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O jornalista americano Jon Lee Anderson acompanhou a campanha do esquerdista por diversos cantos do país e revela o que esperar da relação com o governo de Trump

Perfil
11 de julho de 2018
11:59
Este artigo tem mais de 6 ano

Na primeira vez que Andrés Manuel López Obrador concorreu à Presidência do México, em 2006, ele inspirou tamanha devoção dos seus eleitores que eles algumas vezes deixavam bilhetinhos nos seus bolsos, rabiscados com os sonhos que eles tinham para suas famílias. Numa era definida pelo globalismo, ele era um defensor da classe trabalhadora — e também um crítico do Partido Revolucionário Institucional (PRI), o partido que dominou impiedosamente a política nacional durante boa parte do século passado. Nas eleições, o fervor dos seus eleitores foi, no entanto, insuficiente; ele perdeu por uma margem de diferença minúscula. Na segunda vez em que ele concorreu, em 2012, o entusiasmo era o mesmo, e também foi igual o resultado. Mas agora o México está em crise — cercado internamente pela corrupção e a violência ligada ao tráfico de drogas e, por fora, pelo antagonismo do governo Trump. Quando venceu as eleições de 1º  de julho, López Obrador trazia a promessa de refundar o México no mesmo espírito que os fundadores revolucionários.

Em março, ele se reuniu com centenas de apoiadores fiéis em um salão de conferências em Culiacán, capital do estado de Sinaloa, no oeste do México. López Obrador, conhecido no país pela sigla Amlo, é um homem esguio de 64 anos, com um rosto jovial, sem barba, um chumaço de cabelo prateado e um andar tranquilo. Quando ele entrou, seus apoiadores levantaram e entoaram: “É uma honra estar com López Obrador!”. Muitos deles eram camponeses vestindo chapéus de palha e botas amarrotadas. Ele pediu que eles instalassem observadores partidários em centros de votação para evitar fraudes, mas advertindo contra a compra de votos, um hábito antigo do PRI. “É disso que vamos nos livrar”, disse. Ele prometeu um governo “sóbrio, austero — um governo sem privilégios”.

López Obrador frequentemente usa “privilégio” como termo depreciativo, assim como “elite” e, especialmente, “a máfia do poder”, como ele descreve os seus inimigos da política e do empresariado. “Vamos reduzir os salários dos que estão no topo para aumentar os salários dos que estão embaixo”, disse, adicionando um vaticínio bíblico: “Tudo o que eu estou dizendo será feito”. López Obrador falou com uma voz calorosa, dando longas pausas e usando frases simples que pessoas comuns poderiam entender. Ele tem uma queda por rimas e slogans repetidos, e às vezes o público se juntava a ele, como fãs em um concerto de pop. Quando ele disse “Nós não queremos ajudar a máfia do poder a…”, um homem na plateia completou a frase: “continuar roubando”. Trabalhando juntos, disse o então candidato, “nós vamos fazer história”.

O atual governo mexicano é liderado pelo presidente de centro-direita Enrique Peña Nieto. O seu partido, o PRI, tem pintado López Obrador como um populista radical, na tradição de Hugo Chávez, e alertou que ele pretende transformar o México em outra Venezuela. A administração Trump está igualmente preocupada. Roberta Jacobson, que até maio era a embaixadora dos EUA no México, me disse que membros do alto escalão americano constantemente expressavam preocupação: “Eles são catastróficos sobre Amlo, dizendo coisas como ‘Se ele ganhar, o pior vai acontecer’”.

López Obrador é conhecido no país pela sigla Amlo

A chegada de Trump o ajudou

Ironicamente, a sua popularidade crescente pode ser atribuída parcialmente a Donald Trump. Poucos dias depois da vitória na eleição americana, analistas políticos mexicanos já previam que a beligerância de Trump contra o México encorajaria uma resistência política.

O analista político Mentor Tijerina, um proeminente pesquisador da cidade de Monterrey, no nordeste do México, me disse na época: “A chegada de Trump significa uma crise para o México, e isso vai ajudar Amlo”. Não muito tempo depois da posse, López Obrador publicou um livro best-seller chamado Oye, Trump (Escute, Trump), que reúne trechos duros dos seus discursos. Em um deles, o candidato declarou que “Trump e seus assessores falam dos mexicanos da mesma maneira que o Hitler e os nazistas se referiam aos judeus, pouco antes de começar a infame perseguição e o extermínio abominável”.

Membros do governo de Peña Nieto alertaram funcionários da Casa Branca que o comportamento ofensivo de Trump aumentava as chances de um novo governo hostil — uma ameaça à segurança nacional logo no outro lado da fronteira. Se Trump não moderasse seu comportamento, a eleição seria um referendo sobre qual candidato é o mais antiamericano. Nos EUA, os alertas funcionaram. Durante audiência no Senado em abril de 2017, o republicano John McCain afirmou que “se as eleições fossem amanhã no México, provavelmente teríamos um presidente de esquerda, antiamericano”. John Kelly, que era na época secretário de Segurança Interna, concordou: “Não seria bom para os Estados Unidos — ou para o México”, disse.

No México, comentários como os de Kelly parecem ter apenas melhorado a posição de López Obrador. “Toda vez que um político americano abre a boca para expressar uma opinião negativa sobre um candidato mexicano, isso o ajuda”, diz Roberta Jacobson. Mas ela nunca esteve segura de que Trump tem a mesma visão “apocalíptica” de Amlo. “Eles têm algumas características em comum”, nota. “Para começar, o populismo.” Durante a campanha presidencial, López Obrador denunciou o governo mexicano como “faraônico” e prometeu que, se eleito, vai se recusar a viver em Los Pinos, a residência presidencial. Em vez disso, vai abrir o palácio para o público, como um lugar para famílias comuns visitarem e se divertirem.

Depois que Roberta chegou ao México, em 2016, ela organizou reuniões com líderes políticos locais. López Obrador a deixou esperando por meses. Ao final, convidou-a a ir até a sua casa, em um canto distante e fora de moda da Cidade do México. “Tive a impressão que ele fez isso porque não achava que eu iria”, diz ela. “Mas eu disse a ele: ‘Sem problema, meus seguranças vão dar um jeito’”. A equipe de Roberta seguiu as orientações do político até chegar a um sobrado sem graça em Tlalpan, um bairro de classe média. “Se a ideia era mostrar como ele vivia modestamente, ele conseguiu”, diz.

López Obrador foi “amigável e confiante”, diz ela, mas se esquivou de muitas perguntas e falou vagamente sobre políticas. A conversa ajudou pouco a resolver a questão se ele era um radical oportunista ou um reformista de princípios. “O que devemos esperar dele como presidente?”, pergunta ela. “Honestamente, meu sentimento mais forte sobre ele é que não sabemos o que esperar.”

Na estrada com AMLO

Nesta primavera, enquanto López Obrador e seus assessores viajavam pelo país, eu os acompanhei a diversos destinos. Na estrada, seu estilo é notoriamente diferente da maioria dos políticos mexicanos, que chegam aos locais de campanha em helicópteros e caminham pelas ruas cercados por seguranças. López Obrador viaja em voos comerciais e vai de cidade a cidade em uma caravana de dois carros, com motoristas que também fazem as vezes de seguranças não armados; ele não adota mais nenhuma medida de segurança, exceto esforços inconsistentes de esconder seu hotel. Nas ruas, as pessoas o procuram constantemente para tirar selfies, e ele cumprimenta a todos igualmente, apresentando uma fachada calorosa e levemente inescrutável. “O Amlo é como uma pintura abstrata — você vê nele o que quer ver”, me disse Luis Miguel González, diretor editorial do jornal mexicano El Economista. Um dos seus gestos característicos durante discursos é demonstrar afeto se abraçando e se curvando em direção à multidão.

Roberta se lembra de que, depois da eleição de Trump, López Obrador lamentou nestas palavras: “Os mexicanos nunca vão eleger alguém que não seja um político”. Isso é revelador, diz ela. “Ele é claramente um político”, prossegue. “Mas, como Trump, ele sempre se apresentou como um outsider.”

Obrador nasceu em 1953, em uma família de lojistas no estado de Tabasco, em um vilarejo chamado Tepetitán. Tabasco, situado no golfo do México, é cortado por rios que inundam regularmente suas cidades; e lembra o estado americano de Luisiana, tanto pelo clima quanto pela combatividade de seus políticos. Um observador lembra que López Obrador certa vez brincou: “A política é a mistura perfeita entre paixão e razão. Mas eu sou tabasqueño, cem por cento paixão!”. Seu apelido, El Peje, vem de pejelagarto — um peixe-agulha de águas frescas, um ser primitivo, ancestral, com a cara de um crocodilo.

O atual governo mexicano é liderado pelo presidente de centro-direita Enrique Peña Nieto

Quando López Obrador era menino, a família se mudou para a capital do estado, Villahermosa. Mais tarde, na cidade do México, ele estudou ciências políticas e políticas públicas na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), a principal universidade pública do país, e escreveu sua tese sobre a formação política do Estado mexicano, no século 19. Casou-se com Rocío Beltrán Medina, estudante de sociologia de Tabasco, e tiveram três filhos. Elena Poniatowska, a decana do jornalismo mexicano, se lembra de encontrá-lo quando ainda era um jovem rapaz. “Ele sempre foi muito determinado a chegar à Presidência”, diz. “Como uma flecha em linha reta e inabalável.”

Para uma pessoa com aspirações políticas, o partido PRI era então a única opção séria. Foi fundado em 1929, para restaurar o país após a revolução que derrubou o general Porfírio Díaz do poder em 1910.

Nos anos 1930, o presidente Lázaro Cárdenas solidificou o PRI como um partido socialista e inclusivo; ele nacionalizou a indústria petroleira e distribuiu milhares de hectares de terras agrícolas para os pobres e despossuídos. Ao longo das décadas, a ideologia do partido variou, mas seu controle sobre o poder nacional cresceu de forma constante. Presidentes do PRI escolhiam seus sucessores em um ritual chamado dedazo, e o partido garantia que fossem eleitos.

López Obrador se filiou ao PRI depois da faculdade e em 1976 ajudou a dirigir a bem-sucedida campanha ao Senado de Carlos Pellicer, um poeta amigo de Pablo Neruda e Frida Kahlo. Obrador cresceu rapidamente; passou cinco anos dirigindo o diretório de Tabasco do Instituto Nacional Indígena e, depois, liderando um departamento do Instituto Nacional dos Consumidores na Cidade do México. Mas sentia que o partido havia se desviado das suas raízes. Em 1988, se juntou a um grupo de esquerda que rachou, liderado pelo filho de Lázaro Cárdenas, para fundar o Partido Revolucionário Democrático (PRD). López Obrador virou o chefe do partido em Tabasco.

Em 1994, ele fez sua primeira tentativa eleitoral, como candidato ao governo do estado. Perdeu para o candidato do PRI, a quem acusa de fraude. Embora o processo na Justiça não tenha chegado a nenhum veredicto, muitos mexicanos acreditaram nele; o PRI tem um longo histórico de fraudar eleições. Logo depois das eleições, um partidário entregou a ele uma caixa de recibos mostrando que o PRI gastara US$ 95 milhões em uma eleição na qual votaram apenas 500 mil pessoas.

Em 2000, ele foi eleito prefeito da Cidade do México, cargo que lhe deu poder considerável, assim como visibilidade nacional – não é preciso ter nascido na capital para disputar o cargo. Durante o mandato, construiu uma reputação de homem comum; dirigia um velho Nissan para o trabalho, chegava antes de o sol nascer e reduziu o próprio salário. (Quando sua esposa morreu, de lúpus, em 2003, o viúvo recebeu uma enxurrada de condolências.)

Ele tampouco era avesso ao combate político. Depois de um de seus assessores ter sido flagrado em uma gravação aparentemente aceitando um suborno, ele disse tratar-se de uma armadilha e distribuiu revistas em quadrinho que o mostravam lutando contra “forças sombrias”. (O funcionário foi depois inocentado na Justiça).

Algumas vezes, López Obrador ignorou a Câmara de Vereadores e governou por decreto. Mas também mostrou que sabe negociar. Conseguiu criar um fundo de pensão para moradores idosos, expandir avenidas para melhorar o trânsito e elaborar uma parceria público-privada junto com o magnata das comunicações Carlos Slim para restaurar o centro histórico da capital mexicana.

Quando deixou a prefeitura para se preparar para as eleições presidenciais de 2006, ele tinha altos índices de aprovação e uma reputação de tirar os planos do papel. (Ele também tinha uma nova esposa, uma historiadora chamada Beatriz Gutiérrez Müller; juntos tiveram um filho que hoje tem 11 anos.)

López Obrador viu uma oportunidade. Nas eleições anteriores, o PRI perdera seu controle do poder quando o Partido de Acción Nacional ganhou a presidência. O PAN, tradicionalista e conservador, tinha apoio dos empresários, mas o seu candidato, Felipe Calderón, era uma figura sem carisma.

A disputa foi travada arduamente. Os oponentes de López Obrador soltaram anúncios de TV que o mostravam como um populista enganador que era uma “ameaça ao México” e exibiam imagens de miséria humana ao lado de retratos de Hugo Chávez, Fidel Castro e Evo Morales. No final, López Obrador perdeu por meio ponto percentual — margem pequena o suficiente para levantar suspeitas generalizadas de fraude. Ele se recusou a aceitar a vitória de Calderón e liderou um protesto na capital, onde seus apoiadores pararam o tráfego, levantaram acampamentos e fizeram comícios na área histórica de Zócalo e ao longo da avenida Reforma. Um morador lembra que seus discursos de então tinham uma “linguagem reminiscente da Revolução Francesa”. A certa altura ele realizou uma cerimônia paralela de posse, na qual os seus eleitores o empossaram presidente. Os protestos duraram por vários meses; os moradores da Cidade do México ficaram cada vez mais impacientes; no final, López Obrador arrumou as coisas e foi para casa.

Nas eleições de 2012, ele ganhou um terço dos votos — não o suficiente para derrotar Peña Nieto, que devolveu o poder ao PRI. Mas o governo de Peña Nieto tem sido manchado por escândalos de corrupção e violações de direitos humanos. Desde que Trump anunciou sua candidatura com sua retórica antimexicana, Peña Nieto tem tentado acalmá-lo, com resultados vergonhosos. Ele convidou Trump para visitar o México durante a campanha e o tratou como se já fosse chefe do Executivo. Logo depois o empresário voltou aos EUA e falou para uma multidão de apoiadores que o México iria “pagar pelo muro”. Depois de Trump ter sido eleito, Peña Nieto determinou que seu ministro do exterior, Luis Videgaray, que é amigo de Jared Kushner, conselheiro do presidente americano, fizesse da relação com a Casa Branca sua prioridade máxima. “Peña Nieto tem sido extremamente conciliador”, diz Jorge Guajardo, ex-embaixador mexicano na China. “Não há nada que o Trump tenha levemente sugerido que ele não cumpra imediatamente.”

No início de março de 2018, antes do começo oficial da campanha presidencial, nós viajamos pelo norte do México, onde se concentra a resistência contra ele. A sua base de apoio está no sul mais pobre e agrário, de maioria indígena. O norte, próximo à fronteira com o Texas, é mais conservador, ligado economicamente e culturalmente com o sul dos Estados Unidos; sua missão ali não era muito diferente do que se apresentar à Câmara de Comércio de Houston.

Quando venceu as eleições de 1o de julho, López Obrador trazia a promessa de refundar o México no mesmo espírito que os fundadores revolucionários

Em discursos, ele tentou fazer pouco das acusações dos seus oponentes, contando piadas sobre ter recebido “ouro da Rússia em um submarino” e chamando a si mesmo de “Andrés Manuelovich”. Em Delicias, um polo agrícola no estado de Chihuahua, no norte do México, ele jurou que não estenderia seu tempo no poder. “Eu vou trabalhar 16 horas por dia em vez de oito, então farei 12 anos em seis,” disse.

Essa retórica era apoiada por medidas mais pragmáticas. Ao viajar pelo norte, ele levou consigo Alfonso (Poncho) Romo, um empresário rico da cidade industrial de Monterrey, escolhido para ser seu futuro secretário de governo.

Um assessor próximo disse para mim: “Poncho é chave na campanha na região norte. Poncho é a ponte”. Em Guadalajara, no oeste, López Obrador disse à audiência: “Poncho está comigo para ajudar a convencer os empresários que ouviram que somos como a Venezuela, ou que estamos com os russos, que queremos expropriar a propriedade privada, e que somos populistas. Nada disso é verdade — esse será um governo feito no México”.

Em um almoço com empresários em Culiacán, López Obrador testou algumas ideias. “O que queremos fazer é realizar a transformação de que esse país precisa”, começou. “As coisas não podem seguir como estão.” Ele falou em um tom de conversa, e a multidão parecia ir ficando mais favorável. “Nós vamos acabar com a corrupção, a impunidade e os privilégios de uma pequena elite. E, quando fizermos isso, os líderes deste país poderão recuperar sua autoridade política e moral. Também vamos limpar a imagem do México no resto do mundo, porque neste momento o México só é conhecido pela violência e corrupção.”

López Obrador falou em ajudar os pobres, mas, ao falar de corrupção, manteve o foco na elite política. “Cinco milhões de pesos por mês em uma aposentadoria para ex-presidentes!”, disse, fazendo careta. “Isso tem que acabar!” Ele notou que existem centenas de aviões presidenciais e helicópteros. “Nós vamos vendê-los para Trump.” A plateia riu, e ele continuou: “Vamos usar o dinheiro da venda para fazer investimentos públicos e assim fomentar investimentos privados para gerar empregos”.

Muitas alianças e muitas promessas

Durante esses eventos iniciais da campanha, López Obrador estava ainda ajustando sua mensagem. Sua estratégia de campanha parecia simples: fazer um monte de promessas e negociar quaisquer alianças que fossem necessárias para ser eleito. Assim como prometeu aos seus partidários fiéis que iria aumentar os salários dos trabalhadores à custa dos salários de burocratas do alto escalão, também prometeu aos empresários não aumentar os impostos sobre combustíveis, medicamentos ou eletricidade. E prometeu que jamais iria confiscar propriedades. “Não faremos nada que vá contra liberdades”, declarou. Ele propôs estabelecer uma zona franca ao longo de toda a fronteira norte com os Estados Unidos e reduzir impostos para empresas nacionais e americanas que instalarem fábricas por lá. Também assinalou com financiamento estatal, prometendo concluir o projeto de uma hidrelétrica em Sinaloa e garantir subsídios agrícolas. “O termo ‘subsídio’ foi demonizado”, diz. “Mas é necessário. Nos Estados Unidos eles fazem isso — até 100% do custo da produção.”

Culiacán é o antigo bastião do brutal cartel de Sinaloa, que tem sido instrumental na enxurrada de violência e corrupção ligadas ao narcotráfico que inundaram o estado mexicano. Desde 2006, o país tem se empenhado na “guerra às drogas” que custou pelo menos 100 mil vidas, aparentemente sem muitos resultados positivos. López Obrador, assim como seus oponentes, tem tido dificuldades para articular uma estratégia de segurança pública viável.

Depois do almoço em Culiacán, ele respondeu a perguntas dos presentes e uma mulher levantou para perguntar o que ele pretendia fazer sobre o narcotráfico. Consideraria a legalização das drogas? Alguns meses antes, ele havia dito — aparentemente sem refletir muito — que poderia oferecer uma “anistia” para trazer traficantes e produtores pequenos para o mercado legal. Quando críticos o atacaram pela declaração, seus assessores disseram que, como nenhuma das políticas do atual governo funcionou, valia a pena tentar qualquer coisa.

Para a mulher em Culiacán, ele disse: “Nós vamos atacar as causas com programas para a juventude, novas oportunidades de emprego, e para não abandonarmos o campo. Não vamos só usar a força. Vamos analisar tudo e explorar todas as vias possíveis para chegar à paz. Não descarto nada, nem mesmo a legalização — nada”. A plateia aplaudiu, e Amlo pareceu aliviado.

Para os opositores, a sua habilidade de inspirar esperança é preocupante. Enrique Krauze, historiador e analista político que frequentemente critica a esquerda mexicana, me disse: “Ele toca diretamente a sensibilidade religiosa do povo. Estão o vendo como um homem que vai salvar o México de todos os seus males. E ainda mais importante — ele também acredita nisso”. Krauze se preocupa com López Obrador desde 2006. Antes das eleições presidenciais, ele publicou um ensaio chamado “O messias tropical”, no qual escreveu que Amlo tinha um fervor religioso que era “puritano, dogmático, autoritário, com inclinações ao ódio, e sobretudo, à redenção”. O livro mais recente de Krauze — El Pueblo Soy Yo — trata dos perigos do populismo. Ele examina as culturas políticas na Venezuela e em Cuba e inclui uma avaliação mordaz de Donald Trump, a quem se refere como “Calígula no Twitter”. No prefácio, escreve sobre López Obrador em um tom de consternação profética. “Eu acredito que, se vencer, ele vai usar seu carisma para prometer o retorno a uma ordem árcade [útopica]”, diz. “E com esse poder acumulado, obtido graças à democracia, ele vai corroer a democracia de dentro.”

O que mais o preocupava era que, se o partido de López Obrador ganhasse não só a Presidência, mas também a maioria no Congresso — o que as pesquisas sugeriam ser provável e acabou se comprovando nas urnas —, ele poderia agir para mudar a composição da Corte Suprema e dominar outras instituições. E poderia tentar também um maior controle sobre a mídia, que em grande parte é sustentada por propaganda estatal. “Ele vai arruinar o México?”, perguntou Krauze durante a entrevista. “Não, mas poderia obstruir a democracia mexicana, ao remover os contrapesos. Nós tivemos uma experiência democrática nos últimos 18 anos, desde que o PRI perdeu o poder pela primeira vez, em 2000. É imperfeita, há muito que criticar, mas também houve mudanças positivas. Preocupa-me que com Amlo essa experiência acabe.”

Durante um jantar em Culiacán, López Obrador escolheu um taco de carne e falou sobre seus antagonistas da direita, variando entre achar graça e estar preocupado. Alguns dias antes, Roberta Jacobson anunciou que iria deixar o posto de embaixadora, e o governo do México havia imediatamente endossado o substituto, Edward Whitacre, antigo CEO da General Motors que é amigo do empresário Carlos Slim, dono da Claro. Isso irritou López Obrador. Ele havia brigado recentemente com Slim por causa de um plano multibilionário para um novo aeroporto na Cidade do México. Era um esquema público-privado do governo Peña Nieto, e López Obrador prometeu barrá-lo, alegando corrupção. (O governo nega.) “Esperamos que isso não signifique que estão planejando interferir contra mim”, disse López Obrador a respeito de Whitacre e Slim. “Milhões de mexicanos iriam se ofender.”

O escritor e político peruano Mario Vargas Llosa — que serve de oráculo para a direita latino-americana — disse publicamente que, se Amlo ganhasse, seria “um tremendo retrocesso para a democracia no México”. Ele acrescentou que esperava que o país não cometesse “suicídio” no dia da eleição. Quando eu mencionei isso, López Obrador sorriu e falou que Vargas Llosa aparecia nas notícias mais por causa do seu casamento com “uma mulher que sempre se casa ‘para cima’ e sempre está na revista de celebridades Hola!”. Ele se referia à socialite Isabel Preysler, ex-esposa do cantor Julio Iglesias, por quem Vargas Llosa abandonou um casamento de 50 anos. López Obrador perguntou se eu vira sua resposta, chamando Vargas Llosa de “um bom escritor, mas mau político”. “Note bem”, disse ele, “eu não falei que é um grande escritor”.

Em primeiro de abril, López Obrador oficialmente lançou sua campanha, diante de milhares de pessoas em Ciudad Juárez, na fronteira com os EUA. Em um palco montado em uma praça, ele estava ao lado da esposa, Beatriz, e diversos membros do seu futuro governo. “Viemos até aqui para começar nossa campanha, no lugar onde nossa nação começou”, disse. O palco ficava debaixo de uma grande estátua do líder mexicano do século 19 Benito Juárez, um declarado herói de López Obrador. Juárez, homem de humildes origens na etnia indígena zapoteca, defendeu a causa dos vulneráveis e é uma espécie de Abraham Lincoln para o México — um emblema de honra e persistência inflexíveis. Olhando para a estátua, López Obrador disse que Juárez foi “o melhor presidente que o México já teve”.

Depois, comparou a atual administração com os déspotas e coronéis que controlaram o país antes da revolução. E atacou a “desonestidade colossal” que diz ter caracterizado as políticas “neoliberais” dos últimos governos. “Os líderes do país se devotaram… a concessionar o nosso território.” No seu mandato, o governo deixaria de ser “uma fábrica que produz os novos-ricos mexicanos”, prometeu.

O presidente recém-eleito fala frequentemente que admira líderes dos anos 1930, incluindo Franklin Roosevelt e o antigo presidente do PRI Lázaro Cárdenas — seu programa social relembra as iniciativas daqueles anos. No discurso de lançamento, ele afirmou que iria desenvolver o sul do país, onde a economia agrícola foi devastada pelas importações de alimentos baratos dos EUA. Para fazer isso, propôs plantar milhões de árvores para gerar frutas e madeira e construir um trem-bala turístico que ligaria as praias da península de Yucatán (onde fica Cancún) a ruínas maias no interior do país. Somente o projeto de plantar árvores iria criar 400 mil empregos, previu. Com essas iniciativas, disse no seu discurso, pessoas do sul poderiam ficar nas suas comunidades sem ter de migrar para o norte em busca de trabalho.

No discurso de lançamento, ele afirmou que iria desenvolver o sul do país, onde a economia agrícola foi devastada pelas importações de alimentos baratos dos EUA

Em todo o país, ele iria incentivar projetos de construção que usassem ferramentas manuais em vez de maquinário moderno, para animar a economia nas comunidades rurais. Aposentadorias para idosos seriam dobradas. Haveria internet grátis nas escolas mexicanas e em espaços públicos. Jovens iriam receber bolsas de estudo e empregos depois de formados. Ele quer “becarios sí, sicarios no” – sim para bolsistas, não para assassinos.

Para muitos públicos, em especial no sul do país, essas propostas são sedutoramente simples. Questionado sobre como pagará por elas, ele tende a oferecer uma resposta igualmente sedutora: “Não há problema!”, disse em um discurso. “Temos dinheiro. O que há é corrupção, e nós vamos acabar com ela.” Ao eliminar corrupção oficial, calcula, o México poderia poupar 10% do orçamento.

A bandeira do combate à corrupção

A corrupção é um tema crucial para López Obrador. Marcelo Ebrard, seu principal assessor político, diz que a sua ética é formada por uma “veia calvinista”, e até mesmo alguns céticos se convenceram da sua sinceridade. Cassio Luiselli, um diplomata mexicano de longa data, me disse: “Eu não gosto do seu veio autoritário e seu estilo belicoso”. Mas, adicionou, “ele parece ser um homem honesto, o que quer dizer muito nestes lados”.

López Obrador prometeu que seu primeiro projeto de lei para o Congresso será modificar o artigo da Constituição que impede que presidentes em exercício sejam julgados por corrupção. Isso seria um gesto simbólico, mas insuficiente; para acabar com a corrupção, ele teria de demitir grande parte do governo.

No ano passado, o ex-governador de Chihuahua, acusado na Justiça de peculato, fugiu para os EUA, onde procura evitar a extradição. Mais de uma dúzia de governadores e ex-governadores enfrentam investigações criminais. O advogado-geral que conduziu alguns desses inquéritos foi acusado de ter uma Ferrari registrada em seu nome em uma casa desocupada em outro estado, e, embora seu advogado tenha argumentado que houve um erro administrativo, ele renunciou pouco depois. O ex-presidente da empresa nacional de petróleo foi acusado de receber milhões em propinas. (Ele nega.)

Peña Nieto, que se dizia reformista, foi envolvido num escândalo porque sua esposa obteve uma casa luxuosa de um construtor com conexões no governo; depois, sua administração foi acusada de usar um software israelense para espionar membros da oposição. De acordo com a revista Times, membros do Ministério Público se recusaram a investigar evidências graves contra membros do PRI, para não prejudicar as chances do partido nas eleições.

Com todos os grandes partidos envolvidos em corrupção, os apoiadores de López Obrador parecem se importar menos com a aplicabilidade das suas ideias do que com a promessa de consertar um governo danificado. Emiliano Monge, um renomado escritor de novelas e ensaios, disse: “Essa eleição realmente deixou de ser política alguns meses atrás e começou a ser emocional. É, mais do que qualquer coisa, um referendo contra a corrupção no qual, tanto por direito quanto por esperteza, Amlo tem se apresentado como a única alternativa. E na realidade ele é”.

Durante meses, a equipe de López Obrador ziguezagueou pelo país. Chegando a uma pequena cidade produtora de gado chamada Guadalupe Victoria, ele me disse que havia estado ali 20 vezes. Depois de um longo dia de discursos e reuniões em Sinaloa, jantamos enquanto ele se preparava para viajar para Tijuana, onde tinha uma agenda no dia seguinte. Parecia um pouco cansado, e eu perguntei se estava precisando de uma pausa. Ele assentiu com a cabeça e disse que, durante a Páscoa, iria a Palenque, no estado sulino de Chiapas, onde tem um ranchito no mato. “Eu vou para lá e não saio por três ou quatro dias”, disse. “Só fico olhando para as árvores.”

Na maior parte do tempo, no entanto, encontrar as massas parece energizá-lo. Em Delicias, ele levou 20 minutos para andar uma quadra, pois eleitores pediam selfies e beijos e seguravam faixas que diziam “AMLOVE”— um dos seus slogans de campanha.

Já as aparições públicas com seus oponentes e encontros com a imprensa parecem combinar menos com ele. Algumas vezes, ele responde a perguntas intrometidas de repórteres abanando o dedinho — o que significa, no México, um retumbante não. Em 2006, ele se recusou a ir ao primeiro debate presidencial; os oponentes deixaram para ele uma cadeira vazia.

Havia três debates marcados para esta campanha, e Amlo só tinha a perder. Em 20 de maio, quando o segundo debate ocorreu em Tijuana, as pesquisas davam que ele tinha 49% das intenções de voto. Seu rival mais próximo — Ricardo Anaya, um advogado de 39 anos, candidato do PAN — 28%. José Antonio Meade, que foi ministro das Finanças e do Exterior de Peña Nieto, 21%. Em último estava Jaime Rodríguez Calderón, governador do estado de Nuevo León. Sujeito destemperado, conhecido como “El Bronco”, ele marcou sua campanha com a sugestão de que os políticos corruptos deveriam ter suas mãos decepadas.

Com López Obrador à frente, a estratégia dos demais candidatos era deixá-lo na defensiva, e em alguns momentos isso funcionou. Anaya, um homem pequenino com um cabelo raspado dos lados e óculos sem aros de um empreendedor tech, cruzou o palco para confrontar López Obrador. No começo, Amlo reagiu timidamente; colocou a mão no bolso e falou: “Vou proteger minha carteira”. O clima ficou mais ameno. Mas, quando Anaya o questionou sobre uma das suas iniciativas preferidas, a promessa de uma linha de trem ligando o Caribe ao Pacífico, ele ficou tão contrariado que chamou Anaya de canalha. E continuou, usando o diminutivo do primeiro nome de Anaya para criar uma rima que ridicularizava sua baixa estatura: “Ricky, riquín, canallín”.

Quando Meade, candidato do PRI, criticou o partido de López Obrador por votar contra um acordo comercial, Amlo respondeu que o debate era apenas uma desculpa para atacá-lo. “Isso é óbvio, e eu diria, compreensível”, disse. “Estamos liderando as pesquisas por 25 pontos.” Além disso, ele nem se importou em olhar para Meade, exceto para acenar para ele e Anaya ao chamá-los de “máfia do poder”.

Jogo de cintura

Mesmo assim, sua liderança nas pesquisas só cresceu. Dois dias depois, no balneário de Puerto Vallarta, milhares de fãs rodearam sua SUV branca, detendo-a até que a polícia abrisse caminho. Nas redes sociais, rodaram vídeos de seus apoiadores abaixando-se para beijar o carro.

Desde que perdeu as eleições de 2006, López Obrador tem se apresentado como um avatar da mudança. Fundou um novo partido, o Movimento da Regeneração Nacional, ou Morena, que Duncan Wood, diretor do Instituto do México no think tank americano Wilson Center, descreveu como uma evocação do PRI original — um esforço para atrair todos aqueles que sentem que o México está no caminho errado.

“Ele saiu pelo país assinando acordo com as pessoas”, diz Wood. “‘Você quer fazer parte da mudança? Sim? Então assine aqui.’” O Morena tem um número crescente de simpatizantes, mas relativamente poucos filiados. No ano passado, tinha 320 mil, tornando-o o quarto maior partido do país. À medida que a campanha de López Obrador foi ganhando força, ele recebeu parceiros que pareciam profundamente incompatíveis.

Em dezembro, o Morena selou uma aliança com o Partido de Trabalho (PT), um partido de origens maoístas; também juntou-se ao Partido Encontro Social (PES), um partido evangélico que é contra o casamento gay, homossexualidade e aborto. Alguns dos seus assessores acreditam que López Obrador pode romper essas alianças depois da vitória, mas nem todos estão convencidos disso. “O que me assusta mais são suas alianças políticas”, me disse Luis Miguel González, do jornal El Economista.

Em um comício na cidade de Gómez Palacio, no nordeste, alguns desses aliados bateram de frente. Em um mercado a céu aberto na periferia da cidade, membros do PT ocuparam uma área grande perto do palco — um bloco organizado de homens jovens usando camisetas vermelhas e balançando bandeirinhas com estrelas amarelas. No palco, com López Obrador, estava o presidente do partido, Beto Anaya. Um dos assessores de López Obrador estremeceu perceptivelmente e resmungou: “Aquele cara tem vários escândalos de corrupção”. (Anaya nega todas as acusações.) Quando lideranças locais se agrupavam, uma jovem dirigiu-se ao microfone, e vaias eclodiram. O assessor explicou que era Marina Vitela, uma candidata do Morena que fora antes filiada ao PRI. As vaias foram crescendo, e Marina ficou paralisada, olhando para a multidão, aparentemente incapaz de falar. López Obrador foi até ela, abraçou-a e pegou o microfone. “Temos que deixar nossas diferenças e conflitos para trás”, disse. As vaias pararam. “A pátria vem primeiro!”, gritou, e gritos de apoio eclodiram.

Com os membros do PT na audiência, o discurso de López Obrador adotou um tom mais radical. “Esse partido é um instrumento para a luta dos povos”, disse, e acrescentou: “Da união nasce a força”. Continuou: “O México vai produzir tudo o que consome. Vamos parar de comprar do exterior”. Depois de cada uma das suas promessas, os militantes do PT vibravam em uníssono e alguém batia em um tambor.

Naquela noite, durante o jantar, nós falamos sobre as perspectivas do Morena. López Obrador se gabou de que, embora o partido ainda seja consideravelmente menor do que seus rivais, ele conseguiu mobilizar apoiadores. “Há poucos movimentos na América Latina com o poder de pôr pessoas nas ruas hoje em dia”, disse.

Não muito antes, um proeminente líder comunista da região me disse que a esquerda na América Latina estava praticamente morta porque quase não há mais sindicatos. Os sindicatos já foram o bastião da política local, garantindo credibilidade e votos; nas últimas décadas, muitos sucumbiram à corrupção ou a divisões internas, ou foram cooptados por empresários.

López Obrador sorriu quando eu mencionei isso. O maior sindicato de mineiros mexicano declarara recentemente apoio à sua candidatura. Em 2006, o diretor do sindicato, Napoleón Gómez Urrutia, foi acusado de tentar embolsar um fundo de trabalhadores de US$ 55 milhões; ele fugiu para o Canadá, onde obteve cidadania e escreveu um best-seller sobre suas adversidades. Segundo López Obrador, ele foi punido por enfrentar donos de minas. “São eles que mandam em tudo e dão as ordens.”

Urrutia foi absolvido em 2014, mas ainda sentia que podia sofrer novas acusações se voltasse ao México. López Obrador abraçou a sua causa e lhe ofereceu um assento no Senado, que lhe daria imunidade parlamentar. Os críticos de López Obrador ficaram furiosos. “Você deveria ter visto a gritaria”, lembra. “Eles realmente me atacaram. Mas agora está diminuindo.” Com um olhar debochado, ele diz: “Eu falei a eles que, se os canadenses achavam que ele é bacana, então talvez não seja tão mau”. Revirando os olhos, ele completa: “Você sabe, aqui todo mundo acha que os canadenses são tudo de bom”.

López Obrador me disse ter também o apoio do sindicato dos professores e se apressou em esclarecer: “O não oficial — não o oficial e corrupto”. O governo de Peña Nieto havia aprovado reformas educacionais, medidas impopulares com os professores. “Eles estão conosco agora”, disse, e acrescentou: “O sindicato oficial — de rabo preso, corrompido — também nos deu seu apoio”. Ele fez uma careta. “Esse é o tipo de apoio de que ninguém precisa, mas em uma campanha você precisa de apoio, então vamos em frente, eu espero encontrar maneiras de limpá-los.”

Semanas depois, eu o reencontrei na estrada para Chihuahua, o maior estado mexicano. Ao sul de Ciudad Juárez e seu cinturão empoeirado de fábricas com trabalhadores mal pagos, Chihuahua é uma região de cowboys — um lugar aberto, de vastas pradarias e montanhas cobertas de florestas. Por diversos dias, dirigimos centenas de quilômetros para cima e para baixo através das pastagens.

Esse território havia sido a base para o exército revolucionário de Pancho Villa na sua luta contra o ditador Porfírio Díaz; a paisagem estava marcada pelos locais de batalhas e execuções em massa. Um dia, do lado de fora do sanitário masculino durante uma parada, López Obrador olhou para o horizonte, acenou com os braços e disse: “Villa e os seus homens marcharam nestes lados por anos. Mas imagine a diferença: ele e seus homens cobriram a maior parte dessa distância a cavalo, e nós, de carro”.

Para ficar na história

López Obrador escreveu meia dúzia de livros sobre a história política do México. Mais que a maioria dos mexicanos, ele tem consciência da história do país de submissão aos EUA e é sensível aos ecos dessa história na retórica da administração Trump. Quando paramos em um restaurante modesto de beira de estrada, ele falou da invasão de 1846, conhecida nos EUA como a Guerra Mexicano-Americana e entre os mexicanos, como a intervenção americana no México.

Aquele conflito acabou com a cessão humilhante de mais de metade do território mexicano para os Estados Unidos, mas López Obrador vê nele pelo menos alguns exemplos de valor. Em um ponto durante a guerra, diz ele, o comodoro Matthew Perry armou uma enorme frota americana ao longo da costa de Veracruz. “Ele tinha grande superioridade e enviou uma mensagem ao comandante da cidade para render-se a troco de salvar a cidade e suas pessoas”, diz. “E sabe o que o comandante disse a Perry? ‘Minhas bolas são grandes demais para caberem no seu Capitólio. Vem pra cima’. Perry abriu fogo e devastou Veracruz.” Ele ri. “Mas o orgulho ficou salvo.”

Por um momento, ele contempla se a vitória é mais importante do que um gesto grandioso que pode levar à derrota. Finalmente, diz acreditar no gesto grandioso —“para ficar na história, pelo menos”.

Fomos interrompidos por membros da família que administra o restaurante, pedindo educadamente para tirar uma selfie. Quando se levantou, López Obrador disse: “Esse país também tem suas celebridades — menos Donald Trump!”. Levantou as sobrancelhas em descrença e, com uma risada, bateu na mesa com as mãos.

No começo do mandato de Trump, López Obrador se apresentava como um antagonista; ao lado de seus discursos condenatórios, foi o autor de uma petição na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, protestando contra o projeto do muro e a política de imigração.

No começo do mandato de Trump, López Obrador se apresentava como um antagonista

Quando mencionei o muro, ele sorriu com desdém e disse: “Se ele for em frente com isso, vamos à ONU, denunciá-lo como uma violação de direitos humanos”. Mas acrescentou que passou a compreender, ao observar Trump, que “não é prudente confrontá-lo diretamente”.

Durante a campanha, Obrador tem evitado gestos grandiosos. Pouco antes do discurso em Gómez Palacio, Trump enviou a Guarda Nacional para a fronteira com o México. López Obrador sugeriu uma resposta quase pacifista: “Vamos organizar uma manifestação ao longo de toda a fronteira — um protesto político, todos vestidos de branco!”.

No geral, Obrador tem pedido respeito mútuo. “Não descartamos a possibilidade de convencer Donald Trump de como tem sido errada a sua política externa, e em particular sua atitude de desprezo ao México”, disse em Ciudad Juárez. “Nem o México nem sua população vão servir de piñata para nenhuma potência estrangeira” — disse, referindo-se aos tradicionais bonecos de papel machê que estouram quando atingidos por um taco.

Fora do palanque, ele sugere que é moralmente necessário conter as tendências isolacionistas de Trump. “Os Estados Unidos não podem se tornar um gueto”, diz. “Seria um absurdo monumental.” Ele disse que esperava ser capaz de negociar um novo relacionamento com Trump. Quando eu expressei ceticismo, lembrou-se dos comentários recalcitrantes de Trump sobre o líder norte-coreano, Kim Jong-un: “Isso mostra que as posições dele não são irredutíveis, mas feitas em nome das aparências”. Nos bastidores, assessores de López Obrador procuraram membros da administração Trump para estabelecer uma relação profissional.

Uma postura mais agressiva daria a López Obrador pouca vantagem sobre os demais candidatos durante a campanha. Quando eu perguntei a Jorge Guajardo, o ex-embaixador, qual seria o papel do Trump na eleição, ele disse: “Zero. E por um motivo muito simples — todo mundo no México se opõe a ele igualmente”.

Durante o mandato, porém, ele poderia descobrir que é do seu interesse apresentar uma resistência mais dura. “Olhe o que aconteceu com os líderes que tentaram, de primeira, se dar bem com Trump”, diz Guajardo. “Macron, Merkel, Peña Nieto e Abe — todos perderam com isso. Mas olhe Kim Jong-un! Trump parece gostar de quem o rejeita. E eu acho que o mesmo cenário valerá para Andrés Manuel.”

Em eventos durante a campanha, López Obrador falava sempre de mexicanismo — uma maneira de dizer “México em primeiro lugar”. Observadores da região dizem que, quando os interesses dos dois países se chocarem, ele provavelmente se voltará para dentro. As forças armadas e policiais mexicanas frequentemente tiveram de ser persuadidas a cooperar com os Estados Unidos, e ele provavelmente será menos afeito a pressioná-las. Os EUA convenceram Peña Nieto a endurecer a fronteira sul do país contra o fluxo de imigrantes centro-americanos. López Obrador anunciou que vai transferir a central de imigrações para Tijuana, na fronteira norte. “Os americanos querem que nos coloquemos na fronteira sul com a Guatemala, para fazermos o trabalho sujo por eles”, afirma. “Não, vamos colocar ali, para podermos cuidar dos nossos imigrantes.”

Funcionários locais temem que Trump esteja preparando uma retirada do Nafta (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, envolve EUA, México e Canadá). López Obrador, que muitas vezes defendeu maior autossuficiência, pode ficar feliz de deixá-lo ir embora. No discurso de lançamento da campanha, disse esperar desenvolver o potencial do país de modo que “nenhuma ameaça, nenhum muro, nenhum bullying de um governo estrangeiro possam nos impedir de sermos felizes em nossa própria pátria”.

Mesmo se López Obrador estiver inclinado a construir uma relação mais próxima com o governo americano, as pressões de dentro e fora do país podem impedir. “Você não pode ser presidente do México e ter uma relação pragmática com Trump — seria uma contradição em si mesma”, diz González. “Até agora, o México tem sido previsível, e Trump tem sido quem traz as surpresas. Acho que agora vai ser Amlo que vai trazer o fator-surpresa.”

Uma manhã em Parral, a cidade onde o revolucionário Pancho Villa morreu, tomei café da manhã com López Obrador enquanto ele se preparava para um comício em uma praça. Ele reconheceu que a transformação que Villa ajudou a acontecer foi sangrenta, mas mostrou confiança de que a transformação que propõe será pacífica. “Estou enviando mensagens de tranquilidade, e continuarei”, disse. “E, apesar das minhas diferenças com Trump, eu o tenho tratado com respeito.”

Eu disse a ele que muitos mexicanos se perguntavam se ele havia moderado suas antigas convicções radicais. “Não”, ele disse. “Eu sempre pensei do mesmo modo. Mas eu ajo de acordo com as circunstâncias. Nós propusemos uma mudança ordeira, e nossa estratégia parece ter funcionado. Há menos medo agora. Mais pessoas da classe média se juntaram, não somente os pobres, e também alguns empresários”.

Mas há limites para a inclusão de López Obrador. Muitos jovens urbanos mexicanos desconfiam do que veem como uma falta de entusiasmo com as discussões identitárias contemporâneas. Eu perguntei se ele conseguiu mudar essa impressão. “Não muito”, disse francamente. “Olhe, neste mundo há aqueles que dão mais importância à política do momento — identidade, gênero, ecologia, animais. E há o outro campo, que não é a maioria, mas que é muito importante, que é a luta por igualdade de direitos, e é nesse campo que eu estou. No outro campo, você pode passar a sua vida criticando, questionando e administrando a tragédia sem nunca propor a transformação do regime.”

López Obrador algumas vezes diz que quer ser visto como um líder da estatura de Benito Juárez. Eu perguntei se ele realmente acreditava que poderia refundar o país de uma maneira tão histórica. “Sim”, respondeu. E me olhou diretamente. “Sim, sim. Vamos fazer história, tenho certeza disso. Eu sei que, quando alguém é candidato, às vezes fala coisas e faz promessas que não podem ser cumpridas — não porque não quer, mas por causa das circunstâncias. Mas eu acho que posso enfrentar as circunstâncias e cumprir essas promessas.”

É esta a mensagem que anima seus apoiadores e preocupa seus opositores: a promessa de transformar o país sem desordem. Lembro do discurso que ele fez uma noite em Ciudad Cuauhtémoc, uma cidade mineira abandonada, cercada de montanhas no norte do país. Ali parecia remoto até mesmo para os mexicanos, mas as pessoas de lá sentiam as mesmas frustrações com a corrupção e a economia predatória. A região é dominada por carteis de drogas, de acordo com os assessores de López Obrador, e a economia estava sofrendo. Um líder do Morena local falou com frustração sobre “mineradoras estrangeiras explorando os tesouros sob nosso solo”.

A audiência estava cheia de cowboys usando chapéus e botas; um grupo de mulheres indígenas tarahumara ficou reunido em um lado, trajando vestidos com bordados tradicionais. López Obrador parecia estar em casa, e a sua fala foi mais agressiva e menos cuidadosa. Ele prometeu uma “revolução radical” que iria dar a eles o país que queriam. “‘Radical’ vem da palavra ‘raiz’”, disse. “E nós vamos tirar esse regime corrupto pelas suas raízes.” 

Copyright © 2018, Jon Lee Anderson. Esta reportagem foi publicada na edição de 25 de março da revista New Yorker, sob o título “Mexico First”. Traduzida por Natalia Viana. 

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