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“Os erros do governo são erros que nos matam.” Ouvi essa frase, na última segunda-feira, (4) dita por Sarah Marques, mulher negra, de 42 anos, liderança da comunidade pesqueira Caranguejo Tabaiares, em Pernambuco. Ela se referia às lutas por território que já levaram a vida de tantos defensores de direitos humanos e do meio ambiente no Brasil, como ocorreu recentemente com a líder quilombola mãe Bernadete. Mas também à ausência do Estado na proteção da população, especialmente das comunidades mais vulneráveis, contra os eventos extremos.
A comunidade de Sarah fica no Recife. Na região metropolitana da cidade, 133 pessoas morreram em decorrência de chuvas intensas no ano passado, a maior tragédia do tipo no estado desde 1966.
O desabafo foi feito durante evento promovido pelos ministérios do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia para debater a revisão do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima. Sarah foi um dos representantes dos movimentos socioambientais convidados para contribuir para os trabalhos em uma perspectiva de justiça climática.
O conceito propõe que se leve em conta que as consequências das mudanças climáticas atingem de forma muito diferente e desigual tanto as pessoas quanto os países, conforme seus recursos e grau de vulnerabilidade.
É um problema que se escancara na nossa frente quase toda semana. Ao mesmo tempo que o seminário começava em Brasília, um ciclone extratropical, combinado com uma frente fria e impulsionado pelo fenômeno do El Niño, chegava ao Rio Grande do Sul – foi o quarto do tipo desde junho, e o mais letal até agora. Pelo menos 41 pessoas tinham morrido até a manhã desta sexta-feira (8).
É mais um evento extremo para a lista dos muitos que têm ocorrido com maior frequência no Brasil nos últimos anos, levando dezenas, às vezes centenas, de vidas, como no Recife. Só para lembrar mais um particularmente marcante, o temporal em São Sebastião, litoral norte de São Paulo, no começo do ano, deixou 65 mortos.
Não são os eventos em si os responsáveis por tantas perdas, mas a falta de condições do país em lidar com essas situações que já estão mais frequentes e intensas e tendem a piorar quanto mais quente ficar o planeta em decorrência do excesso de gases de efeito estufa que a humanidade joga na atmosfera. O Brasil recomeça só agora a olhar para essa situação, depois de ficar anos sem lidar com o problema.
O país tem desde 2009 uma Política Nacional sobre Mudança do Clima, que estabelece a necessidade de agir em duas vertentes do problema: mitigação (que é reduzir as causas do aquecimento global, combatendo as emissões de gases de efeito estufa) e adaptação (que é preparar o país para lidar com as consequências que virão mesmo se as emissões caírem a zero de um dia para outro).
Os anos passaram, medidas foram tomadas para reduzir as emissões (principalmente por meio do combate ao desmatamento da Amazônia, que chegou ao menor nível em 2012), mas a adaptação foi ficando de escanteio. Só em 2016, às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff, foi lançado um Plano Nacional de Adaptação. Mas sua criação se deu por meio de uma portaria do Ministério do Meio Ambiente, ele não foi encampado por outras pastas e nunca chegou a ser implementado.
A realidade é que até hoje a maior parte do Brasil praticamente não conta com nenhum tipo de preparo nem em termos de prevenção nem para lidar com agilidade de modo a conter perdas, a evitar mortes. Daí a fala de Sarah: “Os erros do governo são erros que nos matam”.
Ela pede que as comunidades afetadas sejam realmente integradas à tomada de decisões. “O governo vai continuar errando se não estiver com a gente, se não escutar o povo, se não for uma conversa direta e misturada. Não é só virem aqui os técnicos e tome número que você não entende. É uma conversa direta de quem sofre isso na pele, quem está na linha de frente, com a arma apontada na cabeça, porque está defendendo o seu território”, afirmou.
Uma das coisas que se busca corrigir agora é justamente a ausência dessa perspectiva (não havia o conceito de justiça climática no plano de 2016), mas também a falta de integração com outros ministérios.
O novo plano de adaptação, que se insere em um esforço mais amplo de construir um Plano Clima para o Brasil, será construído no âmbito do Comitê Interministerial (CIM), criado no começo do ano, com 19 ministérios. Sob comando da Casa Civil, é esse grupo que vai definir as ações do país contra as mudanças climáticas. Passados nove meses, porém, o comitê ainda não se reuniu até hoje.
O evento de segunda-feira, considerado o ponto de partida desses trabalhos, reuniu uma parte desse grupo, as titulares dos ministérios do Meio Ambiente (Marina Silva), da Ciência, Tecnologia e Inovação (Luciana Santos), dos Povos Indígenas (Sonia Guajajara) e da Igualdade Racial (Anielle Franco). Justamente as que já conhecem de cor e salteado o tamanho do problema.
Eu tive a oportunidade de estar nesse mesmo evento. Fui convidada a abrir os debates e pude me dirigir diretamente às ministras. Como jornalista que cobre há mais de 20 anos essa agenda, fui instada a trazer algumas provocações ao debate e uma das coisas que apontei foi a falta de todos os outros ministérios naquele evento.
Por que estávamos ali falando de justiça climática sem a presença da Agricultura, das Minas e Energia, da Fazenda, da Casa Civil, se são eles os gestores dos setores que mais têm a ver com injustiças já praticadas no país?
É tudo uma questão de tempo.
O drama de a humanidade estar alterando todo o sistema atmosférico do planeta é que os eventos extremos – que sempre aconteceram – tendem a ficar mais frequentes, mais intensos.
A primeira parte do último relatório do IPCC, lançado em agosto de 2021, apontou que eventos de temperaturas extremas que antes ocorriam uma vez a cada dez anos agora já ocorrem, provavelmente, 2,8 vezes nesse mesmo período. Situações de ondas de calor que antes ocorriam uma vez a cada 50 anos agora provavelmente ocorrem 4,8 vezes.
“Em escala global, projeta-se que eventos extremos diários de precipitação se intensifiquem em cerca de 7% para cada 1 ºC de aquecimento global. A proporção de ciclones tropicais intensos (categorias 4-5) e as velocidades máximas dos ventos dos ciclones tropicais mais intensos devem aumentar em escala global com o aumento do aquecimento global”, escrevem os cientistas no sumário para tomadores de decisão.
Antes de Sarah, a secretária nacional de Mudança do Clima, Ana Toni, apresentou uma série de dados sobre como o país já está sendo afetado e deu uma dimensão numérica do problema. Citando dados de um estudo do Banco Mundial, ela mostrou que desastres no Brasil, no período de 1991 a 2021, resultaram em 4.374 mortes, 8,25 milhões de desabrigados e 98,57 milhões de afetados de algum modo (a maior parte nos estados de SC, MG e RS).
Entre 1995 e 2021, apontou, os danos e prejuízos de desastres climatológicos, hidrológicos e meteorológicos (que incluem estiagem e seca, enxurradas, inundações, deslizamentos e vendavais e ciclones) foram da ordem de R$ 537 bilhões. “Custa muito não se adaptar, custa muito não combater as mudanças do clima”, resumiu.
“Adaptação não é mais uma opção. Ela é absolutamente necessária. A emergência climática é uma realidade, e a gente tem de lidar com ela. Se a gente não tiver o olhar da justiça climática [nesse processo], a gente poderá condenar algumas comunidades a um estágio de pobreza eterno se a gente não tiver a perspectiva da justiça climática como um pilar da política climática”, reconheceu.
Ana Toni e sua chefe, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, sabem que é preciso ter pressa. Em entrevista à Agência Pública nesta semana, Marina detalhou que espera em breve ter uma política nacional de enfrentamento às consequências dos eventos extremos. “Não posso pagar para ver”, disse Marina. “A gente não tem tempo climático, assim como não tem tempo político”, frisou a secretária.
O Brasil perdeu tempo, perdeu pelo menos seis anos em que muita coisa poderia ter sido feita para proteger vidas. Quantos ainda vão morrer no Brasil até que se tenha um plano de adaptação à mudança do clima?