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Longe do básico, 830 mil alunos seguem sem acesso a água potável em escolas

Lei vai obrigar poder público a garantir acesso a água potável em escolas: 6,6 mil não tinham até 2024

Reportagem
5 de dezembro de 2025
04:00
Yasmin Velloso/Agência Pública.

Cerca de 830 mil estudantes brasileiros não têm água para beber na escola. Dados do Censo Escolar de 2024 mostram que quase 650 mil alunos estudam em unidades sem acesso a água potável, e outros 180 mil frequentam escolas onde não há qualquer fornecimento. Essa é a realidade que o projeto de lei 5.696/2023, aprovado em novembro no Senado, busca enfrentar ao obrigar o poder público a garantir acesso à água potável nas escolas.

Até o ano passado, o universo de unidades de ensino sem esse direito básico era de 6.658 em todo o país. As escolas identificadas com essa carência estão presentes em 26 estados, sendo a maioria delas concentrada nas regiões Norte e Nordeste do país, tendo o Pará na liderança, com 1,9 mil colégios sem acesso à água potável até 2024.

A lei 12.276/25, publicada no Diário Oficial da União nesta semana após sanção do presidente Lula (PT), prevê que União, estados e municípios assegurem infraestrutura e saneamento básico, e autoriza o uso de verbas do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE). Escolas que não comprovarem impossibilidade técnica ou falta de recursos para garantir o acesso ao recurso básico terão repasses suspensos a partir da publicação da lei.

A psicóloga e professora da regional de ensino do Distrito Federal Cheila Dias destaca que a falta de um direito básico como a água dificulta o aprendizado e pode ter efeitos pouco mensurados. Na prática, a escassez reduz a atenção, prejudica a concentração e acelera a fadiga dos estudantes. “Sem água de qualidade, o aluno cansa mais rápido e aprende menos”, explica, alertando também para os efeitos emocionais: a água inadequada altera o humor, aumenta a irritabilidade e diminui o engajamento em sala de aula, além de fragilizar o vínculo com a própria escola.

Nas palavras da docente, quando a criança percebe que o ambiente não garante condições básicas, começa a evitar beber, falta mais e corre maior risco de evasão. Além disso, a normalização dessas condições comprometeria a formação cidadã: “Conviver com o mínimo precarizado faz com que os estudantes deixem de reconhecer seus direitos.

O acesso a direitos básicos pode afetar diretamente o ensino, mas é algo que passa ao largo do radar do Ministério da Educação. Apesar de quase 1 milhão de alunos não terem acesso a água potável no país, procurada para comentar sobre a dificuldade que isso representa para atingir metas de desempenho e formação, a pasta afirmou apenas que sua responsabilidade se limita à infraestrutura educacional e ao apoio técnico e financeiro às redes de ensino. A qualidade da água, segundo o órgão, seria atribuição exclusiva de estados, municípios e órgãos de vigilância sanitária e saneamento.

Pingos de consciência: a realidade salobra dos vizinhos mirins da Esplanada

A apenas 46 km do Congresso Nacional e do Ministério da Educação, uma escola que já teve que ser movida de lugar para não concorrer com a presença de uma fábrica de cimentos é um exemplo claro de como o acesso a água potável é um desafio para a educação infantil na única unidade federativa que ficou de fora da lista de afetadas por escassez de água potável em unidades de ensino do Censo Escolar. A unidade rural de educação infantil, vez por outra, enfrenta escassez de recursos, ataques de formigas às instalações ou a presença recorrente de serpentes nas dependências da escola, mas é mesmo a falta de água que volta e meia provoca a suspensão geral das aulas no local.

Na Sonhém de Cima, na Fercal (DF), a água até chega pelos encanamentos, abastecida pela Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb), mas de forma irregular e longe de suficiente. Os funcionários contam que o abastecimento é feito a cada dois dias e seria o bastante para durar apenas uma manhã na unidade de ensino integral que reúne 170 alunos entre 5 e 12 anos.

O jeito encontrado foi o de furar um poço artesiano, que supre as necessidades básicas – e contar com a água levada pelos próprios alunos de casa. Alicie Barbosa, 10, do quinto ano, conta que só bebe a água da escola quando não tem alternativa. “Parece que a sede aumenta e eu já senti até dor de barriga”, lembra. O estudante Nicolas Rocha, 11, do quinto ano, disse que costuma carregar garrafas reaproveitadas de refrigerante, cheias de água doce trazida de casa, garantindo o que bebe durante o dia e também contribuindo para o funcionamento de equipamentos de sala de aula. “É difícil prestar atenção com sede e com o calor batendo”, reclama. “A água daqui é ruim, acho muito salgada e difícil beber”, resume.

Não é apenas impressão. O professor Douglas Willian explica que a quantidade de sal na água do local afeta os equipamentos e compromete o funcionamento de chuveiros, torneiras, vasos sanitários e até recursos usados em sala de aula, como é o caso do umidificador doado à unidade de ensino, mas que só pode ser carregado com a água das garrafinhas trazidas pelos estudantes e professores. “Se colocar a água daqui, o sal corrói tudo. Eles traziam água gelada só para usar no umidificador, para refrescar a sala, porque senão o aparelho estraga”, contou Willian, acrescentando que o aparelho serve também para aliviar o calor nas dependências do local durante o período de altas temperaturas no cerrado.

O poço, no entanto, é visto pela direção da escola não como recurso extra, mas uma espécie de salva-vidas diário. “Se a escola tivesse que depender só da Caesb, seria inviável. Tem semana que a água simplesmente não chega”, relata. Ela explica que a água da companhia só é usada quando não há alternativa. No dia a dia, é o poço que mantém cozinha, banheiros e salas funcionando. “É ele que garante que tudo continue de pé”, disse.

A fonte, no entanto, é vista com ressalvas para alguns especialistas. O nutricionista Guilherme Rodrigues explica que a água salobra costuma ter alta concentração de minerais, o que pode aumentar a pressão arterial e causar problemas renais no longo prazo. Ele acrescenta que, sem tratamento adequado, também há risco de contaminação. “Essas águas podem provocar intoxicações alimentares e infecções”, afirma.

A reportagem solicitou resposta da Secretaria de Educação do Distrito Federal sobre as condições de abastecimento da escola e sobre eventuais medidas adotadas para garantir água potável na unidade. Não houve resposta até a publicação desta reportagem. Este espaço será atualizado em caso de manifestação.

Procurada, a Caesb informou, em nota, que a água que distribui “atende integralmente aos padrões de potabilidade estabelecidos pelo Ministério da Saúde”, e que análises recentes não registraram excesso de salinidade, cloretos ou sódio. A companhia diz realizar monitoramento contínuo da qualidade da água e manter um cronograma de manutenção preventiva da rede.

A rotina da Sonhém de Cima expõe uma realidade reproduzida em algumas milhares de escolas no país e vai além das torneiras salobras: é o retrato do funcionamento institucional à base do improviso para garantir o mínimo, mesmo quando o assunto é a formação básica de toda uma geração. Para esse quase um milhão de crianças e adolescentes, o direito básico a água potável segue suspenso, à espera de políticas públicas que se façam tão presentes quanto a sede.

Yasmin Velloso/Agência Pública
Yasmin Velloso/Agência Pública
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Yasmin Velloso/Agência Pública
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