais têm que ter equipe. Não dá para fazer milagre. Você trabalha com equipes que teriam que ser multiplicadas duas vezes, três vezes, em termos de número de servidores.

Isso no Ibama, que ainda tem servidor. Então, se houvesse estudos melhores e equipes completas, o licenciamento sairia de forma mais ágil.

Por que, mesmo existindo o licenciamento hoje, a gente convive com tantos problemas ambientais?

O licenciamento como é hoje tem problemas, tem dificuldades, mas nós mudamos o país com o licenciamento ambiental. Antes de ser regra nacional, a gente convivia com situações como a de Cubatão [cidade na Baixada Santista], com aquele polo industrial tão grande.

Cubatão era uma área absolutamente contaminada, com a população sofrendo problemas de saúde gravíssimos. Era chamado de Vale da Morte. Entre outros problemas que ocorriam, as crianças nasciam muitas vezes anencéfalas. É isso que o licenciamento ambiental mudou. O licenciamento mudou a realidade do país, com todas as suas dificuldades, com todos os seus problemas.

O duro é ver que em 2025, a gente pode estar voltando à situação como a de Cubatão. Porque isso ocorrerá se esse projeto for aprovado.

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