Outro dia apareceu nas redes o Macron apanhando da Brigitte ao sair de um avião. Foi aquele alvoroço e, horas depois, lá estava o presidente da França explicando que aquilo que todo mundo viu não era bem aquilo que todo mundo viu, aliás muito pelo contrário, coisa e tal, tal e coisa.
Ficou patética a emenda. Ok, poderia ter sido pior: Macron poderia ter lançado o velho “quem nunca?”, acionando a memória coletiva do tapinha que não dói da vida privada – e assim apanhado também nas redes, com toda justiça, pelo que teria sido uma apologia à violência doméstica, ainda por cima reversa.
Mas havia também uma saída mais contemporânea e inovadora: semear a dúvida, jogando a culpa na Inteligência Artificial (IA).
“Não sei o que podem pretender pessoas que utilizam ferramentas de IA generativa para criar esse tipo de vídeo, que, não bastando atacar a honra de um chefe de Estado, ainda busca plantar a discórdia entre um casal harmônico”, diria eu, se Macron fosse.
Diria isso para preservar, em primeiro lugar, o direito inalienável dos casais de todo o mundo a lavar a roupa suja em casa. Em segundo, para confundir (para esclarecer, como profetizou Tom Zé) ainda mais o absurdo que se tornou este mundo depois que as tais das IA surgiram.
Já estava tudo uma bagunça, mas, depois da IA generativa, aí é que ninguém mais sabe se as coisas são verdade ou mentira. Um elefante entrando num mercado para roubar frutas na Tailândia pode ser tão mentira quanto crianças da Faixa de Gaza sendo bombardeadas por drones israelenses. Não interrompa a leitura para consultar o Google: as duas coisas são verdade.
Nesses tempos em que cada qual quer ter uma verdade para chamar de sua, a IA generativa proporciona a evidência cabal em vídeo daquilo que se quer provar – ou que se quer refutar. Seu impacto social é semelhante ao do VAR no futebol. A bola entra e, se o lance for minimamente duvidoso, a torcida prefere não gritar gol: é sempre mais prudente duvidar calado do que comemorar, arriscando-se a morrer de infarto se o gol for anulado, como outro dia aconteceu com um torcedor.
A sombra permanente da dúvida, agora sinônimo de prudência ou esperteza, produz efeitos os mais diversos na vida do cidadão comum. Como fica, por exemplo, a situação do marido ou da esposa que recebeu, de um amigo ou do detetive particular contratado, um vídeo íntimo do(a) cônjuge com outra pessoa? Deve acreditar e agradecer? Ou rejeitar com fúria, certo(a) de que aquilo é coisa gerada por Inteligência Artificial? Como ficam, ademais, a situação do amigo e, principalmente, o emprego do detetive?
Preocupado com os avanços das novas tecnologias há alguns anos, tenho desenvolvido um método que nomeei provisoriamente de “clandestinidade digital”, que consiste em:
- Garantir um mínimo de presença nas mídias sociais, de modo a não deixar espaço para que IAs criem, do vácuo, imagens ou textos falsamente atribuídos a mim;
- Postar o menos possível nessas mídias, de modo a não subsidiar exageradamente as IAs, marotamente limitando sua criatividade nefasta a produtos flagrantemente inverossímeis.
Pensei até em escrever um livro, o “Manual do Clandestino Digital”, e ganhar algum dinheiro com isso. Mas já lhes adianto que meu método não deu certo. Pedi há pouco ao Chat GPT que criasse um poema baseado nos meus, e ele me retornou o seguinte:
Inteligência
Artificial
Generativa.
Demência
Natural
Degenerativa.
Qual doença
Nos fará
Desaparecer?
Mentira, o poema é meu mesmo.
(Será?)