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Reportagem

Wikileaks revela os arquivos secretos dos prisioneiros de Guantánamo

Nesse domingo o Wikileaks começou a publicar 779 arquivos com as fichas de cada um dos presos de Guantánamo

Reportagem
25 de abril de 2011
15:37
Este artigo tem mais de 13 ano

No mais recente vazamento de documentos secretos dos Estados Unidos, o Wikileaks desmascara um dos mais famosos ícones da administração Bush na “Guerra ao Terror”: a prisão da baía de Guantánamo, em Cuba, inaugurada em 11 de janeiro de 2002 e ainda hoje funcionando apesar das promessas de Obama de fechá-la em no máximo um ano após assumir a presidência dos EUA.

As milhares de páginas de documentos inéditos, do período de 2002 a 2008, consistem em memorandos da Join Task Force at Guantánamo Bay (JTF-GTMO) para o US Southern Command, em Miami, Flórida, que descrevem, em detalhes, os casos de 758 dos 779 presos de Guantánamo, com as recomendações da JTF sobre seu futuro: transferência, soltura ou permanência na base americana.

As fichas dos prisioneiros também contêm informações secretas como o estado de saúde e, no caso dos 171 que ainda estão detidos, fotos, em muitos casos, únicas. Os arquivos também trazem informações inéditas sobre os 201 prisioneiros soltos entre 2002 e 2004 e documentam descalabros como inocentes detidos por engano (ou porque os Estados Unidos oferecem polpudas recompensas para os aliados que capturam suspeitos de fazer parte da Al-Qaeda ou do Taliban). Também revelam as histórias de 397 prisioneiros soltos a partir de setembro de 2004, e de sete homens que morreram em Guantánamo.

Assinados sempre pelo comandante de Guantánamo no período, os memorandos atribuem aos prisioneiros diferentes graus de risco (baixo, médio e alto). Embora não seja definitiva por depender de níveis mais altos de poder – a classificação é importante porque inclui a opinião da Criminal Investigation Task Force, criada pelo Departamento de Defesa para conduzir interrogatórios na “Guerra ao Terror”, e das equipes de psicólogos que decidem a linha de “exploração” das inquirições.

Cruciais, também,  são as explicações detalhadas sobre as estratégias de “inteligência” usadas para justificar as prisões. Para muitos leitores, esse será o aspecto mais fascinante dos documentos, pela oportunidade de ver como funciona a inteligência americana, mas cuidado: embora muitas vezes dêem a impressão de provar a ligação dos prisioneiros com a Al-Qaeda ou outras organizações terroristas, os documentos se apóiam basicamente em depoimentos de testemunhas – em muitos casos companheiros de prisão dos acusados – consideradas de baixa credibilidade por terem deposto sob coerção e tortura (em Guantánamo e em prisões secretas da CIA) ou por conveniência pessoal, em troca de um melhor tratamento na cadeia.

Depoimentos falsos

Entre esses depoimentos não-confiáveis estão os de prisioneiros “fantasmas” ou “de alto valor”, como Abu Zubaydah, capturado no Paquistão em março de 2002. Depois de passar quatro anos e meio em prisões secretas da CIA, em lugares como a Tailândia e a Polônia, onde foi submetido ao “afogamento controlado” em 83 ocasiões apenas em agosto de 2002, Zubaydah foi transferido para Guantánamo com mais 13 prisioneiros de “alto valor” em setembro de 2006. Os depoimentos de todos eles são suspeitos.

Ibn al-Shaykh al-Libi, o emir do campo de treinamento militar do qual Zubaydah era guardião e que se recusou a permitir que a Al-Qaeda utilizar suas instalações (por esse motivo fechadas pelo Taliban), é descrito nos documentos de Guantánamo como o comandante militar de Bin Laden em Tora Bora. Pouco depois de capturado, em dezembro de 2001, al- Libi foi levado pela CIA ao Egito onde, torturado, confessou falsamente que os agentes da Al-Qaeda tinham se encontrado com Saddam Hussein para negociar a compra de armas biológicas e químicas. Al- Libi negou a mentira depois, mas ela continuou a ser usada pela administração Bush para justificar a invasão do Iraque em março de 2003. Al-Libi nunca foi mandado a Guantánamo – em determinado momento, provavelmente em 2006, foi enviado de volta a Líbia onde “suicidou-se” na cadeia em maio de 2009.

Há muitos outros casos semelhantes, agora documentados, como o dos iemenitas Sharqawi Abdu Ali al-Hajj – torturado em uma prisão da CIA na Jordânia por quase dois anos antes de ser enviado a Guantánamo -, e Sanad Yislam al-Kasimi que passou por três prisões secretas, incluindo a “Dark Prison” de Cabul. Em fevereiro de 2010, o juiz Henry  H. Kennedy Jr, da corte de Washington D.C, concedeu habeas-corpus a outro preso iemenita de Guantánamo (Uthman Abdul Rahid Mohammed Uthman), exatamente por seu processo basear-se  nos depoimento de al-Hajj e al-Kasimi. E justificou: “A Corte não vai se basear nos depoimentos de Hajj ou Kasimi porque os dois homens foram torturados antes de depor”.

Não foi o primeiro juiz a tomar essa atitude. Em janeiro de 2009, na mesma corte penal, o juiz Richard Leon, indicado por George W. Bush, anulou o depoimento do iemenita Yasim Basardah e concedeu habeas corpus a Mohammed El-Gharani, nacionalista do Chade preso aos 14 anos de idade e condenado pelas declarações do ienemita ,que havia feito 60 depoimentos semelhantes contra outros presos em troca de tratamento privilegiado na prisão. O juiz Leon recomendou ao governo que tivesse cautela “com depoimentos sem corroboração independente”, o que se repetiu em outros casos de concessão de habeas corpus.

Entre esses casos está o de Mohammed al-Qahtani, um saudita suspeito de envolvimento nos ataques de 11 de setembro de 2001, que foi submetido a um programa específico de torturas em Guantánamo, aprovado pelo secretário de Defesa, Donald Rumsfeld. O “programa”, que durou muitos meses, consistia em interrogatórios diários de 20 horas com o uso de “técnicas” que comprometeram severamente a saúde do prisioneiro. Por esse motivo, Susan Crawford, uma juíza aposentada muito amiga de Dick Cheney e David Addington, indicada para supervisionar as comissões militares em Guantánamo disse ao jornalista Bob Woodward: “Nós torturamos Qahtani. O tratamento dado a ele encaixa-se na definição legal de tortura”. Por esse motivo, Crawford não quis representar contra ele e os diversos depoimentos de Qahtani sobre outros presos foram descartados pela Justiça americana.

Meninos e homens inocentes

Muitos casos chocantes podem ser descobertos a partir da leitura desses documentos, que também revelam a prisão de meninos e homens inocentes, capturados por engano, e de soldadinhos do Taliban sem ligação com o terrorismo. Muitos desses prisioneiros foram vendidos aos Estados Unidos por aliados afegãos e paquistaneses interessados nas recompensas em dinheiro. O ex-presidente Musharraf testemunhou em seu livro de memórias (In the Line of Fire) que o governo paquistanês recebeu “milhões de dólares” em troca de ter entregue 369 suspeitos de terrorismo aos americano.

Fatos constrangedores como esses não são revelados nas deliberações da Joint Task Force, mas são cruciais para entender porque os arquivos contra os presos de Guantánamo – que teoricamente deveriam comprovar seus laços com o terrorismo – acabavam revelando exatamente o contrário: a anatomia de um crime colossal perpetrado pelo governo dos Estados Unidos contra 779 pessoas que, em sua grande maioria, não eram os terroristas que os americanos pintam.

Consulte os documentos originais no site.

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