Em uma mistura de ansiedade com deslumbre, ao embarcar no metrô de São Paulo pela primeira vez, o historiador e ativista Luis Mahin, homem trans de 64 anos, se tornou novamente um menino, quando se pendurou nas hastes do vagão e tentou uma cambalhota no ar. O momento do êxtase estava a poucos minutos de distância: a sua estreia na Parada do Orgulho LGBTQIA+ da capital paulista, considerada a maior do mundo, a convite da organização do evento.
Ele foi um dos destaques do cortejo, no último domingo, 22 de junho. Na sua 29ª edição, o evento teve como tema “Envelhecer LGBT+: Memória, Resistência e Futuro”.
Mahin saiu no mesmo trio elétrico reservado para autoridades e para homenagens às pessoas 60+. Conforme o veículo andava em meio à multidão de quatro milhões de pessoas, o ativista acenava, mandava beijos e ensaiava passos tímidos em clássicos musicais como I will survive, da Glória Gaynor e YMCA, do Village People. “Eu sinto que isso tudo é para mim. As pessoas lá embaixo olham e se reconhecem aqui”, disse.
Por que isso importa?
- Debates sobre envelhecimento da população LGBTQIA+ ganharam destaque no mês do Orgulho, em 2025.
- Agência Pública acompanhou a estreia de um ativista trans de 64 anos na Parada do Orgulho LGBTQIA+, em São Paulo, considerada a maior do mundo.
O caminho que trouxe Mahin até esse momento apoteótico é de muita luta contra o preconceito, etarismo e pelo simples direito de existir e trabalhar como homem trans. Ele está desempregado há um ano e tenta reconstruir a vida depois das cheias do Rio Grande do Sul, no ano passado, que castigaram sua cidade. Visitar São Paulo só foi possível com ajuda dos amigos, que fizeram uma vaquinha virtual.
Mahin diz ser um “sujeito em trânsito”, cuja história é composta por “travessias” que não falam de deslocamentos geográficos, mas de uma pessoa que “não se contenta com o repouso” e faz da sua sobrevivência um ato político constante. Afinal, ele driblou as estatísticas de expectativa de vida de pessoas trans no Brasil – que é de 35 anos, segundo a Associação Nacional de Trans e Travestis (Antra) – e hoje é a história viva de um corpo que enfrentou três ditaduras, como diz: familiar, militar e social, essa última encarada até hoje.

Morador de Rio Grande, município a 317 quilômetros da capital gaúcha, Porto Alegre, Mahin ficou conhecido na cidade de 190 mil habitantes por seu ativismo social e ambiental e discursos inflamados. Ele também concorreu ao cargo de vereador pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) nas eleições de 2024, mas acabou não eleito.
Por seu ativismo, foi escolhido para participar de uma sessão de fotos que integra hoje a exposição “O mais profundo é a pele: envelhecer LGBT+” do fotógrafo Rafael Medina, em exibição no Museu da Diversidade Sexual, em São Paulo. Foi a sessão de fotos que lhe rendeu o convite pela organização da Parada do Orgulho LGBTQIA+ de São Paulo, mas ele não tinha recursos suficientes para bancar a ida até a capital paulista.

Foi então que amigos fizeram uma vaquinha online, que conseguiu arrecadar dinheiro suficiente para cobrir as despesas. Mahin recebeu a reportagem da Agência Pública para contar sua história no apartamento de um amigo que o hospedava, no Centro de São Paulo, na manhã em que ocorreria a parada.
Durante o café, o ativista lembrou que aquela era “uma das poucas vezes em que eu tenho a oportunidade de discutir a transmasculinidade com pessoas jovens, porque em Rio Grande, eu não sou chamado para nada.”
Transição aos 57 anos
A transição de Mahin ocorreu em 2017, aos 57 anos, mas já aos seis anos, em 1966, o ativista teve a primeira fresta de si: um dia, fugiu da casa da avó materna e foi até a barbearia de um amigo de seu pai, onde pediu ao barbeiro para que ele fizesse a sua barba. O profissional embarcou na brincadeira que, embora fosse infantil, dizia muito sobre quem, anos depois, ele seria.
“Imagine uma criança com seis anos lá no século passado, século 20, se reconhecer enquanto um homem sem ter a dimensão do que era essa questão de gênero”, lembrou.
Parte da trajetória do ativista foi composta por “camisas de força”, diz, das quais ele sempre deu um jeito de escapar. A primeira ocorreu no mesmo dia em que foi ao barbeiro, quando a mãe o viu chegar com o rosto repleto de talco. O olhar de reprovação dela já denunciava que talvez ele “não seria o sujeito que ela esperava pra vida dela”, conta.
No Educandário Coração de Maria, onde estudou, o regimento era rigoroso durante a ditadura militar. As meninas deveriam usar saias, mas Mahin encontrava brechas para poder se vestir como desejava. Ao sair de casa, dobrava a saia e colocava shorts ou calção. Uma esquina antes da escola, trocava a vestimenta.
Na adolescência, passou a demonstrar as suas paixões por meninas, o que o levou a sofrer LGBTfobia na escola ao ser chamado de “sapatão”. Incomodada com a repercussão, a mãe o levou a um psicólogo que, segundo Mahin, disse: “você tem que namorar com um homem”.
A fala do terapeuta incomodou, mas não intimidou. “Um dia eu vou encontrar a luz no fim do túnel. Não pode ser escuro até a eternidade”, pensou na época. Somente aos 21 anos, o ativista contou à mãe sobre a sua orientação sexual. A reação dela não foi positiva. Já o pai demonstrou mais acolhimento. “Ele só me perguntou se era isso mesmo que eu queria e se eu tinha entendimento do que era e a minha resposta foi ‘sim’”.
A luta pelo direito de ser quem se é
Aos 53 anos, Mahin resolveu cursar história e ficou em terceiro lugar na classificação geral para o curso. Foi a primeira graduação do ativista, mas também o diploma do próprio nome social.
No seu processo de reflexão sobre a transição de gênero, ele cita uma entrevista do escritor João Nery à apresentadora Marília Gabriela, no programa “De frente com Gabi”, em 2011, no SBT, como parte do seu processo de reflexão sobre a transição de gênero. Nery foi o primeiro homem trans a realizar uma cirurgia de redesignação sexual no Brasil, em 1977.
Com o apoio de sua esposa, a decisão foi tomada em 7 de dezembro, dia do seu aniversário. O tratamento foi iniciado dentro do hospital da Universidade Federal do Rio Grande (Furg).
“Eu queria ver esse sujeito sair de trás dessa cortina e aparecer no palco”, disse. Embora o processo de transição ocorresse bem, ele precisou esperar muito pela mastectomia. “Nós estávamos com toda a documentação, faltava um único documento: uma assinatura do Ministério da Saúde para que o hospital fosse habilitado. Então, entrou o governo Bolsonaro e pararam tudo. Passamos quatro anos aguardando”, contou.

Foi somente no governo Lula que a autorização ocorreu. Mas, em maio de 2024, as enchentes no Rio Grande do Sul fecharam a unidade hospitalar da universidade e a casa de Mahin foi invadida pela água. O casal teve que sair de casa às pressas, no dia 8 de maio, em um bote da Defesa Civil. Os documentos e todos os exames foram perdidos na água. Sem lugar para ficar, por seis meses, eles se abrigaram na residência de amigos e só conseguiram voltar para casa em novembro.
Foram três meses até que o ativista social fizesse todos os exames novamente e o hospital universitário retomasse as operações. Em 26 de julho, ele finalmente foi internado para que o procedimento fosse realizado pelas médicas Tânia Fonseca e Kharen Carlotto. Foi a primeira mastectomia masculinizadora pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na sua cidade.
A cirurgia foi um sucesso. Assim que se recuperasse, prometeu a si mesmo que mergulharia no mar sem camiseta, como fazia quando era criança. O banho aconteceu assim que obteve liberação médica, em novembro.
Etarismo e transfobia
Embora o tema da Parada do Orgulho LGBTQIA+ fosse o envelhecimento, Mahin observou que o cortejo no dia 22 de junho era majoritariamente composto por pessoas mais jovens. “Eu acredito que uma grande parcela da população LGBT +, 50, 60 anos ou mais está excluída socialmente, excluída do mercado de trabalho também”, disse.
Desempregado há um ano, a idade avançada, a transfobia e a falta de experiências profissionais em sua carteira de trabalho, com o nome adotado após a transição, dificultam a busca por vagas de emprego.
“Eu não existo como trabalhador”, disse Mahin. “Eu, enquanto Luis, não tenho como comprovar a experiência, porque sempre vai cair lá no nome morto”.
A única fonte de renda dele atualmente vem do trabalho da esposa, Marcia Casilde Reis Domingues, de 49 anos, que é pedagoga e tem atuado nas escolas públicas do estado, em um contrato temporário.
A falta de recursos afeta até mesmo o tratamento contínuo de transição de gênero. Houve momentos em que a ingestão do hormônio Deposteron foi interrompida, porque ele e a esposa não tinham dinheiro para comprar a medicação, que ainda não está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) de Rio Grande.
Além das dificuldades enfrentadas cotidianamente, o momento da família é de recuperação, pois ainda não conseguiram recompor o que perderam nas enchentes que devastaram a cidade e outros 50 municípios gaúchos, em maio de 2024. A água levou móveis, documentos e roupas. O que conseguiram salvar foram a própria vida, os animais de estimação e alguns livros.
Por seis meses, a família ficou hospedada na casa de uma professora que ministrava aulas para Marcia, que estava prestes a se formar em pedagogia.
O trauma das chuvas do ano passado são sentidos até hoje. Durante a entrevista, era impossível não notar a preocupação do ativista com as chuvas que aumentaram no Rio Grande do Sul neste inverno e já deixaram nesta semana quatro pessoas mortas. A cada notificação, ele olhava o celular para se certificar de que a esposa estava bem.
Mas todas essas preocupações e dores se dissiparam na avenida. Saiu do “planeta nunca” de onde ele diz ter vindo, em uma metáfora sobre as dificuldades que a terceira idade e a transfobia lhe impõem, ele chegou ao esplendor da maior Parada do Orgulho LGBTQIA+ do planeta: “esse é um momento que eu não vou mais esquecer porque vai ficar registrado na memória”, disse.