Há uma gota de sangue no cartão-postal, escreveu o poeta Cacaso — mas são muitas gotas, poças de sangue. Diante de mim, uma fotografia publicada na primeira página de um jornal: uma mulher negra abraça um cadáver. Não vemos o morto — seu rosto está fora do enquadramento ou coberto —, mas sentimos a dor daquela mulher revoltada e enlutada. Ao lado do corpo por ela chorado, outros dois cadáveres jazem no chão, expostos em sua vulnerabilidade final. São imagens de uma operação policial, ou massacre, se preferirmos chamar as coisas pelo nome que merecem.
Deveria ser chocante que cadáveres sejam vistos assim, identificáveis e exibindo a violência que os vitimou, estampados nos jornais. Infelizmente, já não é. A pornografia da violência e a violação de princípios básicos de ética na relação com a imagem dos mortos estão há muito tempo na ordem do dia. E isso, talvez, seja o mais assustador: não a existência da imagem, mas a falta de questionamento.
A fotografia a que me refiro foi feita na Praça São Lucas, na Penha, Rio de Janeiro, e exibiu, enfileirados, os corpos das vítimas da megaoperação contra o Comando Vermelho determinada pelo governador Cláudio Castro. Outra imagem me vem à mente: em 1964, o Jornal do Brasil estampou o cadáver de Manoel Moreira, o “Cara de Cavalo”, logo após sua execução pela polícia em Cabo Frio. Hélio Oiticica reapropriou a imagem em 1968, criando um estandarte em serigrafia onde o rosto do criminoso morto — notório por assaltos e acusado do assassinato do detetive Milton Le Cocq de Oliveira — vinha acompanhado da frase incendiária: “Seja Marginal, Seja Herói”.
Inserido na contracultura tropicalista e profundamente marcado pela Mangueira, Oiticica propunha uma inversão radical de valores como crítica à hipocrisia de uma sociedade que produz, criminaliza e espetaculariza a marginalidade. Transformar o criminoso morto em mártir era provocador: heroicizar o condenado pela ordem estabelecida revelava a hipocrisia de uma sociedade que produz marginalidade para depois segregá-la e eliminá-la.
Dificilmente um artista contemporâneo adotaria hoje estratégia semelhante — não por falta de percepção crítica, mas porque o contexto mudou: encarceramento em massa, consolidação de facções criminosas territorializadas, genocídio sistemático da juventude negra periférica e instrumentalização política do discurso punitivista transformaram o cenário. O gesto de Oiticica operava num registro que a violência e complexidade atuais tornaram insustentável como estratégia artística.
E, no entanto, o que permanece inalterado — talvez até agravado pela cultura digital — é o modo violento e desigual com que tratamos as imagens dos mortos. A imagem que Oiticica reapropriou havia sido publicada pelo Jornal do Brasil para documentar e, implicitamente, celebrar o “êxito” da operação policial. A espetacularização midiática de cadáveres como pedagogia do terror, reafirmação brutal da ordem, aviso aos vivos de que certos corpos não merecem a paz da morte privada, continua.
Basta ler os comentários de leitores das matérias: enquanto muitos se solidarizam com a dor da mulher que chora seu morto, outros aplaudem, saudam o governador e comemoram o sucesso da operação. Uma imagem é sempre faca de dois gumes.
Mais de seis décadas separam a morte de Cara de Cavalo dos massacres de 2025, mas a continuidade perturbadora da exposição visual de corpos periféricos como espetáculo público revela que pouco mudou na estrutura que organiza a visualidade da violência no Brasil.
Em 2009, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a Lei de Imprensa incompatível com a Constituição de 1988, revogou-se junto com ela o artigo 20, que indiretamente regulava a publicação de fotografias de cadáveres, claro que ainda sob a ótica da Ditadura, e por isso sua revogação. A decisão gerou inadvertidamente um vácuo normativo. Desde então, essas imagens habitam um limbo legal, onde nem a dignidade dos mortos nem o sofrimento dos familiares encontram proteção efetiva — apenas a possibilidade de reparação judicial posterior, sempre insuficiente diante do dano já consumado e da viralização digital.
Os códigos de ética do jornalismo brasileiro, por mais bem-intencionados, não resolvem a questão. Vivemos numa cultura em que imagens de cadáveres e vítimas de violência têm imenso apelo comercial: cliques, compartilhamentos e engajamento digital convertidos em receita publicitária. A autorregulação profissional, pressionada por imperativos de mercado, mostra-se frágil demais como barreira ética. Assim perpetuamos necropolíticas visuais que negam dignidade na vida e na morte.
Já nos anos setenta, Susan Sontag questionava se as imagens de guerra e de conflitos violentos serviam para formar a opinião pública e revelar a brutalidade da atuação das forças de Estado, ou se, pelo contrário, acabavam por desumanizar as próprias vítimas. Há momentos em que a documentação visual da violência estatal é indispensável para mobilização social e responsabilização democrática — como a fotografia do jornalista Vladimir Herzog morto, que ajudou a mobilizar a opinião pública contra a ditadura. A fotografia, tirada em 25 de outubro de 1975 pelo jovem fotógrafo forense Silvaldo Leung Vieira e publicada primeiramente pelo Jornal do Brasil, tornou-se um símbolo dos abusos da ditadura: mostrava o suposto suicídio de Vladimir Herzog como forjado, com o corpo de Herzog ainda tocando o chão, revelando a farsa dos torturadores e provocando grande comoção e resistência ao regime.
Mas os fins tampouco podem justificar plenamente os meios, e a fronteira entre testemunho necessário e exploração sensacionalista é sempre tênue.
Volta a fotografia da mulher abraçando seu morto, os outros dois corpos expostos ao lado, e me pergunto: o que ganhamos ao ver esses rostos identificáveis? O que perdemos ao normalizá-los? Talvez a resposta esteja justamente na continuidade histórica que une Cara de Cavalo às vítimas de 2025: não mudou porque não quisemos que mudasse. Há um interesse, difuso mas poderoso, em manter intacta a hierarquia visual da dignidade. Alguns corpos, na vida e na morte, são mais disponíveis para o consumo público que outros.
A fotografia de cadáveres impõe o horror do instante, tensionando a denúncia e a preservação da dignidade humana. O debate sobre o uso de imagens de pessoas assassinadas pelo Estado — sejam criminosos ou inocentes — deve envolver legisladores, juristas, jornalistas, familiares de vítimas, movimentos sociais e atores do conhecimento capazes de historicizar a violência visual — acadêmicos, cineastas e artistas visuais devem ser incluídos. Precisamos de marcos legais e éticos sólidos, que protejam a dignidade humana sem cercear o direito à informação, e de uma discussão que questione a pornografia da morte que nos habituou a virar páginas sem hesitar diante de cadáveres expostos e identificáveis.
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