Sentado no banco dos réus, com a Constituição de 1988 sobre a mesa, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) buscou atenuar, ao longo de duas horas de depoimento no Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira (10/6), atitudes e discursos que hoje o colocam no centro da acusação de tentativa de golpe de Estado. Ele recorreu repetidamente ao argumento de seu “temperamento explosivo” para justificar posicionamentos antidemocráticos, negou ter discutido qualquer proposta fora dos limites constitucionais, mas, contraditoriamente, voltou a relativizar o golpe militar de 1964, ao comparar com o que ocorreu durante seu governo.
“A questão de 64, que a esquerda chama de golpe até hoje, teve o apoio do Congresso Nacional, de toda a imprensa – exceto o jornal Última Hora – da Igreja Católica, das senhoras nas ruas com a marcha da família, a classe empresarial, o pessoal do agro, o apoio externo, tudo isso foi presente”, afirmou ao defender que não se faz golpe “com meia dúzia de pessoas”.
Jair Bolsonaro iniciou seu depoimento às 14h35, visivelmente tenso. Procurava apoio nos papeis sobre a mesa, enquanto respondia as primeiras perguntas, com a boca seca. A partir da terceira resposta, porém, começou a se soltar, ganhando confiança e ajustando o tom da defesa — bem diferente daquele adotado nos palanques. Frente a frente com o ministro Alexandre de Moraes, transformado em algoz pelo bolsonarismo, o ex-presidente adotou uma postura mais cordial, chegando a brincar com o magistrado: “Eu gostaria de convidá-lo para ser meu vice [candidato a vice-presidente] em 2026”, disse, rindo.
Na outra ponta do palco, no centro do plenário da Primeira Turma do STF, Moraes também adotou um tom mais descontraído durante a fase de depoimentos, contrastando com a rigidez demonstrada até então no julgamento da trama golpista. Fez piadas com os advogados e sorriu diversas vezes — inclusive durante a fala de Bolsonaro. Em resposta ao “convite” do ex-presidente, reagiu sorrindo: “Declino novamente.”

Esse clima mais “brincalhão” foi explorado pelas defesas dos oito réus do chamado “núcleo crucial”, e arrancou risos descontraídos da plateia, desviando em alguns momentos a atenção da gravidade do que está em jogo: é a primeira vez na história do país que um ex-presidente e militares de alta patente respondem criminalmente por tentativa de ruptura democrática.
Apesar dos esforços para refutar os fatos apresentados na denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) – e corroborados em depoimentos dos militares que o antecederam – Jair Bolsonaro admitiu ao longo de seu depoimento, que na reunião com comandantes das Forças Armadas em 7 de dezembro de 2022, foi apresentada “de forma rápida” e “numa tela de televisão”, a chamada minuta golpista, que ele referiu-se como um conjunto de “considerandos”. “Mas a discussão sobre esse assunto já começou sem força, de modo que nada foi à frente”, ponderou Bolsonaro.
O ex-presidente negou ter feito alterações no documento, conforme acusou seu ex-ajudante de ordens, coronel Mauro Cid, e disse que o arquivo ao qual teve acesso não tinha previsão de prisão de autoridades. “Só tinha considerandos lá”, reforçou outra vez. “Eu refuto qualquer possibilidade de falar de minuta de golpe, que não esteja enquadrada dentro da Constituição brasileira”, destacando que “não procede o enxugamento [do documento]”, relatado por Cid.
Jair Bolsonaro afirmou ainda ter cogitado decretar estado de sítio após o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) rejeitar o pedido do seu partido de anular parte dos votos do segundo turno. Foi aplicada uma multa de R$ 22,9 milhões ao PL por litigar de má-fé ao questionar o resultado das eleições. “Sobrou pra gente buscar uma alternativa na Constituição rapidamente. Não foi discutido, foi conversado hipóteses de dispositivos constitucionais”, explicou.
Segundo o ex-presidente, o plano do estado de sítio não foi para frente porque “não tinha clima, não tinha oportunidade”. “E não tínhamos uma base minimamente sólida para fazer qualquer coisa”, acrescentou. “Repito, só foi conversado essas e outras hipóteses constitucionais, tendo em vista o TSE ter fechado as portas para a gente com aquela multa lá”, ressaltou Bolsonaro.

Discurso golpista e mentiroso era retórica, segundo Bolsonaro
O ministro Alexandre de Moraes fez 32 perguntas ao ex-presidente Jair Bolsonaro. A primeira delas abordou a reunião ministerial de 5 de julho de 2022, que serviu de base para a operação Tempus Veritatis da Polícia Federal. Essa reunião foi considerada peça-chave na investigação sobre a articulação para manter Bolsonaro no poder após a derrota nas eleições.
Moraes questionou o ex-presidente sobre os fundamentos que o levaram a alegar fraude nas urnas eletrônicas e a afirmar que ministros do TSE estariam manipulando o resultado do pleito. Bolsonaro respondeu: “Essa foi a minha retórica que usei muito enquanto deputado e depois como presidente, também buscando o voto impresso como uma forma a mais de termos mais uma barreira para evitar qualquer possibilidade de se alterar o resultado das eleições”.
O ex-presidente ainda leu declarações antigas — e fora de contexto — de figuras públicas como o ministro do STF Flávio Dino e o presidente do PDT, Carlos Lupi, na tentativa de mostrar que políticos de esquerda também fizeram críticas ao sistema eleitoral. Ele repetiu diversas vezes a existência de um suposto laudo da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF) como prova de que havia desconfiança técnica sobre as urnas.
Contudo, a própria entidade já se manifestou publicamente, repudiando qualquer tentativa de usar seu nome em teorias conspiratórias. “Repudiamos, dessa forma, qualquer tentativa de associação a conspirações de fraudes nas eleições e ressaltamos nossa confiança no processo eleitoral”, destacou a APCF em nota publicada em julho de 2021.
Ao ser confrontado sobre acusações feitas também na reunião ministerial de que membros do STF teriam recebido milhões de dólares para interferir no resultado eleitoral, Bolsonaro voltou a usar o argumento da “retórica”; negou ter provas e desculpou-se com Moraes. “Não tem indício nenhum, senhor ministro. Tanto é que era uma reunião para não ser gravada. É um desabafo, uma retórica que eu usei. Se fosse outros três ocupando [o TSE], teria falado a mesma coisa. Então, me desculpem. Não tinha essa intenção de acusar de qualquer desvio de conduta”, justificou.
Durante o depoimento, Moraes chegou a corrigir informações falsas apresentadas por Bolsonaro. O ex-presidente mencionou um inquérito da PF que, segundo ele, investigava supostas falhas nas urnas eletrônicas. Moraes esclareceu que o inquérito tratava, na verdade, de um possível vazamento de dados dos servidores do TSE, sem qualquer impacto sobre o resultado das eleições.

Bolsonaro ainda tentou justificar suas declarações com base em seu estilo político: “Vossas excelências não me viram em nenhum momento agir contra a Constituição. Eu joguei dentro das quatro linhas o tempo todo. Muita vez me revoltava, falava palavrão, falava o que não devia falar, eu sei disso, mas, no meu entender, fiz aquilo que tinha que ser feito”.
O ex-presidente usou a mesma linha de defesa quando também foi questionado pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, sobre o teor de suas falas durante a reunião ministerial de julho de 2022: “Senhor procurador, é o meu temperamento. A convocação não foi para aquilo, aquilo foi num momento, como se fosse um intervalo”.
Quando Gonet perguntou sobre as ameaças de Bolsonaro aos ministros do STF proferidas durante entrevista e manifestação em 2021, ele respondeu: “Senhor procurador, o senhor deve conhecer o meu temperamento dentro do Congresso. Respondi a uns 20 processos de cassação lá dentro. Um pouco explosivo. Muitas vezes errei.”
“Golpe é uma coisa abominável”, disse Bolsonaro que nega golpe em 1964
Ao longo de seu depoimento, Jair Bolsonaro negou as acusações imputadas pela PGR a ele, de ter liderado a tentativa de golpe de Estado que culminaram nos atos de 8 de janeiro de 2023. “Golpe? Eu fico até arrepiado quando se fala que o 8 de janeiro foi um golpe”, ressaltou.
De acordo com o ex-presidente, os atos ocorreram “sem qualquer participação dele”, e “sem qualquer liderança, sem forças armadas, sem armas, sem um núcleo financeiro, sem nada”. “Isso não é golpe”, insistiu.
Apesar de, ao longo da carreira política, ter defendido o regime militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, o ex-presidente declarou: “Golpe é uma coisa abominável. O golpe até seria fácil começar, o after day [dia seguinte] que é simplesmente imprevisível e danoso para todo mundo. O Brasil não poderia passar por uma experiência dessas e não foi sequer cogitada essa hipótese de golpe no meu governo”.
Ainda no primeiro ano de seu governo, em 2019, o Itamaraty enviou um telegrama à Organização das Nações Unidas (ONU) afirmando que “não houve golpe de Estado” em 31 de março de 1964 e que os 21 anos de governos militares foram necessários “para afastar a crescente ameaça de uma tomada comunista do Brasil e garantir a preservação das instituições nacionais, no contexto da Guerra Fria”.
Ao ser indagado sobre os acampamentos em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília, Bolsonaro alegou que não os desmobilizou para evitar um cenário ainda mais grave, com os manifestantes se deslocando para a Praça dos Três Poderes. “Se nós simplesmente desmobilizássemos aquilo, poderia o pessoal vir para a região aqui da Praça dos Três Poderes e ficar pior ainda”, argumentou.
Em trechos emocionais e desconexos do depoimento, Bolsonaro recorreu à ironia e a um tom sentimental, descrevendo o período da presidência como um fardo: “Quando eu me elegi presidente da República eu ajoelhei e falei ‘meu Deus, qual o pecado eu cometi pra pagar o preço de uma presidência”. E completou: “É inferno aquela vida”.
E, mesmo sem ser questionado diretamente sobre o assunto, Bolsonaro justificou a decisão de não participar da cerimônia de transmissão da faixa presidencial a Luiz Inácio Lula da Silva dizendo que não queria “se submeter à maior vaia da história da República”.