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Diário do julgamento – Ato 9: “Silêncio ensurdecedor” expõe a Inteligência do Exército

O que falaram os réus do Núcleo 3, composto por militares ‘kids pretos’ do Exército durante o interrogatório no STF

Reportagem
29 de julho de 2025
19:28
Sgt Sionir/Exército Brasileiro

Desde o início do governo Lula, o ministro da Defesa, José Múcio, tentou distanciar as Forças Armadas dos militares envolvidos na crise golpista que levou ao quebra-quebra em Brasília (DF) em 8 de janeiro de 2023. Com apoio dos comandantes nos bastidores, o esforço de Múcio ocorreu discretamente nos últimos dois anos até ganhar protagonismo nesta segunda-feira (28), ao fim do interrogatório dos réus do núcleo 3 da trama golpista.

Ao tentar justificar a decisão do ministro relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, de proibir o uso de fardas pelos réus na ocasião, o juiz-auxiliar Rafael Tamai Rocha disse que a acusação era “contra militares, não contra o Exército Brasileiro”.

Mas a tentativa de descolar as Forças Armadas do caso foi questionada nos depoimentos ao longo da segunda. O “silêncio ensurdecedor” do Exército – nas palavras do coronel Márcio Nunes de Resende, um dos réus no caso – foi alvo constante das defesas dos militares por diferentes razões.

A maioria dos réus militares colocou em xeque o comportamento das Forças após as eleições – quando elas não se manifestaram contra os pedidos de intervenção dos bolsonaristas, permitindo os acampamentos na frente dos quartéis pelo país. Ao longo do processo no STF, o tenente-coronel kid preto Mauro Cid disse que as Forças Armadas deram “apoio tácito” à prática, com uma “oficialização” da permissão após a divulgação da nota conjunta dos três comandantes no fim de 2022.

Nos interrogatórios finais, militares criticaram até mesmo a falta de respostas das Forças Armadas sobre como elas acompanharam a crise golpista, com suspeita de envolvimento do aparato militar de inteligência na trama.

Réu por suposta ligação com uma carta de oficiais da ativa para pressionar o Alto Comando a aderir ao golpe em 2022, o coronel kid preto Fabrício Moreira de Bastos evidenciou em sua defesa os rastros que levam à atuação da inteligência do Exército na trama.

Bastos alega ter se envolvido com a carta golpista por “ordem expressa” de seu chefe no Centro de Inteligência do Exército (CIE) à época dos fatos, o então coronel, hoje general Rodolfo Roque Salguero de la Vega Filho. Bastos convocou o general como testemunha, mas diz que ele não depôs por não ter tido “autorização” do Exército.

A Agência Pública apurou que o Comando do Exército defende que “testemunhas só têm sido obrigadas a comparecer quando ‘intimadas’ formalmente pelo juiz, não quando ‘demandadas’ pelos advogados”. Já sobre a alegação do coronel Bastos, a reportagem apurou que a cúpula militar entende que o envolvimento do CIE na trama seria “uma tese de defesa que ele [Bastos] precisa provar”.

Vale lembrar que, durante a CPMI do 8 de Janeiro, o Exército disse apenas não ter produzido relatórios de inteligência sobre o acampamento na frente do QG da Força em Brasília porque “não foram identificados aspectos que pudessem comprometer a segurança orgânica dos aquartelamentos” no local, sem dar mais detalhes sobre o restante das atividades do CIE durante a crise golpista.

A menção do coronel Bastos sobre a inteligência militar não foi a única ao longo dos depoimentos desta segunda. Kid preto citado por Mauro Cid como um dos que queriam “causar o caos” no país em 2022, o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima alegou em seu interrogatório que criou um documento que previa “a prisão preventiva dos juízes supremos considerados geradores de instabilidade” apenas como parte de seu trabalho à época, como oficial de inteligência da 6ª Divisão do Exército no Comando Militar do Sul, em Porto Alegre (RS).

Intitulado “Op Luneta”, o documento previa ações para “neutralizar a capacidade de atuação do ministro AM” – em referência a Alexandre de Moraes, segundo a PF – para “restabelecer a lei e a ordem”, com a criação de gabinetes de crise e convocação de novas eleições.

Em sua defesa, Lima disse que o material era “amparado em normas legais” do Exército e que sua função na 6ª Divisão consistia em “avaliar cenários” e pensar em “soluções”. O kid preto afirma que o documento seria um “cenário prospectivo”, uma “ferramenta de análise” que não foi executada, nem utilizada por seus superiores.

“Isso é uma prática da doutrina americana, um oficial [norte-]americano criou essa técnica nos anos 1960 e adotamos aqui [no Brasil] desde então… no Exército, é comum a criação de ‘cenários prospectivos’”, afirmou o kid preto em seu interrogatório.

O Exército disse à Pública que “não se manifesta sobre processos judiciais em andamento” e que “atende a todas as solicitações das autoridades competentes, prestando as informações requeridas”. Já a Polícia Federal afirmou que “não se manifesta sobre o conteúdo de alegações feitas por eventuais investigados”.

Grupo Copa 2022: os kids pretos dispostos a “sujar as mãos” pelo golpe

Se o aparato de inteligência militar acabou exposto, os interrogatórios também continham ataques contra pontos fundamentais da investigação da Polícia Federal e da acusação da Procuradoria-Geral da República.

A ofensiva ficou evidente a partir dos réus supostamente ligados ao chamado grupo Copa 2022 – criado para planejar e executar sequestros e assassinatos de autoridades para efetivar o Golpe de Estado, segundo a PF. Preso preventivamente desde novembro de 2024, o tenente-coronel kid preto Rodrigo Bezerra de Azevedo foi um dos mais enfáticos nas críticas às investigações.

Acusado de ser o integrante “Brasil” no grupo Copa 2022, o kid preto Azevedo defende que as investigações ignoraram supostas provas que o inocentariam no caso.

“Fui eu quem falei à PF que estava de posse desse celular. Mesmo sendo cadastrado um chip com meus dados, é impossível afirmar que eu estava com esse celular [à época dos fatos investigados] porque eu não tive qualquer emprego pregresso daquele aparelho, o utilizei apenas a partir do dia 26 de dezembro [de 2022]”, disse Azevedo.

Lotado no Comando de Operações Especiais (COPESP) em Goiânia à época, o kid preto defende que obteve o aparelho identificado pela PF como pertencente ao integrante “Brasil”, do grupo Copa 2022, numa sala de equipamentos dentro do COPESP. Segundo Azevedo, os investigadores erraram ao ignorar o uso prévio do aparelho – que levaria à pessoa que seria o integrante “Brasil”, segundo ele.

“Eu só quero saber o que não foi respondido para a minha defesa até agora: foi feita alguma diligência junto ao Exército? Foi aberto algum IPM [Inquérito Policial Militar] para se descobrir quem usou o aparelho antes de mim? Mas absolutamente nada foi feito, e a PGR apenas consignou uma acusação inverossímil”, afirmou o réu.

Algumas das provas citadas por Azevedo se baseiam no descontrole sobre a retirada de equipamentos e até mesmo de veículos na unidade dos kids pretos em Goiânia. A Pública apurou que, de fato, há dúvidas quanto ao controle do COPESP sobre seu material – especialmente a retirada de veículos.

A informação importa, pois as investigações sugerem que outro kid preto da ativa, o tenente-coronel Rafael Martins de Oliveira, também acusado de integrar o grupo Copa 2022, teria usado veículos oficiais na execução do plano. O militar também depôs nesta segunda, com uma postura hostil e respondendo apenas perguntas formuladas por sua defesa, se proclamando um “prisioneiro de guerra”.

Procurado pela reportagem, o Exército disse que o estoque de armamentos e munições do COPESP passava por um “controle diário” à época dos fatos investigados. Já no caso de veículos, os militares não confirmam oficialmente a falta de controle durante a crise golpista, mas a resposta à Pública sugere o contrário.

“O controle das viaturas era descentralizado, ficando sob responsabilidade de cada Organização Militar. No entanto, a partir de julho de 2024, foi implantado um sistema informatizado com leitura de QR Code, para registrar a entrada e saída das viaturas no quartel, aprimorando o processo de controle”, disse o Exército à Pública.

“Era um pensamento digitalizado meu”

Separado do restante dos kids pretos dispostos a “sujar as mãos” pelo golpe, segundo PF e PGR, o ex-comandante das Forças Especiais do Exército Mário Fernandes admitiu na última quinta (24), pela primeira vez, ter sido responsável pela elaboração do plano Punhal Verde Amarelo em seu interrogatório ao STF. O plano continha uma lista de ações visando o golpe de estado, incluindo ações violentas como sequestro, envenenamento e assassinato de autoridades da República – incluindo o presidente Lula (PT) e o vice, Geraldo Alckmin (PSB).

“É um arquivo digital que nada mais retrata do que um pensamento meu que foi digitalizado, um ‘compilar’ de dados, um estudo de situação meu, de pensamento… uma análise de risco que eu fiz e, por um costume próprio, resolvi inadvertidamente digitalizar”, disse o general da reserva do Exército.

Seu depoimento chamou atenção não apenas pela admissão quanto ao plano golpista, mas pelo esforço em puxar a responsabilidade apenas para si mesmo.

O general kid preto disse não ter mostrado seu plano a ninguém, mesmo após ser questionado pela PGR quanto à impressão do documento no Palácio do Planalto em plena crise golpista, em dezembro de 2022.

“Foi uma coincidência em relação à minha atribuição administrativa e logística como secretário-executivo. Mas eu não levei, não apresentei, não compartilhei esse arquivo, seja digital ou impresso, com ninguém”, afirmou.

Seja verdadeira ou seja mentirosa, a versão do militar o complica no julgamento em curso no STF. Afinal, após admitir a confecção do documento golpista, Fernandes confirma sua ligação com o plano de sequestro e assassinato de autoridades – incluindo o ministro relator do caso no Supremo, Alexandre de Moraes.

Próximos passos

Com todos os réus interrogados, as defesas terão cinco dias para apresentar requerimentos complementares e pedir novas diligências. Então, defesas e PGR terão o prazo de 15 dias para apresentar alegações finais – última manifestação antes da sentença. Caberá ao ministro relator do caso, Alexandre de Moraes, marcar uma data para a sentença dos réus. A expectativa é que o Supremo conclua o julgamento do caso entre agosto e setembro deste ano.

Edição:
Reprodução/Exército Brasileiro
Reprodução/Exército Brasileiro
Reprodução TV Justiça
Reprodução - Exército Brasileiro
Isac Nóbrega/PR
Isac Nóbrega/PR

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