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Ex-ajudante de ordens afirmou também que Jair Bolsonaro “leu e enxugou” a minuta golpista

Reportagem
10 de junho de 2025
20:17

De costas para um plenário lotado na 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), o tenente-coronel Mauro Cid deu início aos interrogatórios dos ‘arquitetos’ da trama golpista, integrantes do Núcleo 1 do caso, nesta segunda-feira (9) em Brasília (DF).

Logo no início da sessão, o “kid preto” disse que mantinha sua palavra sobre o que já havia contado em suas delações. Mas, ao longo do depoimento, Mauro Cid se mostrou hesitante, esqueceu detalhes de episódios investigados pelas autoridades e minimizou parte das alegações contra outros réus, como observado pela Agência Pública ao longo da sessão.

Antes de ser questionado pelas outras defesas, Mauro Cid confirmou uma impressão amplamente disseminada em relação à crise golpista – a de que havia uma anuência dos militares com as manifestações antidemocráticas em todo o país.

O ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL) foi o primeiro dos envolvidos na trama golpista a dizer, com todas as letras, que, “basicamente, as Forças Armadas apoiaram as manifestações nos quartéis” entre o 2º turno das eleições e o fatídico 8 de Janeiro.

“Os acampamentos nos quartéis sempre tiveram um apoio ‘tácito’ dos militares e, depois daquela nota [dos comandantes militares divulgada em 11 de novembro de 2022], se ‘oficializou’ esse apoio pelas Forças [Armadas]”, afirmou ainda Mauro Cid.

A constatação de Cid foi precedida por outras autoridades nos últimos anos. Uma delas foi o ex-presidente do Superior Tribunal Militar, brigadeiro Joseli Camelo, que já havia dito algo muito similar em uma entrevista exclusiva à Pública, dizendo que os acampamentos “foram tolerados por orientação” do comando das Forças Armadas à época.

Interrogado pelos ministros Alexandre de Moraes, Luiz Fux e pelo procurador-geral da República Paulo Gonet, Cid acrescentou ainda que Jair Bolsonaro “leu e enxugou” a minuta golpista.

“Ele basicamente tirou o nome do presidente do Senado, de quase todos os ministros do Supremo… praticamente só deixou o nome do senhor”, disse Cid a Moraes, referindo-se a quem seria preso no golpe.

O próprio “kid preto”, a plateia e até o ministro Alexandre de Moraes riram no momento, enquanto Jair Bolsonaro não esboçou reação.

Por outro lado, chamou atenção uma tentativa de Cid minimizar um episódio em especial, a reunião de assistentes de comandantes militares em Brasília na noite de 26 de novembro de 2022.

Tal como seus amigos “kids pretos” de longa data que se tornaram réus, Cid alegou que o encontro era uma espécie de “conversa de bar”, com “discussões sobre a situação política do país naquele momento, naturalmente” – nas palavras do ex-ajudante de Jair Bolsonaro.

As investigações apontam que, dias depois, o encontro deu origem a uma carta de oficiais da ativa do Exército ao então comandante militar, general Marco Antônio Freire Gomes, para que a Força aderisse ao golpe. Como já reportado pela Pública, os militares réus por envolvimento nesta reunião usaram argumentos parecidos com o de Cid em suas próprias defesas, negando o teor golpista no encontro.

Braga Netto versus Mauro Cid

As defesas de outros réus exploraram lacunas e contradições do ex-ajudante de ordens da Presidência, em especial as do ex-presidente da República e do general da reserva Walter Braga Netto (PL).

General da reserva Walter Braga Netto durante depoimento no STF
General da reserva Walter Braga Netto durante depoimento no STF

O advogado de Braga Netto, José Luís Oliveira Lima, contestou a acusação de envolvimento de seu cliente com a operação “Copa 2022”, para colocar em xeque a versão de Cid – que afirma ter colocado “kids pretos” em contato com o general e ex-vice na chapa de Bolsonaro.

“Por que o réu colaborador [Cid] demorou mais de um ano para contar à Polícia Federal que havia recebido e entregue o tal envelope com dinheiro?”, perguntou o advogado de Braga Netto, José Luís Oliveira Lima. Em resposta, Cid afirmou que não contou “porque não sabia da existência desse plano, porque tinha sido ‘algo’ que um amigo me pediu, mas eu não sabia que o dinheiro seria usado assim”.

“Este dinheiro não teria sido entregue por alguém do agronegócio, e não pelo general Braga Netto? O senhor tem certeza que deseja manter sua versão, de ter recebido do general essa caixa com dinheiro?”, insistiu o advogado, ao que Mauro Cid manteve sua versão.

“Não estou dizendo que o general Braga Netto planejou essa operação [Copa 2022], nem que ele sabia de todos os detalhes; estou dizendo que ele se encontrou com os oficiais e, dias depois, foi obtido esse dinheiro”, afirmou ainda o ex-ajudante de ordens.

O pano de fundo do diálogo se referia à suposta entrega, pelo general Braga Netto, de dinheiro que seria empregado na operação “Copa 2022” em uma caixa de vinho. No interrogatório desta segunda (9), Mauro Cid explicou ainda que ficou com o pacote “escondido, no pé da minha mesa no [Palácio do] Planalto”, mas alegou “não lembrar” quem lhe entregou a caixa com dinheiro, nem onde ocorreu esta entrega.

Como relatado pela Pública, o ex-ajudante de Bolsonaro delatou que a parte mais violenta da trama golpista teve início entre os dias 9 e 11 de novembro de 2022, como um desdobramento de uma conversa dele com dois amigos militares seus, de longa data, no hotel de trânsito para oficiais dentro do Comando de Operações Especiais em Goiânia (GO) – o reduto dos “kids pretos” do Exército.

Em sua delação, Cid afirma que o general da reserva teria se reunido com dois “kids pretos” – o então major Rafael Martins de Oliveira e o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, amigos de Cid há mais de 20 anos – que queriam “causar o caos” para manter o ex-presidente no poder.

Ambos estão presos desde novembro passado graças à operação Contragolpe, da Polícia Federal, que também prendeu o general da reserva do Exército Mário Fernandes. 

Segundo as investigações, nos dias seguintes teve início a operação “Copa 2022”, para sequestrar e matar autoridades, com suposto uso do dinheiro repassado pelo general Braga Netto em uma caixa de vinho.

Vale lembrar que, até o momento, a identidade de todos os militares “kids pretos” envolvidos na operação “Copa 2022” ainda não foi descoberta pela Polícia Federal.

Moraes para Ramagem: “O senhor escrevia cartas para o presidente e não as enviava?”

Após mais de três horas de interrogatório com Mauro Cid, que colaborou com as investigações, o STF iniciou os depoimentos dos sete réus do Núcleo 1 com o ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e atual deputado federal Alexandre Ramagem (PL).

Na trama golpista, Ramagem foi acusado de ter usado o órgão de para produzir materiais contra a lisura das urnas eletrônicas. Além disso, os investigadores apreenderam materiais de teor antidemocrático produzidos pelo hoje deputado federal, e parte deles tinha uma redação de cartas endereçadas ao então presidente Jair Bolsonaro.

Em sua defesa, Ramagem alegou que os arquivos eram “anotações privadas” e que “nunca” as enviou a ninguém. A tese foi prontamente rebatida pelo ministro Moraes, que indagou: “o senhor escrevia cartas para o presidente [da República] e não as enviava?”.

Ainda assim, o ex-diretor da Abin manteve seu argumento, dizendo que produzia os materiais desta forma para “concatenar as ideias”, que “era algo privado, com opiniões privadas minhas”.

Mas a justificativa não convenceu os interrogadores, como se vê na postura do procurador-geral da República, Paulo Gonet. “O senhor Augusto Heleno tinha anotações privadas que compartilham exatamente das mesmas ideias do senhor Ramagem; o réu ainda sustenta não ter compartilhado os documentos apreendidos com ninguém?”, indagou o procurador-geral.

“Bem, ou eu não passei [adiante] do jeito que está escrito, ou eu não escrevi”, respondeu o ex-diretor da Abin. 

“Nem 5% do material coletado se transforma em relatórios de inteligência”

Um dos materiais que embasam a suspeita contra Ramagem aponta supostas relações de ministros do STF com empresas ligadas à fabricação e venda das urnas para o governo brasileiro. O ex-diretor da Abin atribuiu a produção deste material a dois de seus subordinados, alegando que a “suspeita” não se confirmou – além de ter sido apurada sem conhecimento do próprio Ramagem, ainda segundo ele mesmo.

“Destaco que dois agentes, sem qualquer controle da direção-geral da Abin, lidam com a manipulação de uma questão jurídica envolvendo ministros da Suprema Corte, ligando isso à questão das urnas”, disse o ministro Luiz Fux – que, segundo os materiais apreendidos com Alexandre Ramagem, teria conexão com este mesmo boato.

“Então é possível que a Abin tenha ‘arapongas’ soltos, descontrolados por aí, é isso?”, indagou Fux, ao que o ex-diretor da Abin assentiu, concordando com o ministro do STF.

Perguntado pelo ministro Moraes sobre o relatório que ligava ministros do Supremo às empresas que lidam com as urnas eletrônicas, o ex-diretor da Abin fez ainda uma revelação surpreendente: o governo federal mal aproveita as informações coletadas pelo aparato de inteligência no Brasil.

“A verdade é que nem 5% do material coletado se transforma em relatórios de inteligência. Há um percentual muito pequeno que se difunde [por meio de relatórios de inteligência] a partir do que é coletado”, afirmou Ramagem.

Para Torres, decreto do golpe vira “minuta do Google”

Tal como Alexandre Ramagem, o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e secretário de Segurança Pública do Distrito Federal Anderson Torres também se tornou réu por suspeitas de uso do aparato estatal para desacreditar as urnas. Mas ele enfrenta acusações mais graves, de omissão na segurança das sedes dos Três Poderes e de envolvimento com a redação de um decreto que consolidaria o golpe.

Como em outros momentos ao longo do processo, Torres alegou não ter escrito o documento encontrado pela PF em sua residência, afirmando que o material era uma “minuta do Google”. “Esse material segue disponível até agora na internet, e foi assim que o obtive”, disse em seu interrogatório nesta terça (10).

“Nunca trabalhei isso, o documento era muito mal escrito, cheio de erros de português, concordância. Até o nome do tribunal estava escrito errado. Não é da minha lavra, não sei quem fez, quem mandou fazer e nunca, nunca discuti esse tipo de assunto”, afirmou ainda.

Questionado pelo ministro Moraes sobre a suspeita de bloqueios, por meio da Polícia Rodoviária Federal, em estradas nas regiões onde o presidente Lula (PT) teve um bom desempenho no 1º turno das eleições, Torres se esquivou de qualquer responsabilidade.

Para o ex-ministro, a empreitada era de “iniciativa” da ex-diretora de Inteligência (DINT) do MJSP, a delegada federal Marília Ferreira de Alencar – que também é ré no caso da trama golpista. “Cabe à DINT fomentar essas discussões internas, e essa diretoria dela [Marília] produziu alguns materiais sobre as eleições. Mas o plano foi logo descartado, porque não teria indício de crimes eleitorais… tudo foi uma iniciativa dela [Marília]”, alegou Torres.

O ex-ministro refutou ainda acusações de que teria atuado para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro – como se viu em sua participação na fatídica reunião ministerial de 5 de julho de 2022. “O material ao qual eu tive acesso era sobre sugestões de ‘melhorias’ nas urnas eletrônicas, só isso. Eu não tinha [provas de fraudes nas urnas eletrônicas]… eram apenas colocações pessoais minhas”, disse Torres.

Edição:
Gustavo Moreno/STF
Ton Molina/STF
Ton Molina/STF
Gustavo Moreno/STF
Ton Molina/STF
Fellipe Sampaio/STF
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Ton Molina/STF
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