Mais de nove meses se passaram desde uma operação da Polícia Civil do Pará que acabou com dois posseiros mortos e denúncias de tortura policial, mas o governo Helder Barbalho (MDB) ainda não elucidou o caso. A Agência Pública expõe as ‘pontas soltas’ do caso e revela novos elementos por trás da operação Fortis Status – como a resistência da polícia em liberar laudos de perícia para o Ministério Público, que apura o ocorrido em outubro de 2024 na fazenda Mutamba em Marabá (PA), a mais de 550 km da capital Belém (PA).
Um grupo de sete entidades, incluindo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) vê no caso uma repetição do massacre de Pau D’Arco (PA) – quando dez trabalhadores rurais foram assassinados por policiais do Pará. Há meses, as entidades pedem à Polícia Federal (PF) uma apuração independente, mas até o momento a PF não se envolveu.
“Dos trabalhadores presos, nenhum tinha mandado de prisão e só um tinha condenação; os dois mortos também não tinham prisões decretadas, nem passagem pela polícia. A operação, nessa perspectiva, foi uma farsa”, apontam as entidades.
Por que isso importa?
- Após a sangrenta operação policial “Fortis Status” na fazenda Mutamba, em Marabá (PA), novas revelações e a persistente falta de respostas oficiais lançam uma sombra ainda maior sobre a conduta das autoridades no episódio envolvendo um território em disputa.
A polícia alega ter sido recebida a tiros na data da operação, razão pela qual Adão Rodrigues de Souza, de 53 anos, e Edson Pereira da Silva, de 43, ambos sem antecedentes criminais, teriam sido mortos em um suposto confronto – uma versão sem provas conclusivas até o momento.
Para obter autorização para a operação, o responsável pela Delegacia Especializada em Conflitos Agrários (DECA) em Marabá à época dos fatos, delegado Antônio Mororó Junior, indagou à Justiça do Pará: “o que faltou para a região ser palco de mais um derramamento de sangue?”. Mas foi a polícia quem derramou sangue na fazenda Mutamba.

Um tiroteio de véspera
A reportagem apurou que houve um tiroteio na fazenda envolvendo agentes da DECA três dias antes da operação. Em 8 de outubro de 2024, policiais foram ao local em uma viatura descaracterizada, para fazer o “reconhecimento da área”, mas teriam sido recebidos a tiros, revidando e fugindo. O tiroteio foi citado nos interrogatórios dos posseiros presos na Fortis Status.
Há suspeitas que o confronto dias antes possa ter influenciado o comportamento dos policiais, alvo de críticas por movimentos sociais que monitoram conflitos na região.

As organizações questionam a conduta dos agentes na ação, chefiados pela DECA. “Se o delegado Mororó, auxiliado por um contingente de 20 policiais, cinco viaturas e dois helicópteros, quisesse realmente prender os trabalhadores, não teria quaisquer dificuldades de fazer um cerco ao local e, certamente, sem disparar um único tiro, prender todos que se encontravam ali”, relataram as sete entidades ao governo federal e ao MPF ainda em 2024.
As entidades questionam até a disposição dos policiais no local, onde tinham posição vantajosa e cobertura aérea em uma eventual troca de tiros – como teria acontecido, segundo a polícia.
A ação ocorreu em uma fazenda de 20 mil hectares cuja área é alvo de denúncias de grilagem, mas contra os supostos donos, que pertencem à família Mutran – que esteve na “Lista Suja” do trabalho escravo nos anos 2000, como revelado pelo site Repórter Brasil. A Pública apurou que a DECA não investigou a suspeita de grilagem contra os Mutran.

A Defensoria Pública do Pará e movimentos sociais estimam que 200 famílias sem-terra vivem na área atualmente. Mas, a pedido dos Mutran, no último dia 6 de junho a Justiça do Pará determinou o despejo das famílias da fazenda em até quatro meses, até o próximo dia 6 de outubro.
Polícia ainda não enviou laudos das armas usadas na operação
Até o momento, o Ministério Público do Pará (MPPA) não recebeu laudos de perícia das armas usadas pelos policiais, nem exames de resíduos de disparo de armas de fogo das duas vítimas. O MPPA pede pelo laudo das armas e eventuais registros em vídeo da operação há mais de seis meses.
O Ministério Público Federal (MPF) e a Corregedoria da polícia também apuram as circunstâncias do caso. A Diretoria de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do governo federal também monitora a situação. Porém, ainda não há veredito sobre a conduta dos agentes envolvidos.
Após o fracasso da ação policial, a juíza da 1ª Vara Criminal da Justiça Estadual em Marabá, Alessandra Rocha da Silva Souza, ordenou que a DECA apresentasse evidências para elucidar o caso.

Em ofício datado de 9 de dezembro, o delegado da DECA enviou laudos produzidos no local e a partir dos materiais apreendidos. Mas ele não enviou todos os documentos, em especial os laudos das armas usadas pelos policiais e os exames de resíduos de disparo de armas de fogo das duas vítimas fatais.
Mororó afirmou à Justiça que não enviaria o exame de resíduos de disparo das vítimas por uma suposta “fragilidade” desta técnica, sem dar mais detalhes, alegando apenas que o “Centro de Perícias Científicas [da polícia] não o realiza”.
Um exame de resíduos de disparo poderia identificar, por exemplo, rastros de pólvora e outras substâncias que comprovariam, ou não, a tese alegada pela DECA – de que as duas vítimas atiraram contra os policiais.

Em 19 de dezembro, a promotora Cristine Magella Corrêa Lima, da 5ª Promotoria de Justiça Criminal de Marabá, comunicou à Justiça que havia “fatos pendentes de esclarecimentos”, “uma vez que não foi apresentado o laudo de perícia das armas de fogo dos policiais civis que efetuaram os disparos”.
A polícia só respondeu oficialmente ao pedido mais de quatro meses depois. Em 23 de abril de 2025, o atual delegado da DECA em Marabá, Vannir Wagner Fernandes Sousa, requisitou à Justiça que o pedido fosse encaminhado para a delegacia de Jacundá (PA), pois o caso foi repassado ao delegado Rafael Lira Monteiro, “lotado na referida unidade”.
Uma das vítimas morreu com ao menos um tiro pelas costas
Entre os materiais enviados pela DECA à Justiça, constam laudos de perícia produzidos no local da operação, com análises das armas de fogo, munições, facões, facas, rojões e foguetes apreendidos com os posseiros.

A perícia teve início por volta das 7h40, com a equipe encontrando o local “em total desalinho”, completamente revirado. Próximo aos corpos, os peritos encontraram duas espingardas e cartuchos de munição nos bolsos das vítimas. Mas, sem um exame de resíduos de disparo, não se pode confirmar se os posseiros mortos atiraram nos policiais.


As constatações da perícia sobre Adão de Souza chamam atenção por um detalhe: ele teria sido atingido por nove tiros, incluindo um pelas costas. Os peritos identificaram “lesões provocadas por Projéteis de Arma de Fogo (PAF)”, mas não definiram qual dos nove disparos acarretou na sua morte.
Procurada pela Pública, a Polícia Civil disse que “o inquérito relacionado ao flagrante dos quatro indivíduos presos foi concluído dentro do prazo legal e remetido à Justiça”, mas que o caso “segue em andamento”, “sob segredo de Justiça”.
O MPPA recebeu as perguntas sobre o caso, mas não respondeu até o fechamento deste texto. Já o MPF disse apenas que sua apuração sobre o caso “tramita sob sigilo”.
A Pública ainda procurou o delegado Antônio Mororó Junior, sem resposta. Caso ele se manifeste, haverá atualização.