Em uma terça-feira de julho, Olivia* procurou um dos Centros de Referência em Assistência Social (Cras) da cidade onde vive, no interior de São Paulo. Queria ser ouvida por um psicólogo com quem pudesse falar das agressões que sofre na própria casa pelas mãos do marido, vinte anos mais velho que ela. “Precisava abrir minha mente, ouvir que não sou tão ruim quanto ele fala”, relata.
Segundo Olívia, os episódios de violência física e psicológica acontecem desde o início do casamento, há 15 anos, mas se intensificaram muito durante os primeiros meses da pandemia, quando ele saiu de férias e ela deixou de trabalhar temporariamente como empregada doméstica por conta da quarentena. “Foi quando vivi meu pior inferno”, afirmou à reportagem da Agência Pública.
Ex-dependente química e filha de uma vítima de feminicídio – há 20 anos, a mãe foi esfaqueada até a morte pelo companheiro, a quem havia denunciado –, Olívia tem medo de ir à polícia e não acredita que haja “justiça para as mulheres” no Brasil. Ainda que o país conte com uma legislação considerada avançada no combate à violência doméstica, seu histórico familiar faz com que ela enxergue o sistema com ceticismo. E, para ela, recorrer ao Poder Judiciário significa “sair de um inferno para entrar em outro”. Por isso, depois de ter pensado muito, ela finalmente decidiu procurar ajuda em outro lugar que não a delegacia. Mas quando chegou ao centro de atendimento, descobriu que este estava fechado, evidenciando como a pandemia, em muitos casos, reduziu – em vez de ampliar – o acesso a serviços de assistência a mulheres vítimas de violência doméstica. Não havia nenhum aviso sobre o funcionamento: por telefone, a reportagem recebeu a informação de que a porta fica fechada por razões de segurança e que, se a pessoa toca a campainha, pode ser atendida.
“Simplesmente encontrei o lugar fechado e depois escutei na televisão que não tinha data para a reabertura”, recorda Olívia.
“A partir do momento em que [os Cras] não atendem o público [pessoalmente], acabam oferecendo menos espaços de acolhimento e proteção para essas mulheres”, diz a advogada Letícia Ferreira, da organização TamoJuntas, que fornece atenção multidisciplinar gratuita a vítimas da violência de gênero em todo o Brasil.
Olívia concorda: “Um lugar assim tem que estar aberto o tempo todo, porque você não vai na hora que quer, mas sim quando aparece a oportunidade. Eu pensei: ‘Agora sim me ferrei, é um aviso de Deus para não procurar nada'”, lamenta. Sem forças para procurar novamente ajuda, ela continua vivendo em situação de violência com o marido.
Ser mulher vítima de agressão e acessar os serviços de combate à violência de gênero já era problemático antes da Covid-19, mas a pandemia agravou a situação no Brasil e em outros países da América Latina que enfrentaram longas quarentenas, locais ou nacionais. Estudos e relatórios regionais e internacionais sugerem que a violência contra mulheres cresceu com o isolamento – no Brasil, o número de feminicídios aumentou 1,9% no primeiro semestre de 2020 em comparação ao mesmo período de 2019, apontam dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). As ligações para números de emergência continuaram, embora muitas mulheres tenham deixado de denunciar por conviver com seus agressores ou não dispor de crédito em seu celular. Por aqui, ainda de acordo com estatísticas do FBSP, de janeiro a junho as chamadas para o 190 em casos de violência doméstica aumentaram 3,8% em relação ao primeiro semestre do ano passado.
Para além dos números frios, a Covid-19 revelou a deficiência dos serviços de atendimento e da Justiça na proteção a mulheres de toda a região. O caso de Olívia e Jurema, no Brasil, Ximena, na Colômbia, e Amanda e Érica, no México, revelam a ineficiência das autoridades em enfrentar esse problema. A apuração transnacional foi feita por seis veículos latino-americanos liderados pelo Centro Latinoamericano de Periodismo de Investigación (CLIP).
Confinadas com o agressor
Durante a quarentena no Brasil, alguns tribunais estaduais – onde trabalham juízes especializados em violência doméstica – e defensorias públicas também operaram à distância durante os meses mais críticos da pandemia, como em São Paulo, onde vive Olívia.
Isso criou um obstáculo para que a Justiça pudesse conceder medidas protetivas de emergência para as mulheres. “Muitas vezes, os pedidos dessas medidas são apresentados por advogados privados, mas no caso das mulheres em situação de vulnerabilidade são feitos através das defensorias públicas e dos centros de referência que contam com um serviço sociojurídico. Com esses serviços fechados, o número de pedidos foi menor”, diz Letícia Ferreira. “Nossa assistência, que antes era presencial, de repente virou 100% on-line. Mesmo tendo identificado taxas mais altas de violência doméstica, houve menos demanda do nosso serviço”, concorda Nalida Coelho, defensora pública na cidade de São Paulo.
As mulheres podem pedir medidas protetivas também nas delegacias de defesa da mulher espalhadas por todo o país. Para aumentarem as possibilidades de denúncia durante a quarentena, São Paulo, Bahia e outros estados criaram canais digitais para o registro de casos de violência doméstica. “Isso ajuda, mas não resolve, porque várias mulheres não têm acesso à internet e não podem usar seus computadores ou telefones porque estão sendo constantemente vigiadas pelo agressor”, explica a psicóloga Juliana Martins, do FBSP. De março a maio, a quantidade de medidas protetivas concedidas pelos tribunais de quatro estados (São Paulo, Acre, Pará e Rio de Janeiro). Os registros de agressões por violência doméstica caíram 9,9% nas delegacias brasileiras.
É o caso de Jurema*, moradora de uma periferia da zona leste de São Paulo. Ela trabalha vendendo cocada, mas durante a pandemia se viu obrigada a permanecer isolada com o marido e os dois filhos por conta do risco de contaminação. Em setembro, quando se preparava para sair de casa com a família, Jurema não conseguia encontrar máscaras limpas, e por isso foi agredida pelo companheiro.
A vendedora chegou a pedir a ajuda da agente de saúde Rosângela*, que trabalha na Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro onde reside e há dois anos acompanha a família. Encaminhada pela unidade de saúde, Jurema resolveu registrar boletim de ocorrência (BO), mas ao chegar à delegacia foi atendida por um delegado que a “mandou de volta para casa”. Aquela não foi a primeira vez que Jurema sofreu agressões do marido, mas foi a primeira vez que procurou auxílio. Com a negativa do delegado e sem acesso à internet para registrar o BO, Jurema voltou para casa e consequentemente para seu agressor.
Para a agente de saúde Rosângela, que atua há mais de dez anos atendendo famílias e mulheres vítimas de violência doméstica, a história evidencia um problema anterior à pandemia, mas agravado por ela: a desarticulação da rede de atendimento à mulher e a falta de treinamento dos profissionais. “Essa paciente já começou na rede e dentro da própria rede não teve o atendimento. Se coloca no lugar dessa mulher, ela foi agredida e teve que sair da casa dela humilhada, dilacerada. Ela teve que se expor para as pessoas que ela não conhece, teve que contar o problema dela. As pessoas escutaram, mas não encaminharam ela para o local certo”, diz.
Colômbia: quando apenas a mobilização nas redes sociais alerta as autoridades
Ximena* passou anos denunciando o ex-companheiro, que a agrediu várias vezes, mas não havia conseguido que as autoridades dessem atenção ao seu caso. Até que, em plena pandemia e quarentena, ela tomou uma decisão contundente: o expôs nas redes sociais.
Isso ocorreu depois de um novo ataque.
Na noite de 22 de junho, Ximena foi buscar o filho de 2 anos na casa do antigo companheiro, na cidade de Barranquilla, a quarta mais populosa da Colômbia. Ao chegar, percebeu que ambos estavam dormindo e decidiu voltar mais tarde. Ela estava na esquina conversando com uma vizinha quando ele a chamou e avisou que o filho tinha acabado de acordar. “O pequeno está te chamando”, ele teria dito, de acordo com ela.
Ximena retornou e entrou na casa para buscá-lo, mas se deu conta de que a criança ainda dormia. Foi então que o homem fechou a porta de repente e deu um soco na altura de seu olho. Ximena implorou que ele a deixasse ir. Ele foi correndo até o quintal e ela aproveitou para procurar as chaves, mas, enquanto abria a porta, sentiu um forte golpe na cabeça. Ela apalpou o local e percebeu que estava sangrando.
“Nesse momento, eu perdi a consciência. Não lembro muito, mas, quando recobrei os sentidos, minhas costas doíam. Sentia muita dor no corpo todo, até nos olhos. Com certeza ele me bateu enquanto eu estava inconsciente. Imagino que ele pensou que eu estava morta. Quando consegui, corri com meu bebê até minha casa”, recorda.
Nesse dia, Ximena decidiu expor seu caso publicamente no Instagram para pedir ajuda, porque até então não havia conseguido proteção das autoridades. “Sempre que vou até as instituições, me dizem que as medidas de proteção vão ser tomadas, mas, no fim, fica só na promessa”, diz.
Desde 4 de abril de 2018, quando ela fez a primeira denúncia de violência doméstica, suas solicitações por proteção policial ou ações legais terminavam sempre com indiferença ou até mesmo hostilidade dos funcionários. Ela ouvia coisas do tipo “Se o agressor é usuário de entorpecentes, você já deveria esperar essa reação dele” ou “Não questione nosso trabalho, agradeça que estamos te ajudando”.
Resultado: “Eu volto pra casa com mais medo”, afirma. Apesar dos vários golpes com garrafas, socos e pontapés, de acordar ensanguentada, com dores nas costas e na cabeça, Ximena não conseguia acessar proteção através dos dispositivos criados para atender mulheres vítimas de violência.
Em cinco ocasiões, ela tentou fazer uma denúncia à polícia e, em quatro delas, avançou até o passo seguinte à delegacia da família, que atende mulheres vítimas de violência. Mas apenas uma vez a denúncia chegou à Promotoria, que é a última etapa do processo, sem que ela conseguisse nenhuma decisão judicial a seu favor, como uma medida cautelar de afastamento.
Em meio à frustração, Ximena decidiu parar de sair de casa para evitar correr riscos. Mas isso também não funcionou: seu agressor passou a assediá-la e sua família em seu próprio lar.
Em 23 de junho, após a nova agressão, Ximena publicou um vídeo em sua conta no Instagram. “Por favor, preciso que alguém me ajude. A Promotoria e as autoridades não fazem nada. Por isso, estou recorrendo a este meio, porque, de verdade, eu já sinto que não consigo mais. Ele diz que vai me matar, até já tentou matar a minha mãe”, disse olhando para a câmera. Com voz lenta, Ximena detalha aqueles minutos de horror, chora e depois retoma o relato, dizendo o nome do seu agressor e implorando às autoridades que a ajudem.
O vídeo rapidamente viralizou – foi compartilhado por influenciadores digitais e veículos de comunicação. Um advogado criminalista ofereceu ajuda legal para reabrir seu processo.
Na manhã seguinte, 810 dias após sua primeira denúncia, as autoridades falaram publicamente sobre o caso e se comprometeram a dar apoio a Ximena e o Instituto Nacional de Medicina Legal concedeu a ela 12 dias de licença médica.
Na Colômbia, há 15 mil mulheres em risco de feminicídio – 46% delas estão em risco extremo, e o restante, 53,9%, em risco moderado, segundo o Ministério da Saúde e Medicina Legal.
Essa situação se agravou nos seis meses de confinamento, entre março e agosto. As ligações para linhas de emergência aumentaram 142% em relação ao ano anterior. Isso significa que a cada 25 horas é registrada uma denúncia de feminicídio no país. A cada dez minutos, uma por violência doméstica e, a cada 25 minutos, uma por crime sexual.
Com a exposição do caso, Ximena conseguiu finalmente que a Promotoria abrisse uma investigação e, em 20 de julho – menos de um mês depois –, seu agressor foi preso. Agora, ele pode enfrentar uma pena de oito anos se condenado pelo crime de violência doméstica agravada.
A única diferença entre a rapidez com que o caso correu dessa vez e a demora que marcou as denúncias anteriores é que Ximena expôs publicamente as falhas do sistema desenhado para proteger mulheres como ela, que vivem entre o medo e o sentimento de impotência de que seus agressores não sofram consequências por suas ações.
México: trabalhadoras sexuais têm que se lavar com cloro
No México, durante a pandemia surgiu outra forma de violência que afeta particularmente trabalhadoras sexuais e mulheres vítimas de tráfico com fins de exploração sexual.
“Às vezes trazemos toalhinhas úmidas para desinfectar as mesas, com cloro”, explica pelo telefone Amanda*, de 26 anos, do estado de Tlaxcala, a cerca de 120 km da Cidade do México, capital do país. Foi a solução que encontrou para diminuir um risco quase tão novo quanto a Covid-19. No meio da pandemia, frequentemente clientes têm pedido para que ela e suas colegas se lavem com água e cloro ou usem o produto como enxaguante bucal. Os dois homens que, como ela diz, dão proteção a ela e mais seis mulheres certificam-se de que a desinfecção ocorra.
“Elas são obrigadas a se lavar com cloro”, afirma a advogada Teresa Ulloa Ziáurriz, diretora da Coalizão Regional contra o Tráfico de Mulheres e Meninas na América Latina e no Caribe e integrante da Frente. A informação chegou até ela por meio de organizações que atendem mulheres em situação de prostituição em Tlaxcala. “Sabemos que foi trazida para Tlaxcala a maioria das mulheres que estavam nas redes de tráfico, sendo exploradas em Nova York. Foram levadas para hotéis de diferentes cidades de Tlaxcala e estavam fazendo com que a exploração da prostituição continuasse ali”, completa.
O cloro é um composto químico utilizado para a desinfecção de superfícies e alvejamento de tecidos, mas é altamente nocivo para a saúde humana. A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) alertou sobre a sua toxicidade em agosto, enquanto os casos de Covid-19 continuavam em escalada pelo mundo.
“Quando começou tudo isso da Covid, sabíamos que a atividade se complicaria, não só porque diminuiria a quantidade de serviço e dinheiro, obviamente, mas também porque nos colocaríamos em um risco maior de contágio. Essa atividade por si só é perigosa; com a Covid, os riscos triplicaram”, diz Erika, de 27 anos.
Há quatro ela é trabalhadora sexual, atividade que exerce de forma independente na Cidade do México, sem que terceiros controlem o que faz ou ganha. Desde que a pandemia começou, ela promove seus serviços através de WhatsApp e OnlyFans, uma ferramenta online em que os usuários pagam para ver o conteúdo erótico que ela publica.
Atualmente, não é possível entender a dimensão desse problema porque não há informações oficiais sobre a quantidade de mulheres mexicanas que atuam como trabalhadoras sexuais. Também não se veem ações efetivas do Estado para enfrentá-lo. É por isso que as histórias da mexicana Amanda, da colombiana Ximena, e das brasileiras Jurema e Olívia são tão reveladoras do que está acontecendo com as mulheres em toda a América Latina.
Seu medo se deve ao fato de terem vivenciado como as brechas nos dispositivos de proteção contra a violência de gênero na América Latina significam que seu agressor continua livre. Elas se sentem impotentes.