Faz pouco mais de um ano que ribeirinhos de uma comunidade próxima a Belém dizem viver no caos. A construção da Avenida Liberdade, obra do governo do Pará para melhorar o trânsito de entrada e saída da região metropolitana da capital, já destruiu pés de açaí que davam sustento às famílias, cortou terrenos ao meio e inviabilizou o acesso ao ramal e ao igarapé antes usados para entrar e sair da comunidade, dizem os moradores.
A capital do Pará recebe em novembro a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025, a COP30, o mais importante evento da agenda climática internacional e que deve discutir ações de combate às mudanças no clima.
“Peixe, camarão e todos os mariscos do rio, acabou. Com a chuva, toda a terra da obra desceu pra dentro do igarapé, ficou tudo destruído. Água para nós tomarmos banho não tem. Não temos mais água potável”, afirma Danielson Costa, presidente da associação local que representa os pequenos produtores rurais e pescadores artesanais. “Vivemos um caos e sem nenhuma resposta [do governo]”, acrescenta.
Neste domingo, 20 de julho, a Defensoria Pública do Estado do Pará entrou com uma ação civil contra o governo para pedir que as obras na área da comunidade sejam interrompidas até que o estado realize a consulta e cadastro das famílias e elabore estudos dos impactos provocados pela construção.
O órgão também pede que os ribeirinhos recebam pagamento por perdas e danos e que o governo reconheça a posse coletiva da terra e faça a regularização fundiária dos moradores da comunidade Nossa Senhora dos Navegantes, uma área de 308 hectares, cerca de 431 campos de futebol, dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) de Belém, às margens do rio Guamá.

Avenida Liberdade foi criticada como “estrada da COP”, mas projeto é anterior ao evento
A Avenida Liberdade é uma via expressa, com quatro faixas e 13,4 quilômetros de extensão, apresentada pelo governo do Pará como uma alternativa à BR-316, para melhorar o trânsito na entrada e saída da região metropolitana de Belém. Segundo o governo, a obra beneficiará 2 milhões de pessoas, “com redução no tempo de deslocamento”, o que representaria “17,7 mil toneladas a menos de CO² por ano com a redução do uso de combustíveis fósseis”.
A estrada é planejada desde 2020 pelo governo estadual, que já afirmou que ela não faz parte do pacote de investimentos federais e estaduais para a COP30. De fato, a primeira licença ambiental do empreendimento foi pedida em junho de 2023, meses antes da capital paraense ser confirmada como sede da conferência climática da ONU.
Ainda assim, a mobilidade urbana é um dos desafios para a realização do evento em Belém que reunirá representantes e milhares de pessoas de mais de 190 países. A previsão é de que a Avenida Liberdade seja entregue até o final de outubro – a tempo, portanto, da conferência.
Obra afeta sustento de ribeirinhos
Cerca de 250 famílias vivem na comunidade Nossa Senhora dos Navegantes – várias há mais de cinco décadas. Até o início das obras, em junho de 2024, elas viviam do extrativismo de açaí, agricultura de subsistência e pesca tradicional de peixe e camarão, além de benefícios governamentais de distribuição de renda.
As obras de terraplanagem, porém, levaram à perda de áreas de moradia, do extrativismo do açaí e afetaram um igarapé, conforme aponta a ação judicial.
A Defensoria afirma que o Estado do Pará não fez um cadastro socioeconômico das famílias para calcular as devidas indenizações, não elaborou laudos de avaliação das áreas diretamente impactadas pela obra e não realizou um plano de regularização fundiária dos ribeirinhos na APA.
“Tudo isso gerou a perda da posse, da atividade agrária e danos ambientais e climáticos, que impactaram o extrativismo desenvolvido por membros da comunidade”, diz a ação do órgão.
“Desmataram cem metros de largura do açaizal”, diz Danielson, da associação de produtores e pescadores. “E ninguém foi indenizado. Não falaram quanto vão indenizar e nem quando. Mas o certo era terem primeiro levantado quantos pés tinha no açaizal antes de desmatar”.
A Defensoria aponta que essas medidas não foram tomadas, apesar de haver recursos financeiros específicos previstos no planejamento da obra: R$ 4 milhões para desapropriações e R$ 15 milhões para ações de mitigação dos impactos sociais.
Questionado pela Pública, o governo do Pará disse que “o processo de indenização está em andamento, conforme previsto nas condicionantes ambientais, com tratativas em curso para análise individual dos casos”.

A Defensoria também considera que o governo já devia ter feito a regularização fundiária das famílias que vivem na APA, o que vai de encontro com o decreto que criou a unidade de conservação, ainda em 1993, que tinha o objetivo de “ordenar o uso do solo”. Além disso, o órgão afirma que o Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE) recomendou em 2014 a conclusão do processo de regularização fundiária de todas as unidades de conservação do estado.
“Ocorre que passados quase mais de dez anos do monitoramento realizado pelo TCE, até a presente data as comunidades tradicionais que ocupam a APA Belém vivem na insegurança fundiária”, diz a ação.
A garantia da posse da terra é ainda mais urgente, segundo a Defensoria, porque a implantação da via expressa “promoverá a especulação imobiliária e uma corrida por terras ao longo da estrada, o que gera risco de invasões das terras e desmatamento de áreas que estavam preservadas e são de usufruto para o extrativismo dos moradores da Comunidade Nossa Senhora dos Navegantes”.
Esse risco é reconhecido pelo próprio estudo de impacto ambiental, elaborado no processo do licenciamento. Ainda assim, o estudo não prevê medidas ou planos para garantir o acesso à terra pelas comunidades.
Questionado pela reportagem especificamente sobre a regularização fundiária, o governo do Pará não respondeu até a publicação deste texto.

Ribeirinhos não foram consultados sobre obra, diz ação
Para a Defensoria, o estado também falhou ao não realizar uma consulta livre, prévia e informada, antes da autorização da obra. Ribeirinhos são considerados um povo tradicional e, nesse sentido, devem ser consultados pelo governo sobre os empreendimentos que possam vir a impactá-los, nos termos da convenção internacional 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
O estudo de impacto ambiental elenca a comunidade Nossa Senhora dos Navegantes como uma das impactadas diretamente pelo empreendimento e entrevistou alguns moradores – a maioria deles, inclusive, disse nas entrevistas ter expectativa negativa sobre o empreendimento. Mas essas entrevistas não configuram a consulta exigida. Em dezembro de 2023, foi realizada uma audiência pública com moradores locais que perguntaram sobre a consulta prévia – e ficaram sem resposta.
O governo do Pará afirmou à reportagem que “a licença ambiental foi concedida após rigoroso processo de licenciamento, com acompanhamento técnico contínuo para controle de impactos. A iniciativa foi debatida em audiências públicas com ampla participação da população e de representantes de comunidades tradicionais da região. Os estudos exigidos foram aprovados pelos conselhos gestores da APA Belém e do Parque Estadual do Utinga. Ao todo, 57 condicionantes foram estabelecidas e estão sendo monitoradas pelo órgão ambiental”.
A licença ambiental prévia estabeleceu uma série de medidas condicionantes para as comunidades. Os moradores de Nossa Senhora dos Navegantes, por exemplo, devem ser compensados com a construção de um posto de saúde, área de lazer e asfaltamento do ramal de acesso à comunidade. Mas nada disso foi feito até agora.
Duas medidas são consideradas prioritárias pelos moradores, diz Danielson: a construção de novos poços para captação de água (já que o poço comunitário usado pela comunidade foi inviabilizado pela obra) e os acessos ao ramal e ao igarapé, também obstruídos pela construção.
Outro problema que precisa ser resolvido é a separação de terrenos pela Avenida Liberdade. A licença prevê a construção de passagem para acesso a essas propriedades separadas, mas Danielson afirma que o plano é estabelecer pontos de passagem a cada 500 metros, sendo que os terrenos têm, no geral, cerca de 100 metros.
As passagens são necessárias, porque a rodovia será rodeada por um muro de contenção. “Nós queremos que no trecho da comunidade deixem aberto para as pessoas poderem passar. Como a pessoa vai fazer com açaí nas costas e ter que andar tudo isso pra chegar do outro lado do terreno dela?”, questiona Danielson.
“Quando começou, eles não avisaram a gente. Agora já estão aterrando, já desmataram. E não vem nos responder. Se a gente não toma medidas como interditar, ninguém fala com a gente”, desabafa Danielson.
No último dia 9 de julho, os ribeirinhos interditaram a construção da via expressa para exigir alguma resposta sobre as medidas condicionantes. Uma reunião está prevista para ser realizada nesta quarta-feira, 23 de julho, com o governo, para ver se, enfim, eles terão alguma resposta.