A batalha bolsonarista contra o Supremo Tribunal Federal (STF) já passou por diversas fases e agora chegou mais forte ao Congresso, onde ameaça até direitos já conquistados, como o do casamento civil entre pessoas LGBTQIA+. O jeito de enfrentar o Supremo, agora, é mandar avisos contestando suas decisões, mesmo as já consolidadas há mais de uma década. E o recado é que o STF estaria invadindo as atribuições dos demais poderes e deveria voltar ao seu “devido lugar”.
Na Câmara dos Deputados, durante as sessões da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família que discutiram, nesta semana, o projeto (PL 5167/09) — que proíbe o casamento civil entre pessoas do “mesmo sexo” — , críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF) não faltaram. Em pauta, estava a decisão unânime do tribunal que, em 2011, equiparou estas relações às uniões estáveis entre homens e mulheres e reconheceu a união homoafetiva como um núcleo familiar.
Os convidados e deputados conservadores chegaram a defender que “as palavras homem e mulher foram colocadas na Constituição, justamente para que a entidade familiar do Estado não abrangesse outras uniões”, como disse o procurador Rodrigo Pedroso em audiência pública na última terça-feira (26).
Para a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), o debate sobre o casamento LGBTQIA+ se tornou “mais um espaço para [a oposição] tentar constranger, para tentar criar a ideia de que o STF está tomando decisões que não cabem a ele”. “Sem minimizar o teor preconceituoso, discriminatório da visão de mundo que eles têm, tem sim um cálculo político. Tem críticas ao STF, uma vontade de desgastar o governo, e outros elementos da política”, avaliou o Deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ).
Cabo de guerra declarado
Não somente os governistas veem dessa forma. O deputado federal Capitão Alden (PL-BA), disse em entrevista à Agência Pública que as discussões no Congresso têm trazido “consigo todas essas dores, todas essas insatisfações do Poder Legislativo com o Poder Judiciário, em especial o STF”. O pastor e deputado federal Marco Feliciano (PL-SP) foi na mesma linha e defendeu que o histórico de animosidade com o STF “intensifica” o debate.
Pautas como a descriminalização do aborto e das drogas, além da tese do marco temporal também entraram neste mesmo pacote no enfrentamento ao Supremo. O marco temporal, por exemplo, havia sido rejeitado na semana passada pela Corte, que o considerou inconstitucional. Na quarta-feira (27), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal aprovou o PL 2.903/2023, que reconhece a existência desse mesmo marco. O texto seguiu para o plenário da Casa, que aprovou sua tramitação em urgência.
A oposição também iniciou um processo de obstrução do Congresso em protesto contra o que chamou de “ativismo judicial” da Corte. Nesse cenário, os parlamentares impedem que as sessões e votações ocorram ao não registrar presença. Sem quórum mínimo, reuniões não podem ocorrer.
Porém, de acordo com o Senador Eduardo Girão (NOVO-CE), o grupo político bolsonarista não está “enfrentando ninguém”: “Não é contra o Supremo. Nós somos a favor do Senado. Só que o Supremo tem que ser colocado no lugar dele”.
Luta até por direito já conquistado
A discussão sobre o PL 5167/09 começou na tarde de terça-feira (26) em uma audiência pública que, em função da quantidade de presentes, foi realizada em um auditório. O ambiente estava repleto de ativistas do movimento LGBTQIA+, que espalharam suas bandeiras coloridas aos pés da mesa onde estava o presidente da comissão, deputado Fernando Rodolfo (PL-PE).
Quando os palestrantes defendiam posições contrárias às do movimento LGBTQIA+, o público entoava pedidos para que o presidente da comissão arquivasse o projeto. Quando falavam os ativistas, os presentes reproduziam: “Eu amo homem, amo mulher, tenho direito de amar quem eu quiser”, entre outros gritos do movimento. Até mesmo a Polícia Legislativa foi chamada para impedir um conflito.
Para Marco Feliciano, a decisão do STF que garantiu que, assim como casais heterossexuais, casais homossexuais têm direitos, configuraria uma “ditadura da minoria”, disse, em entrevista à Pública.
“Eles querem fazer revanchismo com o STF usando os nossos direitos, a nossa condição”, avaliou o deputado distrital Fábio Felix (PSOL-DF), primeiro gay eleito para a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF).
Já a deputada federal, Erika Kokay (PT-DF), avaliou que a oposição “tem uma concepção de um direito natural, ou de uma condição natural, que provoca uma desumanização de todos os corpos que não estão dentro da cis-hétero normatividade”. “Então, eles são contra o STF, porque o STF é guardião de uma Constituição que fala em dignidade humana”, finalizou.
O futuro desse debate
Depois da audiência pública, foi marcada a votação do relatório do deputado Pastor Eurico (PL-PE), que defende o projeto contrário ao casamento homossexual. A votação ocorreria na quarta-feira, às 10h, mas, depois de acordo com o presidente da comissão, foi feito um debate e criado um grupo de trabalho para seguir a discussão sobre o tema.
Na sessão, 10 parlamentares a favor e 10 contrários ao relatório debateram, em sessão acompanhada por ativistas do movimento LGBTQIA+. O grupo de trabalho a ser montado trabalhará em um novo relatório, que ainda não tem data definida para ser votado. O grupo de trabalho contará com participantes dos dois lados. Para o deputado Capitão Alden, “essa pauta vai se tornar mais quente, até para que haja uma pressão da sociedade, do STF, para que ele se coloque no seu devido lugar”.
A ameaça a direitos de minorias foi mencionada diretamente pela senadora Eliziane Gama (PSD-MA) em discurso no plenário, pouco antes da aprovação do regime de urgência do PL do marco temporal, quando questionou os custos desse enfrentamento ao judiciário: “Se há um cabo de guerra entre o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, por que usar as minorias do Brasil?”.