Há pouco mais de uma semana não se ouve um disparo na Nicarágua, mas a cifra dos mortos segue aumentando. Na quinta-feira, dia 26 de abril, a Comissão Nicaraguense de Direitos Humanos confirmou 38 mortos e 46 desaparecidos. A Comissão Permanente de Direitos Humanos, por sua vez, elevou o registro a 63 mortos e 15 desaparecidos. Uma reportagem do site El Confidencial publicada na última quinta-feira contava 46 mortos.
A maioria das pessoas por trás desses números é estudante. Todos morreram ou desapareceram durante a repressão governamental aos protestos que começaram em 18 de abril contra o governo do presidente Daniel Ortega e de sua esposa, a vice-presidenta Rosario Murillo, que estão no poder desde 2006. Os manifestantes do país centro-americano pedem a saída do casal da Presidência, que sequestrou todas as instituições públicas, passando reformas constitucionais que lhes permitem reeleger-se indefinidamente e extinguir partidos de oposição.
Enquanto se organiza uma mesa de diálogo nacional convocada pela Conferência Episcopal e pelo governo, a capital, Manágua, viu os protestos diários se converterem em vigílias e homenagem aos caídos. Quase todas as mortes são atribuídas às forças de segurança pública e a grupos de choque do governo, conhecidos como as Juventudes Sandinistas. Os agressores foram afastados, e os protestos seguem.
Mas Ortega não está vencido. Na última segunda-feira, em comemoração do Dia dos Trabalhadores, ele apareceu diante de dezenas de milhares de pessoas portando bandeiras nicaraguenses e do seu partido FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional), em uma demonstração de força contundente.
Sem reconhecer nenhuma responsabilidade das suas forças de segurança pela violência, o presidente nicaraguense pediu um minuto de silêncio pelas vítimas. E jogou a responsabilidade para outros lados: “Desgraçadamente, os mesmos que incitavam a guerra civil antes agora incitam a violência, e no meio ficam as vítimas que faleceram por esses atos que temos visto, que todos repudiamos. E que novamente provocaram uma profunda ferida no coração da pátria”, disse.
Ortega reiterou que a mesa de diálogo tem por objetivo buscar a paz, embora não exista ainda uma agenda temática.
Os mortos
O primeiro morto foi um jovem chamado Darwin Urbina. Foi vítima de um tiro de escopeta nos arredores da Universidade Politécnica, na capital da Nicarágua, durante o segundo dia de protestos, em 19 de abril. Segundo a sua família, ele regressava para sua casa depois do final do expediente no supermercado onde trabalhava.
A vice-presidenta Murillo disse que a escopeta que o matou havia sido disparada da universidade, onde vários estudantes se entrincheiravam. Mas tudo parece indicar que ele foi assassinado pela polícia. Nesse mesmo dia, ela assegurou que o governo não mantinha nenhum manifestante como prisioneiro. “Que esses minúsculos grupos, com minúsculas agendas e um pensamento minúsculo, e uma consciência ainda menor, saibam que não vão alterar o rumo que leva a Nicarágua adiante, e sempre mais para a frente”, disse ela. “Esse é o nosso compromisso e a nossa homenagem às vítimas do ódio destes grupos minúsculos, medíocres!”
Com o passar dos dias, a realidade desmentiu a vice-presidenta. A família de Urbina negou que o disparo que o matou tenha vindo da universidade e acusou a polícia de haver disparado balas reais no lugar de balas de borracha.
Diante do aumento da pressão popular e internacional, o governo se viu obrigado a libertar na terça-feira, 24 de abril, dezenas de detidos – que existiam, afinal, e denunciaram ter sofrido agressões de tortura nas celas policiais. Os “grupos minúsculos” se converteram no epicentro de protestos generalizados e alteraram todo o rumo que a Nicarágua seguia.
Os mortos, que cada dia são mais numerosos, foram, na maioria, vítimas do governo.
Dispararam em Marcos Samorio em cima de uma ponte. Ele também voltava do seu trabalho, na sexta-feira, dia 20 de abril, quando se deparou com tropas de choque. Foi levado com ferimentos a um hospital onde morreu pouco depois. Tinha 30 anos e era empregado de uma empresa agrícola. Vivia com a sua avó, Esperanza Torres, três tias e vários sobrinhos. Deixa um filho de 7 anos. “Uma bala o pegou de lado e perfurou o pulmão, e outra bala perfurou o coração”, diz a senhora. “Nos avisaram na segunda-feira. Nós o velamos aqui mesmo.” Na entrada da casa dos Samorio está uma foto emoldurada do filho morto. Ao lado está a única coroa de flores para adornar a única vela, enviada pela empresa Agrosacos, onde ele trabalhava.
A vice-presidenta Murillo tem pedido a reconciliação e celebrado as vigílias. Mas esses eventos, que têm ocorrido todos os dias, exigem a saída dela e de seu marido do poder.
Uma manifestação no dia 27 de abril
A rotatória Jean Paul Genie abriga vigílias quase todas as noites. Aqui mesmo, no dia 24 de abril, manifestantes derrubaram duas entre as centenas de “árvores da vida” que se espalham pela paisagem urbana da capital. São enormes estruturas de ferro que imitam árvores, símbolo de Rosario Murillo. Os nicaraguenses as chamam de “chayopalos”. A sua derrubada se tornou a imagem icônica da revolta de uma nova geração. A queda dos chayopalos corresponde, na era das hashtags, ao que foi a derrubada da estátua de Anastasio Somoza, o antigo ditador que governou a Nicarágua entre 1967 e 1979 – e que foi derrubado pela Frente Sandinista de Libertação Nacional com a ajuda do atual presidente Daniel Ortega, que era seu dirigente.
Hoje, centenas dessas estruturas metálicas adornam a capital nicaraguense; nas últimas semanas, a maioria delas traz nas suas bases as cicatrizes dos protestos: ferros chamuscados, grafite, pedaços quebrados. Cinco delas foram derrubadas, incluindo duas na rotatória Jean Paul Genie.
Onde antes havia chayopalos, os manifestantes plantaram arvorezinhas de verdade, e no dia 27 de abril fizeram um pequeno altar improvisado, com velas e uma Virgem e folhas de papel com os nomes de dezenas de jovens mortos.
Naquele dia, a vigília se converteu na expressão dos habitantes da capital, de todos os estratos econômicos e sociais. Homens já chegando na terceira idade, vestidos com novas camisetas Columbia fabricadas para fazerem atividades outdoor, safáris ou pescarias – cantando o hino junto a estudantes encapuzados, mães de estudantes mortos, mulheres com penteados de salão de beleza e carregadas de colares (muitos colares) de ouro; operários que ainda vestiam o uniforme de suas empresas; vendedores; artistas; adolescentes que assistiam à sua primeira experiência política.
Todos juntos cantando e entoando o bordão:
– Que se renda (diz o líder)… Sua mãe! (responde a multidão).
Esse é o seu lema de batalha. A hashtag da insurreição. Seu mantra. Uma frase atribuída ao poeta e combatente sandinista Leonel Rugama, que a teria pronunciado antes de morrer para o general fiel a Somosa que exigia a sua rendição: Que se renda a sua mãe!.
Após o grito de guerra, um carro de som embalou a concentração com um soundtrack dos anos 1980: Los Guaraguau, Mercedes Sosa, Mejía Godoy. Soava: “Ay Nicaragua Nicaragüita la flor más linda de mi querer… El Pueblo Unido Jamás Será Vencido!”.
Depois, veio o grito histórico:
“Que viva Nicarágua livre!”
Este mesmo grito, quase ninguém mais se lembra em Manágua, foi também o grito de Daniel Ortega contra a ditadura. Hoje é o grito da praça para livrar-se dele. A memória da Revolução Sandinista, que no passado erigiu um altar para o seu comandante, reservado apenas aos heróis da pátria, hoje joga contra ele. Vários cartazes dos manifestantes registram a nova percepção popular: Daniel e Somoza são a mesma coisa.
Daniel Ortega parece ter perdido o apoio das ruas. As ruas perderam o medo.
Nesta terra de poetas, dois poetas jovens também tomaram o microfone no dia 27 e declamaram seus novos poemas, inspirados pela situação. Loas aos estudantes, condenação a quem chamam de “ditador”, Daniel Ortega.
Voltou então a música: “Nicaragua Nicaragüita…”.
E uma estudante de mestrado tomou o microfone e disse com firmeza: “Isso não é uma celebração. É uma vigília. Estamos de luto recordando nossos companheiros assassinados”. E ali começou uma catarse.
De que lado estão os empresários?
A mulher falou em nome do grupo de manifestantes autodenominado O Povo Autoconvocado, que se organizou pelas redes sociais. “Falou-se de um possível diálogo entre o governo e o Conselho Superior da Empresa Privada. Não estamos representados!”, disse.
O Cosep, Conselho Superior da Empresa Privada, representa os maiores capitais do país, que continuam apoiando o governo de Ortega.
Os grandes empresários nicaraguenses têm sustentado o governo em troca de benefícios e contratos públicos. Trata-se de um conluio que agora as ruas exigem que preste contas do que passou.
“Essa situação nos abriu os olhos para muitas coisas”, disse há alguns dias um dos líderes empresariais. Mas as ruas não parecem acreditar neles. “São como carrapatos”, me disse um jornalista nicaraguense. “Estão esperando ver para que lado sopra o vento para agarrarem-se aos que sobrarão depois dessa crise.”
O Cosep convocou uma marcha a favor da paz no dia 26 de abril. Ela se converteu em um dos maiores protestos desde os dias da Revolução Sandinista. Mas depois de tantos anos do que líderes estudantis consideram ser uma cumplicidade do setor empresarial com Ortega, as suspeitas não se dissiparam. Alguns dos cartazes na rotatória Jean Paul Genie também se dirigiam aos empresários: exigiam que rompessem com Ortega.
A vigília se transformou em choro quando uma jovem tomou o microfone e anunciou que naquele dia foram confirmadas mais dez mortes. Depois dela, veio a mãe de um dos estudantes assassinados, chamado Michael Humberto, que expressou eufórica o seu rechaço ao governo.
Quando ela baixou do capô da caminhonete, onde os pronunciamentos estavam acontecendo, dezenas de pessoas fizeram fila para lhe dar flores e um abraço. Outros ligaram seus celulares e começaram a fazer perguntas e transmitir por Facebook Live. “Desde que temos esses aparelhinhos, todos somos jornalistas”, disse um senhor ao terminar a sua transmissão pessoal.
Sobre a caminhonete que servia de palanque, uma adolescente tomou o microfone e denunciou a “ditadura” por haver matado um amigo seu. Lançou uma advertência ao casal Ortega, aplaudida pela multidão: “Deste ano não passam”. Depois, chorando desconsoladamente, desabou sobre o capô. As lágrimas correram também pelas faces de centenas de manifestantes. Alguém levantou outro cartaz: Os mortos não dialogam.
Essas mortes, dezenas de mortes desnecessárias, se converteram no principal fator de união dos manifestantes. Na gota d’água que entorna o copo. No erro fatal do binômio Ortega-Murillo. E parece que as cifras seguem aumentando. Na quarta-feira, dia 28 de abril, apareceram 11 corpos na morgue do Instituto de Medicina Legal da Nicarágua. Todos com lesões de bala. Duas semanas depois do início dos protestos, as ONGs independentes de direitos humanos seguem recebendo dezenas de denúncias diárias de desaparecidos. Seus familiares os têm buscado nas cadeias; nos necrotérios. Ainda assim, não aparecem.