A República Democrática do Congo (RDC) enfrenta há mais de 25 anos um conflito marcado pela atuação de grupos armados e disputas territoriais com Ruanda, seu país vizinho. A guerra já gerou aproximadamente 10 milhões de mortes desde 1998, sendo as mulheres as principais vítimas de diferentes violências. Apesar dos números e impactos alarmantes, a situação segue pouco noticiada na imprensa internacional.
O território, com uma das maiores reservas minerais do mundo, também é alvo de interesses de potências como Estados Unidos e China, e de empresas de tecnologia globais. Em junho deste ano, um acordo de paz entre autoridades da RDC e de Ruanda foi assinado na capital dos EUA, Washington. Para o coordenador do coletivo A Voz do Congo, Prosper Dinganga, no entanto, as tentativas de mediação do governo de Donald Trump, com atuação recente do governo do Catar, não resolvem o conflito.
“Essas negociações no Catar, entre o M23 [grupo rebelde ruandês], e alguns elementos congoleses, não resolverá nada. Não terá nenhuma resolução, não impactará a vida do povo congolês, porque nós fugimos do real problema”, afirma.
Dinganga foi recebido no Pauta Pública por Andrea Dip, junto com o jornalista e cofundador da agência Alma Preta, Pedro Borges, para analisar as raízes históricas e as consequências da pouca visibilidade do conflito dada pela mídia brasileira e internacional.
Eles falam sobre quem se beneficia com a guerra, os desafios enfrentados pela população congolesa e os caminhos possíveis para a superação dessa crise. Além do coletivo A Voz do Congo, Prosper destaca a existência de movimentos populares e diaspóricos como o Genocost, responsável por divulgar o que acontece na RDC através das redes sociais, indo na contramão do silenciamento gerado pela mídia hegemônica.
“Há uma ausência [da imprensa] e nós, congoleses, muitas vezes questionamos isso. Será que nossa vida não importa mais? Não importa?”, reflete o coordenador.
Pedro Borges ainda cobra do governo brasileiro uma participação efetiva na mediação do conflito. “Por que o presidente brasileiro, uma representação tão importante do BRICS, que tem se colocado como voz do sul global, não está de olho nos conflitos do sul global? É importante que a gente faça essa provocação”, afirma.
Leia os principais pontos e ouça o podcast completo abaixo.
EP 184 Guerra no Congo, milhões de mortos e pouca atenção
Prosper, você poderia fazer um resumo sobre as origens históricas do conflito no Congo para nos ajudar a entender a crise atual no leste do país?
Prosper Dinganga – A República Democrática do Congo é um país estratégico no coração do continente africano que, desde a sua criação, acumula uma série de conflitos.
Logo depois da Conferência de Berlim, em 1885, o país passou a ser uma propriedade privada do rei Leopoldo II [da Bélgica]. A gente passou por um longo tempo de escravidão depois da colonização. Em 1996, nós entramos numa crise política que resultou em tudo o que vivemos hoje. Então, o presidente Mobutu [Sese Seko], ditador que ficou 32 anos no poder, vê uma rebelião que sai do leste da RDC e chega até a capital Kinshasa em uma velocidade muito rápida, o que o faz cair do poder.
Depois disso, o Estado ruandês passa a ocupar a República Democrática do Congo. Na época, o general das Forças Armadas, um sujeito ruandês, comandou o exército congolês por muito tempo.
Então, de 1997 até hoje, nós estamos nesse ciclo de 30 anos de um conflito que se alastra ao longo do tempo. Daí surge o elemento da economia, a partir da exploração dos minérios do Congo, que nos anos 2000 reforça o conflito no país.
Esse cenário em que estamos hoje já gerou cerca de 10 milhões de vidas perdidas, que foram ceifadas ao longo de várias fases de conflitos. Mas o fator principal de tudo são os recursos minerais da República Democrática do Congo.
Diante desse histórico do país, o recente rascunho de acordo de paz mediado pelo Catar, pode representar uma ruptura com essa trajetória? Ou tende a ser mais um capítulo em um ciclo de promessas não cumpridas?
Prosper Dinganga – Acredito que não, porque não será o primeiro acordo de paz assinado entre os beligerantes. Sempre houve várias tentativas.
Essas negociações no Catar, entre o M23 [grupo rebelde ruandês], e alguns elementos congoleses, não resolverá nada. Não terá nenhuma resolução, não impactará a vida do povo congolês, porque fugimos do real problema.
O real problema é o seguinte: o nosso país está sendo invadido. A resolução 3.314 das Nações Unidas fala sobre invasão. Falamos muito da República de Ruanda, mas também tem a Uganda, que ocupa territórios ao leste da RDC. Então a discussão deveria começar por aí.
Houve a tentativa do governo norte-americano de sentar com as duas partes envolvidas no conflito: a República Democrática do Congo de um lado e a República de Ruanda do outro. Mas os temas mais importantes não foram abordados. Foi mais um acordo econômico [do que] um acordo de paz. E esse acordo, que foi firmado em Washington, direcionou, de certa forma, os congoleses a negociarem com os grupos rebeldes no Catar. Isso muda totalmente a natureza do conflito. Saímos de uma invasão, mas a tentativa de Ruanda é de nacionalizar esse conflito.
[…] O conflito na República Democrática do Congo é um vasto complô que inclui uma terceirização do conflito. Por isso, o processo do Catar não vai resolver nada, já que Ruanda continua apoiando, mesmo que de forma mais intensa, esses grupos rebeldes que ocupam o leste do Congo.
Pedro Borges – Vou acrescentar [à] essa fala, principalmente porque acho que é um conflito pouco acompanhado pelo público brasileiro. Como Prosper disse, no final de junho houve uma celebração de um acordo de paz mediado pelos Estados Unidos. Washington colocou para conversar a República Democrática do Congo e a República de Ruanda. Mas é muito importante entender que Ruanda conseguiu fazer um movimento muito bem calculado e estratégico de retirar o M23 das negociações de paz.
Na primeira negociação de paz que aconteceu em Washington, o principal grupo rebelde que tem sido financiado por Ruanda, não participou da discussão. Então, ficou uma discussão realmente ‘capenga’, que não vai resolver o problema. Ruanda conseguiu retirar da discussão do acordo de paz e colocou para o Catar fazer a negociação entre o governo da RDC e o M23.
Nessa negociação, Ruanda não participa necessariamente da conversa. É como o Prosper disse: é transformar a conversa em uma conversa doméstica, sendo que é amplamente conhecido que o M23 é apoiado por Ruanda. É importante destacar a habilidade e estratégia internacional de Ruanda, que consegue a façanha de negar o apoio ao grupo rebelde M23.
Oficialmente, o governo de Ruanda diz que não tem nada a ver com essa história, ao mesmo tempo em que participa da discussão de um acordo de paz. Como você participa da discussão de um acordo de paz se você não está envolvido na guerra? Essa é uma manobra que o país faz, a partir do seu presidente Paul Kagame, que é muito bem calculada ao transformar um conflito internacional num conflito doméstico, limitando a possibilidade de negociação do Congo nesse cenário.
Pedro, você começou essa sua interação falando justamente que esse é um conflito que não é muito falado na mídia. A gente está vivendo um cenário mundial de guerras, como na Ucrânia e em Israel, que têm destaque na mídia internacional, enquanto a situação da Guerra no Congo, quase não aparece. Inclusive, quando você fala sobre o assunto, fala sobre a sensação de que “algumas vidas parecem valer mais que outras”. Você acredita que esse silêncio internacional já faz parte do conflito? E como isso afeta a percepção do que acontece lá?
Pedro Borges – Acho que a gente tem pouca cobertura na imprensa brasileira sobre o assunto, não só no Brasil, mas também na América Latina. Quando se tem cobertura, se coloca como um conflito de motivação étnica, como se fosse pura e simplesmente um desdobramento do genocídio de Ruanda em 1994.
É inegável que existem resquícios de tensão étnica naquela região. Mas é importante frisar que a diferença étnica no continente africano não significa guerra. Existe uma diversidade étnica muito grande nos diferentes países e muitos deles conseguem ter um convívio harmonioso entre seus diferentes grupos. Mesmo na RDC, existem vários grupos étnicos que não necessariamente estão em conflitos. Diferença étnica não é igual a conflito. Mas essa diferença fica como uma explicação, e ela não consegue descrever nem 5% ou 10% do que realmente está por trás da guerra.
O que chama atenção é o silêncio da imprensa brasileira e das Américas sobre um conflito que envolve todos os critérios que entendemos como importantes para um fato virar notícia. Há uma guerra com um número absurdo de mortes. O movimento Genocost, organizado pelos congoleses, estima mais ou menos 10 milhões de pessoas mortas. As Nações Unidas vão falar em aproximadamente 7 milhões de pessoas deslocadas.
Há números fora de controle no que diz respeito à violência sexual contra mulheres. Existe ali uma disputa flagrante pelos minerais congoleses entre as duas principais potências econômicas do mundo: China e Estados Unidos. Então, a guerra tem todas as características de um conflito que deveria ser coberto pela imprensa. Quando não é coberto, mesmo diante de sua violência ou seu contexto político, precisamos encontrar alguma resposta.
Qual outra resposta poderemos dar para uma ‘não cobertura’ dessas? É a de que realmente algumas vidas importam mais do que outras, a de que a vida dos congoleses parece valer mais do que a dos outros grupos.
É importante que se tenha cobertura para que se tenha pressão da sociedade. Para que a sociedade, inclusive a brasileira, e também o governo brasileiro, se posicionem em relação a isso.
O Lula, presidente da República, tem se colocado como uma das vozes mais importantes no que diz respeito ao genocídio palestino. O presidente brasileiro participa de conversas com o presidente russo ao fazer parte das discussões, inclusive com o presidente ucraniano. Por que o presidente brasileiro, uma representação tão importante do BRICS, que tem se colocado como voz do sul global, não está de olho nos conflitos do sul global? É importante que a gente faça essa provocação não só para a imprensa, mas para a sociedade brasileira de maneira geral.
Prosper Dinganga – Os nossos movimentos como diásporas não são somente para sermos uma voz para visibilizar esse conflito, também trabalhamos de forma ativa.
O Pedro falou do movimento Genocost, movimento que amplificou a visibilidade desse genocídio que acontece na RDC através das redes sociais. Há uma ausência [da imprensa] e nós, congoleses, muitas vezes questionamos isso. Será que nossa vida não importa mais? Não importa?
Como o Pedro disse, uma das estratégias desse conflito é usar o corpo da mulher. O corpo da mulher é um campo, um território de conflito. É uma característica muito violenta que deveria ser coberta pela imprensa internacional, e aqui no Brasil mesmo, especificamente, mas infelizmente não temos esse movimento por parte da imprensa.
Como esse silenciamento internacional sobre o conflito impacta quem vive por lá?
Prosper Dinganga – Ao longo de todos esses anos, nós percebemos que [devemos nos] levantar, levantar a voz, para gritar ao mundo. Principalmente, falando da diáspora congolesa, que é bastante ativa mundo afora e no Brasil. Isso impactou também o governo local. Tivemos um grande avanço com o reconhecimento pelo governo do dia 2 de agosto como data em que lembramos das vidas congolesas perdidas. Esse trabalho é feito pela diáspora, que tenta sair desse silêncio.
Pedro Borges – Para exemplificar esse incômodo dos congoleses sobre o silenciamento, é importante recordar o que aconteceu no dia 27 de janeiro, quando o M23 tomou a cidade de Goma. A capital, Kinshasa, foi tomada por uma série de manifestações na principal avenida, chamada Boulevard du 30 Juin, em memória ao processo de independência do país. Essas manifestações atacaram as embaixadas dos chamados países ocidentais, no sentido de [declarar]: vocês não fizeram nada em relação a essa tomada.
Existe uma revolta muito grande por parte dos congoleses, em relação a isso. Acho que é um sentimento de abandono por parte da comunidade internacional. E acho que os impactos com relação a isso são enormes. Quando a gente vai acompanhar, por exemplo, processos de negociação, vemos que o governo do Congo fica muito sozinho para negociar.
Vou fazer um paralelo: a gente está vendo os processos de negociação na Ucrânia. O [Volodymyr] Zelensky, quando tem que negociar com o [Donald] Trump, como ele consegue força para negociar? Ou para pressionar o [Vladimir] Putin? [Consegue] quando os outros países europeus vêm juntos. Quando ele tem o apoio da França, da Grã-Bretanha, de primeiros-ministros, presidentes de outros países europeus. Os europeus definem que não vão aceitar determinados termos, pois querem garantias.
A comunidade internacional poderia pressionar para que garantias de soberania territorial fossem colocadas para o Congo, bem como para realizar o desarmamento desses grupos armados. E um boicote, por exemplo, a Ruanda e a Uganda. Mas não são só os dois países [envolvidos na guerra], há toda uma cadeia internacional ligada.
Existem denúncias feitas pelo governo congolês que direcionam a utilização dos minerais do país por parte de grandes empresas de tecnologia. Mesmo que seja negado por essas empresas. No começo do ano, por exemplo, o governo congolês acusou a Apple de utilizar de maneira ilegal os minerais congoleses. A Apple nega essas acusações.
Isso mostra como existe uma cadeia que de um lado se aproveita dessa situação no Congo, enquanto, de outro, não existe suporte ao Congo. Até existem, obviamente, experiências, como o próprio governo de Angola, que muitas vezes apoia o Congo em alguns aspectos, em alguns pontos, mas não há apoio grande da comunidade internacional.
É onde digo que o Brasil poderia ser um parceiro do Congo, nesse momento. O presidente brasileiro é um ator internacional por conta do BRICS. [Ainda] mais pelo fato de ser o Lula. O Lula é uma voz reconhecida e conhecida internacionalmente. No Congo, assim que eu cheguei, e peguei um carro para ir do aeroporto até o hotel, o motorista perguntou: ‘e o presidente Lula da Silva, como está?’ Então, o presidente brasileiro é conhecido.
Uma posição do governo e do presidente brasileiro poderia ser importante para o governo congolês nesse momento de negociações. Porque se o Congo for negociar sozinho, contra toda essa cadeia que está armada, sempre sairá prejudicado.
É importante que a gente tenha uma mobilização, uma pressão da sociedade brasileira, da sociedade civil, para que o governo brasileiro tome uma postura diferente do que tem tomado.