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Luciano Dacol diz que foi submetido a tratamento desumano em operação do serviço de imigração

Reportagem
16 de junho de 2025
04:00

Terça-feira, 3 de junho, começou como mais um dia comum de trabalho para Luciano Dacol, imigrante brasileiro que mora na ilha de Martha’s Vineyard, estado de Massachusetts, perto da cidade de Boston, no leste dos Estados Unidos (EUA). Ele pegou a balsa logo cedo, como faz na maioria dos dias, juntando-se a um pequeno exército de trabalhadores que seguem para o continente para trabalhar como carpinteiros, jardineiros, faxineiros e em outros serviços.

Um colega que dirigia a van da empresa estava lá para buscá-lo, como de costume. A única diferença naquele dia era que o futuro genro de Dacol, que acabara de chegar do Brasil com sua filha, iria acompanhá-lo. Ele não via a filha desde 2022 e estava contente de ter a chance de passar um tempo com o futuro genro e mostrar a ilha para ele.

Dacol, de 48 anos, que emigrou do Brasil para os EUA em 2018, explicou: “Vi em grupos do WhatsApp que havia uma batida do ICE [Departamento de Imigração e Alfândega dos EUA] na ilha, mas achei que não teria problema, porque eu carregava meus documentos.”

Para ele, ali eram os EUA, país onde a lei impera. Dacol não estava preocupado. Mas, como logo descobriria, deveria estar.

Ele foi parado na estrada Edgartown–Vineyard Haven, ainda na ilha, por agentes federais usando coletes à prova de balas; não havia motivo aparente para a abordagem. Ele mostrou sua autorização de trabalho e seu número do Seguro Social [espécie de CPF, no país] aos oficiais.

O site local MV Times entrevistou Dacol de dentro do centro de detenção onde ele ainda estava preso até 11 junho, conversou com sua família e analisou os documentos relacionados ao seu status migratório. O retrato que emerge é o de alguém que foi detido em uma operação ampla e indiscriminada contra a comunidade brasileira da ilha, em meio a um processo confuso e desordenado, que aparentemente é parte de uma campanha em andamento.

“Eles disseram que só me liberariam se eu tivesse o Green Card [documento que garante a residência permanente nos EUA], e que meus documentos não valiam nada”, contou Dacol, tentando explicar respeitosamente que, em seu entendimento, sua documentação estava em ordem.

O agente então o deteve, dizendo: “Você está em um limbo.

Naquele momento, Dacol pediu aos agentes que se identificassem, mas, segundo ele, eles se recusaram e não explicaram por que ele estava sendo parado. Após uma entrevista, ainda não estava evidente qual a acusação específica pela qual ele estava sendo detido.

Dacol é uma das mais de 40 pessoas presas em Martha’s Vineyard e na ilha próxima de Nantucket durante uma operação do ICE na primeira semana de junho, que espalhou medo não apenas entre imigrantes indocumentados, mas também entre imigrantes documentados, que temem que seus direitos ao devido processo legal estejam sendo efetivamente revogados por agentes. Em vários casos registrados pelo MV Times, os agentes sequer se preocuparam em se identificar.

Cidadãos americanos que apoiam os migrantes também foram afetados e veem a aparente ausência de devido processo legal como uma ameaça à democracia e ao estado de direito. Os agentes cobriram os rostos e, embora representantes do ICE tenham declarado que as operações são direcionadas a pessoas com antecedentes criminais, divulgaram pouquíssimas informações sobre quem foi detido e por que motivo.

O MV Times entrou em contato com familiares e líderes comunitários para revelar os detalhes das vidas por trás dessa campanha agressiva do ICE, que parece ser amplamente direcionada à crescente comunidade brasileira da ilha — que representa cerca de 20% da população residente durante o ano todo [Martha’s Vineyard também é um famoso destino de veraneio nos EUA], ou cerca de 4 mil pessoas.

Dacol disse que chegou à ilha em 2018 e que depois permaneceu nos EUA além do prazo do visto de turista, situação que acabou se prolongando durante a pandemia. Mas, após a pandemia, casou-se com uma portadora de Green Card e afirmou ter solicitado o seu próprio Green Card. Enquanto aguardava a aprovação, recebeu uma autorização de trabalho — compartilhada com o MV Times — emitida pelo Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA.

O MV Times consultou registros judiciais e não encontrou nenhuma prisão ou antecedente criminal em nome de Dacol. O site também entrou em contato com autoridades brasileiras, que se recusaram a fornecer informações pessoais sobre os detidos.

Os agentes também tentaram deter seu futuro genro, mas Dacol discutiu com os oficiais para garantir a liberação do rapaz, apresentando o passaporte com visto de turista válido e carimbo de entrada recente. “Eles pediram o formulário I-94 [documento que mostra o histórico de entrada e saída dos EUA] e um visto permanente. Parecia que estavam tentando achar uma desculpa para levá-lo”, relatou Dacol.

Seu futuro genro acabou sendo liberado como turista.

Dacol disse que a atitude dos agentes indicava uma intenção de fazer o maior número possível de prisões: “Acho que eles estão pensando só em números. Quando estávamos na van, eles estavam contando as pessoas e dizendo quantas mais ainda precisavam.”

O ICE amarrou as mãos e os pés dos imigrantes com braçadeiras plásticas e os levou ao centro de triagem em Burlington, também no estado de Massachusetts. “O tratamento foi desumano”, disse Dacol sobre ter dormido no chão, em um espaço superlotado. “Não havia espaço para todo mundo, então dois ou três dormiram no chão do banheiro”, contou. Ele acrescentou que as condições são melhores na unidade de Plymouth.

Donald Trump declarou publicamente a meta de superar o número de deportações dos governos anteriores, incluindo o do ex-presidente Barack Obama — frequentador da ilha no verão. Obama é apontado como o presidente que mais deportou imigrantes nos últimos anos.

Agentes mascarados sem identificação

Enquanto o ICE afirma que seus agentes usam máscaras para proteção, ativistas veem o ato como falta de transparência. Dacol contou que tentou gravar um vídeo com o celular, mas o único agente que estava sem máscara cobriu o rosto assim que percebeu. Desde então, o celular foi confiscado.

Morador da ilha, o estadunidense Charlie Giordano viralizou ao confrontar e pedir a identificação de agentes do ICE no dia 27 de maio. Outros residentes contaram ao MV Times que também pediram identificação e não receberam nenhuma informação. Giordano agora tenta ajudar Dacol promovendo uma campanha de arrecadação em seu Instagram.

Enquanto isso, a filha de Dacol e o namorado cancelaram todos os planos de férias e permanecem em casa, à espera de ligações do pai, que está detido na Penitenciária do Condado de Plymouth, com medo de sair de casa. “Ainda estou em choque, com medo. Me senti oprimido. Mesmo sem ter feito nada de errado, estou com medo”, disse o futuro genro de Dacol ao Times.

Pessoas que conhecem Dacol o descrevem como alguém sempre disposto a ajudar. “Ele é um gigante gentil”, disse uma pessoa que já trabalhou com Luciano, mas preferiu manter o anonimato por medo de retaliações. “Ele é enorme. Tem quase dois metros de altura, é forte, mas extremamente gentil e solidário. Um cara amoroso”, afirmou. “Ele me dava um abraço toda vez que nos víamos e não faria mal nem a uma mosca. Muito trabalhador. Uma pessoa de altíssima qualidade.”

O colega de Dacol que foi buscá-lo na balsa também é considerado um membro querido da comunidade, segundo conhecidos. Luan Padilha dos Santos, tem 29 anos e vivia na ilha há pouco mais de um ano. Ele também foi detido.

“Ele estava ajudando a pagar o tratamento de câncer do avô”, disse um familiar que pediu anonimato por causa de sua situação migratória. “Ele é muito doce, muito trabalhador. É uma pessoa quieta, que odeia incomodar. Também gosta de cozinhar e sempre compartilhava o jantar e os bolos que fazia”, acrescentou o parente.

Santos comprou um terreno para construir uma casa no Brasil, um de seus objetivos. “Ele tem muitos sonhos e metas; queria construir um lar e ajudar o irmão e os avós”, contou o familiar. No Brasil, ele trabalhava como instrutor de autoescola. O MV Times não encontrou nenhum registro criminal ou civil no nome de Santos no condado de Dukes, onde fica a ilha de Martha’s Vineyard.

Santos alugava um porão há mais de um ano de C.D., uma aposentada estadunidense, que ficou consternada ao saber que ele havia sido detido. Ela preferiu não divulgar o nome completo por temer se tornar alvo de ódio nas redes. “Por que eles não procuram só os que fazem coisa errada? Por que estão pegando os bons? A ilha precisa desses trabalhadores”, disse. “É um desserviço para a comunidade levar essas boas pessoas. Esse rapaz era maravilhoso.”

Ela contou que Santos era um “trabalhador incansável”, que saía por volta das 7h da manhã e voltava às 20h, trabalhando seis ou sete dias por semana. Ele cozinhava, dividia o jantar, cuidou do gato dela em uma emergência, pintou a casa de hóspedes e nem quis receber por isso. Passou o Dia de Ação de Graças e o Natal com a família dela e estava começando a aprender inglês para poder conversar sem depender do celular para traduzir.

“Espero que estejam tratando ele bem. O aniversário dele está chegando, e espero que ele possa passar com a família, e não preso. E espero que possa voltar. Eu o receberia de volta num piscar de olhos.”

Outro imigrante brasileiro detido a caminho do trabalho foi J.M.J., cujo nome completo não foi divulgado a pedido da família. Pai de dois filhos, era conhecido por ajudar a comunidade na igreja e por ser um pai divertido.

Com os olhos cansados e olheiras profundas, sua esposa, S.M.F., falou ao MV Times sobre o marido. Ela contou que a família, com duas crianças em idade escolar, chegou à ilha há três anos e, mesmo antes da operação da semana passada, já havia comprado passagens para retornar ao Brasil em meados de julho.

Ela acrescentou que J.M.J. tem um emprego estável como bioquímico em uma agência estadual no Brasil, e havia tirado uma licença de três anos enquanto ela trabalhava em uma companhia pública de água e esgoto.

“Pensamos em ficar mais tempo, mas quando começaram todas as incertezas sobre imigração com o governo Trump, decidimos voltar”, afirmou. “Viemos em busca de oportunidades educacionais para os nossos filhos, não apenas financeiras.”

“Meus filhos começaram a escola durante a pandemia, então a primeira vez que foram presencialmente foi aqui”, contou. Seu filho de 9 anos começou a falar inglês em seis meses e hoje é totalmente bilíngue.

Com uma camiseta estampada com a palavra “gratidão”, ela descreveu J.M.J. como um pai exemplar. “Ele é muito tranquilo e um pai excelente. Às vezes até mima demais as crianças. Na hora de dormir, sempre dá mais meia hora para elas e deixa ver filme ou comer pipoca. Vive tentando fazer escondido o que eles querem, fora da rotina que eu estipulei”, disse ela.

Com lágrimas nos olhos, afirmou que se sente como uma viúva de marido vivo e, embora só tenha se passado uma semana, já sente falta de voltar para casa e encontrá-lo. Ao mesmo tempo, preocupa-se com o sofrimento dos filhos: “A forma como tiraram ele daqui… foi meio desumana, né? A gente tenta entender que é o trabalho deles, mas eu tento não lembrar das imagens, para doer menos.”

O MV Times também não encontrou registros criminais ou cíveis em nome de J.M.J.

Dacol decidiu desistir de lutar pelo seu caso nos EUA e optou pela deportação: “Não quero ficar nesse limbo, como eles disseram. O governo Trump vai durar mais três anos. Não há garantia de que não vão me prender de novo, mesmo com comprovante de fiança”, disse. “Esse processo é muito desumano. Não quero passar por isso novamente.”

Nesta semana, a comunidade brasileira tem se escondido nas sombras, tomada pelo medo. Ao mesmo tempo, busca se apoiar mutuamente, oferecendo ajuda a quem está preocupado com sua situação migratória. Muitos trabalhadores da construção civil, jardinagem e limpeza doméstica deixaram de comparecer ao trabalho nos últimos dias, segundo empregadores. Até imigrantes que já se tornaram cidadãos americanos passaram a carregar o passaporte consigo por precaução.

Cultos em diferentes igrejas de congregações predominantemente brasileiras foram cancelados na semana seguinte à operação do ICE, que deteve não apenas pessoas com antecedentes criminais, mas também diversos imigrantes sem histórico judicial.

O primeiro culto após a operação, realizado em uma das várias igrejas evangélicas brasileiras da ilha, teve 20% menos fiéis do que a média de cem pessoas. Mas o pastor lembrou aos que compareceram que Deus pode ajudar a superar o medo.

O pastor José Carlos Ribeiro leu trechos do livro do Êxodo na Comunidade Evangélica Koinonia, em Tisbury. Falou sobre o momento em que Moisés lidera o povo judeu para fora do Egito, sendo perseguido pelo exército do faraó. Então, o impossível acontece: Deus abre o Mar Vermelho para o seu povo e engole os egípcios.

Do púlpito decorado com pães, uvas e uma pátena dourada que remete à Última Ceia, Ribeiro disse aos fiéis que, às vezes, “tem o mar, tem o faraó, tem o Trump, tem o ICE, mas, acima de tudo, tem o Senhor, e Ele estará conosco.” A congregação aplaudiu com entusiasmo.

Essa reportagem foi publicada pelo MVTimes e republicada em parceria pela Agência Pública.

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