Quase um ano após a destruição do terreiro de jarê do Peji Pedra Branca de Oxóssi, em Lençóis (BA), em 21 de julho do ano passado, o servidor responsável pela operação que levou à demolição do local sagrado, na mata do Vale do Curupati, foi responsabilizado pela ação. O desfecho, no entanto, foi recebido com surpresa por profissionais que acompanharam o caso e denunciaram a necessidade de uma investigação sobre racismo religioso. Lideranças locais agora se mobilizam para realizar ação em protesto contra o que classificam ser uma impunidade quanto à ação.
O jarê tem matriz afro, influência indígena e mistura elementos do catolicismo, umbanda e espiritismo desde o século 19. É uma manifestação que tem origem na Chapada Diamantina, também conhecida como candomblé de cabloco, e sua mística ganhou notoriedade internacional após ser retratada no bestseller ganhador do Prêmio Jabuti, Torto Arado.
Por que isso importa?
- Casos de racismo religioso são crimes tipificados em lei e promovem violações mais graves quando cometidos por representantes do Estado. Episódios como o de Lençóis mobilizam atenção por servir de referência sobre como o governo age pode agir para proteger os cidadãos e compensar possíveis abusos de seus servidores.
O analista ambiental Marco Antônio de Freitas assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) junto à Corregedoria do Instituto Chico Mendes (ICMBio) se comprometendo a realizar um curso online de fundamentos da integridade pública, conforme decisão publicada no boletim de serviços número 29 do órgão, em 12 de junho. O caso foi considerado apenas uma inobservância das “normas legais e regulamentares”, à luz da Lei 8.112/1990.
A decisão do corregedor José Ernane Barbosa de Castro concede prazo de um ano para o agente concluir o curso, que prevê certificação ao término do streaming dos vídeos, sem exigência de provas quanto ao conteúdo, ou seja, considera o curso concluído após a reprodução completa de cada vídeo, sem forma de verificação da exposição ao conteúdo ou de sua apreensão. A trilha de aprendizagem em questão tem 182 horas, é oferecida preferencialmente a servidores públicos pela Escola Virtual da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e contempla oito ciclos temáticos – nenhum deles relacionados a racismo ou intolerância religiosa.

Para o diretor da promoção da igualdade racial da Secretaria de Assistência Social de Lençóis, Uilami Dejan de Azevedo Ferreira, a decisão da corregedoria seria o equivalente a “passar a mão na cabeça” do servidor. “Não tem forma mais clara de racismo institucional”, avaliou o profissional, que classifica o caso como um ato de racismo religioso.
Lideranças locais articulam que um documento em repúdio à responsabilização do caso seja redigido durante a Conferência de Igualdade Racial do município, que será realizada no dia 6 de julho, para ser encaminhada ao ICMBio com pedido para evitar impunidade. A ideia é garantir que outros habitantes da região não passem por episódios semelhantes.
Segundo dados coletados pela pesquisadora Maria Medrado Nascimento, da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), de Ilhéus (BA), 277 famílias habitam o Parque Nacional da Chapada Diamantina (PNCD), sendo 28 nativas.
Episódio obscuro, responsabilidade e respostas “claras”
À época da demolição, o episódio foi usado para atacar o governo Lula e motivou um pronunciamento oficial do presidente do ICMBio, Mauro Pires, em formato de entrevista para o canal oficial do órgão, em que admitia ser necessário entender as limitações que “impediram o conhecimento prévio de que havia ali um terreiro de jarê” e as causas da “falha” e “agir para que não aconteça novamente”.
Nos bastidores, fontes ouvidas pela Agência Pública em anonimato afirmam que há consenso na cúpula do ICMBio de que a ação foi um erro. “Não havia como não saber que o local era religioso. [Ali] Havia mais cruzes que na Igreja do Bonfim”, disse um servidor”, disse um servidor. No entanto, as questões raciais e de intolerância religiosa ficaram de fora das motivações das soluções dadas ao episódio.

Procurado, o órgão afirmou que “assumiu, desde o princípio, a responsabilidade sobre o ocorrido, informou que um termo de reparação para a reconstrução do terreiro foi assinado em 6 de dezembro do ano passado, no campus avançado da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) em Lençóis, e que o caso acelerou o reconhecimento dos terreiros do parque.
Quanto ao servidor que promoveu a demolição, o ICMBio alegou que a corregedoria “asseverou que a gravidade do ato, ainda que realizado de forma culposa, foi alta, o que ensejou a assinatura do termo de ajustamento de conduta, com obrigações ao agente, além da suspensão das atividades de fiscalização”.
Segundo a assessoria de comunicação do órgão, o procedimento investigativo não verificou racismo na ação: “o servidor informou que as ações de demolição se deram em razão de construções irregulares e, assim que se constatou tratar de habitação religiosa, cessou a demolição”, destaca nota oficial.

Terreiro foi reconstruído e retomou atividades
Líder religioso do terreiro de jarê do Peji Pedra Branca de Oxóssi e um dos nativos do parque, Gilberto Tito de Araújo, conhecido como Damaré, já voltou a dormir. Em entrevista à Pública à época do ocorrido ele chegou a afirmar que esse seria um luxo que lhe foi tirado após a demolição indevida. “Meu coração já melhorou bastante”, conta. Damaré diz que derrubaram o espaço “sem a gente ter feito nada” por “usarem de poder”, mas diz não guardar desejo de punição aos servidores que participaram da ação. “Liberdade mesmo. Na paz, temos que perdoar todo mundo”, diz, reforçando acreditar que outro episódio do gênero não deve se repetir na região.

“O pessoal falou que ia dar um documento [a gente] ter garantia, todas as casas de jarê”, completou, se referindo ao processo de aceleração do reconhecimento de comunidades tradicionais locais anunciado pelo ICMBio. “Ninguém vence o povo unido”, pontuou o líder religioso.
O terreiro do Peji Pedra Branca foi reconstruído e reinaugurado no dia 3 de maio. Parte dos santos destruídos durante a operação foram restaurados, outros tiveram que ser substituídos para compor o altar. “Deu muita gente e muita água no dia. Choveu muito. O pessoal do ICMBio veio, a prefeita [de Lençóis, Vanessa Senna (PSD/BA] também. Ficou bom”, lembra Damaré.
A reconstrução do terreiro foi possível após acordo firmado entre Damaré e o ICMBio, que, entre outros termos, protege o órgão e a União de possíveis processos judiciais. O termo de reparação concedeu R$ 120 mil para a obra que recuperou o local. “Jesus pagou o restante”, resumiu Damaré.




Servidor disse ter sido “punido de outras formas” e nega racismo: “fui casado com mulher negra”
Em junho, Marco Antônio de Freitas assinou o TAC que exigiu sua participação em um curso online da Enap. Questionado pela Pública se achou a resolução justa, afirmou não ver problema em cumprir a proposta. “Todo e qualquer curso é importante para o crescimento profissional de qualquer ser humano”, disse, antes de admitir uma “falha” na fiscalização, negar que sua ação foi motivada por racismo religioso e dizer que foi “punido de outras formas”.
Após a demolição do terreiro de jarê ganhar repercussão nacional, o servidor perdeu o porte de arma e foi exonerado da chefia da Unidade de Conservação ESEC Murici-AL em 10 de outubro de 2024, o que ele afirma ser “totalmente ligado” ao episódio “de forma muito arbitrária”. “A unidade ficou quase 80 dias sem chefia e sem fiscal. Eu era o único. […] A falha de procedimento na Chapada Diamantina não tem nada a ver com a Estação Ecológica de Murici, […] área que estou lotado há oito anos por paixão, pessoal, que sou doutor em zoologia. […] Na prática, foi punição, não foi nada dentro das normas legais”, pontuou.
O agente recorreu à Justiça para tentar ser reconduzido ao cargo e se disse perseguido. Ao argumentar por um mandado de segurança, a defensora de Freitas, a advogada Maraísa Gabão Mascarenhas, afirmou que o caso “por se tratar de um terreiro de matriz religiosa africana, gerou uma comoção social e midiática oportunista, exacerbada pelo momento político” e atribuiu a responsabilidade exclusivamente ao ICMBio, que, segundo a peça, teria induzido o servidor ao erro. O pedido foi indeferido. “Foi escolhido um juiz completamente ligado, intelectualmente falando, a questões religiosas”, afirmou.

Freitas critica o “excesso de proteção a supostas pessoas inocentes tradicionais, entre aspas, em unidades de conservação”, diz que houve “quem tenha se aproveitado” do episódio e ironiza o valor da reparação concedido no caso: “Daria para reconstruir tudo com R$ 20 mil. Devem ter construído um templo do tamanho do de Edir Macedo [em referência ao Templo de Salomão, em São Paulo]”. O analista ambiental também afirmou que hoje, meses após a operação que mirava construções irregulares no parque, ainda defenderia a derrubada dos imóveis – 17 no total -, incluindo a propriedade de Pai Damaré, por não acreditar que elas sejam, de fato, tradicionais.
Apesar dos dizeres religiosos e adereços espalhados no terreno, o servidor descreveu no relatório da operação, obtido pela Pública, que não haveria como reconhecer o espaço religioso antes da demolição. A ação é descrita da seguinte forma: “posteriormente com a observação de um pequeno quarto parcialmente demolido, percebeu-se tratar de um espaço religioso e a demolição foi cessada, infelizmente, o espaço sem nenhum tipo de imagem, que era maior, já havia sido demolido”.
Em entrevista, Freitas defendeu que os restos mortais de animais e as espécies de plantas colocadas em cruz, uso típico do candomblé, também não foram suficientes para identificar o local como um terreiro por serem itens “comuns em residências da região” e negou ter praticado racismo religioso na fiscalização. “Até mesmo porque já fui casado com mulher negra, sou de Salvador, na Bahia, e conheço bem as religiões afro”, disse, imediatamente antes de afirmar: “Desconhecia totalmente o tal do jarê, só conheci depois de toda a problemática.”