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“Marco zero” da tragédia gaúcha, município realoca moradores para áreas altas e incentiva empresas a manterem empregos

Reportagem
29 de abril de 2025
04:00

As enchentes que devastaram Muçum, pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, pela primeira vez entre setembro e novembro de 2023, também arrastaram cenários e figurinos da tradicional encenação da Paixão de Cristo – espetáculo que revive os últimos sofrimentos de Jesus, segundo a tradição católica. Muitos dos atores voluntários perderam suas casas, e a tragédia deixou 21 mortos. Em meio ao luto, não havia clima para manter o evento no fim de março de 2024.

Menos de um mês depois da Páscoa do ano passado, a cidade seria mais uma vez arrasada por fortes chuvas. Daquela vez, praticamente todo o estado foi atingido, no que foi considerada “a maior catástrofe climática” da história do Rio Grande do Sul.

Neste ano, no entanto, a apresentação cristã foi retomada com público recorde, segundo os organizadores. Mais do que uma celebração religiosa, a Paixão de Cristo marcou simbolicamente a reconstrução de Muçum – cidade que teve 80% de sua área urbana destruída por uma sucessão de enchentes e perdeu 20% dos moradores.

“Apesar das dificuldades que a cidade ainda enfrenta, a gente decidiu voltar com o espetáculo porque não dá pra viver nesse círculo de tristeza”, disse o produtor Ranieri Moriggi. Um dos desafios foi adaptar o elenco, desfalcado porque muitas pessoas deixaram o município após a tragédia. Alguns atores tiveram que interpretar dois personagens.

Um dos papéis que ninguém queria pegar – o de Judas Iscariotes, o apóstolo que traiu Jesus – acabou ficando com o prefeito, Mateus Trojan (MDB), reeleito no ano passado. Nascido em Muçum, ele participa do espetáculo há 15 anos e já fez vários papéis. “Este ano acabei sendo o vilão. É raro, mas acontece”, disse, com bom humor.

Eleito em 2020, aos 26 anos, Trojan não imaginava que enfrentaria os momentos mais difíceis da história de Muçum. Assim como outros municípios do Vale do Taquari, a cidade convive há décadas com alagamentos, por estar situada em planícies de inundação. A pior cheia registrada até então havia ocorrido em 1941, quando o rio Taquari subiu mais de 29 metros. Em setembro de 2023, esse nível foi alcançado – e superado oito meses depois, em maio de 2024, quando a água ultrapassou os 31 metros.

Entre os dois episódios mais graves, outras três inundações atingiram a cidade – em novembro de 2023, maio e junho de 2024. Foram eventos menores, mas suficientes para manter a população em estado constante de alerta. Ao todo, foram cinco enchentes em menos de oito meses.

Como Muçum se reergueu

A Agência Pública esteve no local logo após as enchentes, em maio do ano passado; voltou alguns meses depois, em setembro; e retornou agora, às vésperas da última grande enchente completar um ano. Nas visitas, notamos uma forte resiliência dos moradores, mesmo diante das dificuldades, e uma retomada lenta – mas constante – das atividades típicas de um pequeno município.

A principal medida para evitar novas tragédias foi proibir que moradores de áreas consideradas de risco extremo voltassem para os locais. Havia cerca de 400 famílias nesta situação. Todas foram incluídas em programas habitacionais e estão recebendo aluguel social enquanto não recebem as novas casas. Ainda há cerca de 20 famílias que permanecem próximas ao rio Taquari, mas a prefeitura promete que elas receberão casas em terrenos mais altos até o fim de maio.

Para o engenheiro ambiental Fernando Fan, membro do Grupo de Pesquisa em Desastres Naturais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a decisão de impedir as pessoas de voltarem para áreas de risco foi “muito acertada”. “Essas áreas não são adequadas para as pessoas viverem, já que a água ali tem um elevado poder destrutivo”, diz.

Ele explica que retirar totalmente a população de áreas alagáveis “elimina o risco” e adia a necessidade de outras medidas emergenciais, como novas obras que podem ser demoradas ou até desnecessárias. Com isso, os sistemas de alerta passam a ser direcionados apenas a quem possa ser afetado por cheias excepcionais, e não a todos os que vivem em lugares que sempre alagam, como era antes.

“É uma decisão muito triste, porque são as histórias das pessoas, a identidade delas, mas dada a possibilidade da perda de vidas, infelizmente não é possível retornar. Ainda mais num cenário atual de mudanças climáticas e ampliação de ocorrência das cheias”, afirma.

Considerada o “marco zero” da tragédia gaúcha, Muçum recebeu pelo menos R$ 40 milhões do governo federal e R$ 8 milhões do governo estadual, além de outros R$ 12 milhões do caixa do município. A maior parte do valor é destinada a projetos habitacionais.

A condição para os moradores ganharem uma nova casa é doar o terreno da antiga para a prefeitura. No local, a administração planeja instalar parques e praças com o objetivo de ajudar a escoar as águas do rio em caso de novas cheias. Houve resistência de algumas pessoas, principalmente as que tinham terrenos maiores do que os novos lotes, mas ao longo do tempo foram convencidas (ainda que por falta de opção) de que a medida era essencial para a segurança de todos.

O aposentado Sérgio Taborda estava capinando o terreno onde ficava a sua antiga residência durante a visita do fotógrafo da Pública. Como o local foi condenado como de alto risco, ele e a família tiveram que se mudar pagando aluguel enquanto esperam a casa que será dada pelo poder público.

Taborda continua cuidando do local com a esperança de um dia poder voltar, mas o sonho vai diminuindo a cada dia pelo receio de passar por uma nova calamidade. “O medo faz com que a gente tenha uma certa certa cautela”, diz.

Além das medidas habitacionais, Trojan também firmou um acordo com nove empresas que concentram parte significativa dos empregos do município: cederá terrenos em áreas não sujeitas a alagamentos, desde que as companhias se comprometam a manter suas operações na cidade pelos próximos 15 anos, preservando o número de postos de trabalho e o faturamento registrados em 2023.

Depois do trauma deixado pela enchente de setembro de 2023, o município intensificou os alertas para os moradores se deslocarem a lugares seguros: passou a usar carros de som, grupos de WhatsApp, rádio e redes sociais, além de mandar equipes da Defesa Civil diretamente às casas das pessoas que moram nos primeiros locais alagáveis.

A cidade fez treinamentos com moradores e a Defesa Civil sobre primeiros socorros e como agir em situações de crise, renovou as réguas de medição do rio Taquari e comprou antenas Starlink para permitir a comunicação em caso de queda de energia. Também definiu novos locais de abrigo, já que os antigos passaram a ser atingidos pela água.

Com a população mais atenta, Muçum estava mais bem preparada quando ocorreu a enchente de maio de 2024. Enquanto houve 21 mortes em 2023, não houve nenhuma vítima fatal oito meses depois.

Apesar de as iniciativas para reconstrução estarem em estágio avançado, as de prevenção chegaram a um limite. Fernando Fan diz que novas medidas deveriam ser tomadas a longo prazo por órgãos do governo federal, como a Agência Nacional de Águas e o Serviço Geológico Brasileiro, e pelo governo estadual, que poderia realizar obras na bacia do rio Taquari. No entanto, como a Pública mostrou, há lentidão e falhas em ambos os casos.

Ainda assim, Muçum se destaca em relação a outras cidades da região também afetadas pelas enchentes. Um dos fatores, segundo o especialista, foi a experiência de 2023, quando o município sofreu mais que os vizinhos e, com isso, acumulou aprendizado. “Além disso, tecnicamente, o prefeito tem tomado decisões ponderadas, baseadas no que a ciência indica”, opina Fan.

Resultado ou não das iniciativas, a população voltou a crescer – ainda que timidamente – nas contas da gestão municipal. Após perder mil dos 5 mil moradores nos últimos meses, cerca de 400 decidiram retornar.

Casas motivacionais e flores nos canteiros

A volta da Paixão de Cristo e a reabertura da ponte Brochado da Rocha, no início de março, foram os dois marcos simbólicos do recomeço da cidade. Inaugurada em 1963, essa ponte deu à Muçum o apelido de “Princesa das Pontes” e a colocou na rota turística do interior gaúcho.

É difícil não se impressionar com o colosso que cruza a cidade e chega a ter 100 metros de altura no trecho mais alto. Apesar de parte dela ter sido levada pelas chuvas de maio do ano passado, nos meses em que ficou desativada, o que restou da obra ainda serviu como abrigo para moradores que fugiam das águas – e que acamparam lá em cima por dias até que a lama baixasse. O projeto de reconstrução foi o primeiro a ficar pronto, 30 dias depois da tragédia. Os recursos, R$ 9,6 milhões, vieram do governo federal.

Canteiros com flores coloridas foram replantados na avenida principal, para dar “uma energizada” na cidade, como disse o prefeito. As mesmas flores também abundam no loteamento Jardim Cidade Alta 2, o primeiro espaço que foi estruturado para receber pessoas que perderam suas casas na enchente.

Treze casas foram entregues até agora e outras 42 devem sair até o fim de maio. A promessa é de 80 novas moradias até o fim do ano e outras 200 até o fim de 2026, financiadas pelo poder público e empresas privadas.

Como o nome indica, o Jardim Cidade Alta fica num dos pontos mais elevados da cidade – alto o suficiente para escapar de novas cheias, mas ainda com vista para o rio Taquari pela janela.

Teresa e Lisiane de Almeida, mãe e filha, viveram quase 40 anos na entrada de Muçum, ao lado do rio. Acostumaram-se a conviver com enchentes, que vinham todos os anos. “A água subia, a gente saía, depois voltava, limpava e a vida continuava. Mas dessa vez não deu”, diz Teresa. “Por três vezes nós perdemos tudo.”

Em setembro de 2023, quando o rio começou a subir, as duas foram para a paróquia da cidade, que costuma ser usada como abrigo em situações de emergência. Mas outra filha de Teresa, grávida, optou por permanecer em casa com o marido. Eles acreditavam que estavam seguros porque a casa tinha um terceiro piso, onde a água nunca havia chegado antes. Tiveram que ser resgatados de barco pouco antes de a casa submergir.

As duas receberam casas no novo loteamento. Cada uma das residências foi batizada com um nome inspiracional. Teresa vive agora na casa “Força”. Lisiane, na “Despertar”.

Pouco à frente, a aposentada Gemma Broca mora na “Sorriso” com seus dois passarinhos. A casa antiga foi totalmente levada pelas águas, junto com todas as memórias que tinha dos filhos e netos – sua maior tristeza. “A gente tentou colocar no teto, mas não adiantou. Foi tudo, até álbum de formatura”, conta. Como os demais vizinhos, sente falta da vida antes da mudança, mas concorda que agora está mais segura.

Outras vítimas da enchente devem ser alocadas no loteamento Renascer, atualmente em fase de obras de infraestrutura geral e nivelamento dos terrenos, e no Jardim Cidade Alta 3, que está em processo de desapropriação do terreno. O último será o maior, com 200 unidades habitacionais, e deve abrigar não apenas moradores que perderam suas casas na enchente, mas também os que moravam em locais de risco.

A maioria das famílias que viviam às margens do rio se mudaram ou estão na casa de parentes. Elas recebiam um auxílio-aluguel de R$ 800 mensais, que recentemente foi reduzido para R$ 500, após corte de repasses do estado e da União.

O antigo cemitério, tão destroçado pelas cheias que chegou a ter pedaços de lápides levados pelas ruas adentro, ficará em um terreno doado por uma moradora e está em fase de terraplanagem. Enquanto isso, falecidos estão sendo levados para cidades vizinhas.

Aos poucos a cidade retoma a sua rotina, tentando fugir do estigma de uma das cidades mais castigadas pela tragédia climática no Sul, que a fizeram ser conhecida no resto do país. “A cidade nunca voltará a ser exatamente como era, mas a dita normalidade será retomada nos próximos anos”, acredita Trojan. “Será em uma Muçum não igual, mas mais forte.”

Edição: | Fotógrafo:
Carlos Macedo/Agência Pública
MUÇUM, RS - 4/04/2025 - Desde maio de 2024, Muçum tem vivido um intenso processo de reconstrução, com avanços significativos em habitação, economia e infraestrutura. A cidade, que enfrentou os desafios das enchentes de 2023 e 2024, está se reerguendo com planejamento e apoio de diferentes esferas governamentais e da iniciativa privada. Na foto, Loteamento Jardim Cidade Alta 2, com 42 casas construídas pela União BR, e que serão entregues em abril, e as demais ao longo deste ano. FOTO: Carlos Macedo/Agência Pública
MUÇUM, RS - 4/04/2025 - Desde maio de 2024, Muçum tem vivido um intenso processo de reconstrução, com avanços significativos em habitação, economia e infraestrutura. A cidade, que enfrentou os desafios das enchentes de 2023 e 2024, está se reerguendo com planejamento e apoio de diferentes esferas governamentais e da iniciativa privada. Na foto, Loteamento Jardim Cidade Alta 2, com 42 casas construídas pela União BR, e que serão entregues em abril, e as demais ao longo deste ano. FOTO: Carlos Macedo/Agência Pública
MUÇUM, RS - 4/04/2025 - Desde maio de 2024, Muçum tem vivido um intenso processo de reconstrução, com avanços significativos em habitação, economia e infraestrutura. A cidade, que enfrentou os desafios das enchentes de 2023 e 2024, está se reerguendo com planejamento e apoio de diferentes esferas governamentais e da iniciativa privada. Na foto, Loteamento Jardim Cidade Alta 2, com 42 casas construídas pela União BR, e que serão entregues em abril, e as demais ao longo deste ano. FOTO: Carlos Macedo/Agência Pública
MUÇUM, RS - 4/04/2025 - Desde maio de 2024, Muçum tem vivido um intenso processo de reconstrução, com avanços significativos em habitação, economia e infraestrutura. A cidade, que enfrentou os desafios das enchentes de 2023 e 2024, está se reerguendo com planejamento e apoio de diferentes esferas governamentais e da iniciativa privada. Na foto, Loteamento Jardim Cidade Alta 2, com 42 casas construídas pela União BR, e que serão entregues em abril, e as demais ao longo deste ano. FOTO: Carlos Macedo/Agência Pública
MUÇUM, RS - 4/04/2025 - Desde maio de 2024, Muçum tem vivido um intenso processo de reconstrução, com avanços significativos em habitação, economia e infraestrutura. A cidade, que enfrentou os desafios das enchentes de 2023 e 2024, está se reerguendo com planejamento e apoio de diferentes esferas governamentais e da iniciativa privada. Na foto, Loteamento Jardim Cidade Alta 2, com 42 casas construídas pela União BR, e que serão entregues em abril, e as demais ao longo deste ano. FOTO: Carlos Macedo/Agência Pública
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