Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a Newsletter da Pública, enviada sempre às sextas-feiras, 8h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.
Sou fã de podcasts, como ouvinte e como jornalista. Aquela voz, que parece estar falando diretamente com a gente, tem o encanto do bate-papo, em que a simpatia e a curiosidade vem antes do julgamento. Você não precisa concordar para se informar, se divertir, se indignar, pensar e até criticar quem fala – mas precisa ouvir. Uma prática social saudável que está faltando no debate político, como se viu nas cenas de violência explícita contra Marina Silva em sua audiência nesta semana no Senado.
Perdemos muito com isso, não apenas pela agressão a todas as mulheres nas falas misóginas e racistas dos senadores Plínio Valério e Marcos Rogério, mas porque o Brasil precisa cada vez mais da voz de Marina.
Voltando aos podcasts, precisamente ao episódio de 10 de agosto de 2023 de “Mano a Mano”, em que Mano Brown entrevista Marina Silva. Para os que gostam de uma boa conversa, daquelas em que a gente se emociona e aprende, é imperdível.
Se os senadores se pusessem “em seus lugares”, aqueles que ocupam como representantes dos eleitores de seus estados, só teriam a ganhar ouvindo essa mulher, embalada “em caminha de cedro e travesseiro de algodão de samaúma”, que se tornou uma das vozes mais influentes no debate mundial sobre sustentabilidade e emergência climática.
Eu já conhecia Marina há muitos anos como jornalista, já a entrevistei mais de uma vez, e ela sempre me despertou interesse por sua trajetória pessoal e política, que acompanho desde que ela era uma jovem representante dos seringueiros no Acre, formada pelo mestre Chico Mendes e alfabetizada aos 16 anos – mas em 15 dias –, que estudou com freiras católicas e delas se separou para se engajar na militância política.
Mas ouvir a psicopedagoga com pós graduação em teoria psicanalítica, contando aos 65 anos o que aprendeu criança naquele ambiente cultural e natural riquíssimo da Amazônia, me fez entender porque sua voz única e sua disposição ao diálogo – ela rompeu com Lula e o PT, partido que ajudou a criar, mas voltou para desempenhar um papel crucial no governo – representam um trunfo para o Brasil e para todos nós que queremos adiar o fim do mundo.
“Eu vim de uma família de matriarcas, minha avó era uma parteira tradicional, e ela fazia todos os partos da região, fez o meu parto também, ela adorava literatura de cordel, cantava e representava os repentes pra mim. Desde pequenininha eu gostava de estar com ela. Meu tio era mateiro, cerameiro, cesteiro, era xamã, foi criado por indígenas no Alto Madeira. E isso foi muito rico na minha vida: eu sou psicopedagoga e sei que eu fui uma criança muito estimulada. Acho que conheço pelo menos quarenta espécies frutíferas nativas da Amazônia, que você pode comer sem nenhum risco, e muitas espécies de árvores, muitas espécies de cipó, muitas espécies de pássaros. Eu sempre brinco que eu fui analfabeta até os 16 anos, mas eu já era PHD em saber narrativo, que é o saber das populações tradicionais”.
O que Marina aprendeu no Seringal do Bagaço, caminhando 14 quilômetros por dia nos viradouros dentro da mata desde os 11 anos, cortando as árvores e recolhendo a seringa, mas sem deixar de brincar com as irmãs, ouvir as histórias da avó e aprender artesanato com o tio, está na raiz de sua trajetória excepcional e mostra a extensão de nossa ignorância sobre a Amazônia e sobre os povos da floresta, como observa Mano Brown, espantado com as histórias da ministra. “Não é uma vida perigosa?”, pergunta.
“É uma vida difícil e ao mesmo tempo maravilhosa”, ela responde. “Você tem a beleza da floresta, você tem o cheiro da floresta, você tem o encantamento das árvores, da diversidade, dos pássaros. Era divertido tomar banho nos igarapés, onde eu buscava água no meu jamaru (cabaça), mas ao mesmo tempo eu tinha medo da onça pintada, só de ouvir o esturro da bichana, morria de pavor (rs)”.
”Mas a onça é um animal lindo e necessário e toda essa vivência colocou em mim um imenso amor pela floresta”, diz hoje a mulher que aos 35 anos se tornou a senadora mais jovem da história da República, aos 38 anos ganhou o Prêmio Goldman do Meio-Ambiente, o chamado Nobel Verde e, antes de completar 50 anos, já fazia parte de uma lista do jornal britânico Guardian das 50 pessoas que podem ajudar a salvar o planeta.
Marina Silva conheceu o machismo e o racismo na cidade, aos 16 anos, quando lhe disseram que ter cabelo de preta era feio e ela descobriu que o matriarcado que prevalecia em sua família era exceção e não regra no mundo. Também descobriu que a leishmaniose, uma zoonose crônica que afeta 12 milhões de pessoas no mundo, é uma consequência do desmatamento (aquela que ela pegou, e a atormenta até hoje, veio com a abertura da BR 164 nos anos 1970), assim como a malária que matou duas de suas irmãs e o tio xamã.
Mais do que tudo isso, Marina aprendeu que, para além do seu amor, manter de pé a floresta onde nasceu é essencial para toda a humanidade, mesmo para aqueles que desconhecem o seu valor.
“Todo problema dos outros é problema nosso, e nossos problemas são dos outros também”, ela diz, criada na solidariedade comunitária da avó que caminhava quilômetros na floresta e ficava até uma semana fora para atender aos partos, do pai que foi até o terceiro ano do ensino básico mas fazia as contas para os seringueiros analfabetos não serem roubados pelo patrão, do tio xamã que curava “panema” (azar) dos que os procuravam. “Nós éramos uma comunidade de serviço”, ela resume.
É essa mulher que os senadores, do alto de sua ignorância, tentaram calar. E é essa mulher, presidente Lula, que você tem que ouvir de verdade. Sua voz tem a profundidade e a clareza da sabedoria ancestral aliada ao conhecimento científico; sua trajetória única se reconhece como fruto de um coletivo. É disso que a gente precisa para que o futuro não se transforme em pesadelo para nossas crianças.
Ouçam Marina Silva, mesmo que seja para discordar. O Brasil só tem a ganhar com isso.