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Para Daniel Hirata, da UFF, a ADPF das Favelas, julgada no STF, reforça que há formas da polícia agir para resolver crimes sem deixar um rastro de mortes nas periferias

Entrevista
7 de fevereiro de 2022
14:00
Este artigo tem mais de 2 ano

Enquanto os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) debatiam a chamada “ADPF das Favelas” — ação que busca restringir as mortes causadas pela polícia do Rio, sobretudo em favelas e periferias —, na Baixada Fluminense, mais uma operação policial terminava com poucos resultados e grande número de mortos. No dia 3 de fevereiro, policiais militares mataram ao menos seis pessoas em Belford Roxo. Moradores da região, porém, contabilizam pelo menos 15 mortes e afirmam que alguns foram assassinados mesmo depois de rendidos. Segundo a corporação, os militares foram recebidos a tiros no bairro do Parque Floresta, o que teria justificado a ação. Além das mortes, a operação suspendeu as aulas na região.

A repetição de situações como esta criam, para o professor Daniel Hirata, uma imagem de que a única forma de a polícia agir é através de operações armadas em busca de criminosos. Pesquisador do Geni, o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense, amicus curiae na ação, Hirata acompanhou com atenção o julgamento da ADPF, que terminou por determinar a realização em até 90 dias de um plano de redução da letalidade policial, e considera que não há nenhum indicativo que as operações de fato sirvam para diminuir a criminalidade. Pelo contrário. Ele falou sobre como as medidas determinadas pela corte podem de fato mudar essa situação.

Para Hirata, é fundamental debater a centralidade das operações policiais na segurança pública no Rio e sua consequente relação com a letalidade policial no Estado, que chegou em 2021 a 1354 pessoas mortas pela polícia, o terceiro maior número desde que o dado passou a ser registrado. “As operações policiais são feitas sem muito ou sem nenhum critério. A maior parte das operações policiais no Rio no período da liminar foram realizadas para acabar com baile funk ou remover barricadas [do tráfico]”, comenta.

Comparado aos EUA e seus 300 milhões de habitantes, o Rio tem uma polícia quatro vezes mais letal, além de outros problemas, como a presença massiva de milícias que controlam boa parte do território do estado, o que levou a pecha de situação incontornável. “O bom senso bastaria para que se limitasse muito o uso de todo o arsenal bélico, a mobilização de veículos blindados, helicópteros, etc., em comunidades que são em sua maioria compostas por pessoas que não estão armadas, que estão indo trabalhar, para o hospital, para a escola”, pondera Hirata.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

Hirata é um homem branco com cabelos e barba castanho escuro; ele veste uma camisa preta e posa em frente à uma estante de livros
Hirata é pesquisador do Geni, o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF e do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ

No dia 3 de fevereiro, quando o STF julgou a ADPF 635, ao menos seis pessoas foram mortas e outras quatro ficaram feridas em uma operação da PM em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Em novembro, outras nove pessoas foram mortas na chacina do Salgueiro, em São Gonçalo. A determinação do STF de limitar a ação das polícias nas favelas e sua consequente letalidade, em vigor desde junho de 2020, teve algum resultado?

Foram quatro meses de cumprimento relativo da decisão. A partir de outubro de 2020, nós tivemos uma série de descumprimentos sistemáticos, a que se seguiram alguns meses de grande descumprimento, até que, no começo do ano passado, efetivamente, a liminar já não estava mais em vigência. Em 2021, atingimos patamares iguais ou superiores aos anteriores à decisão liminar no que diz respeito à letalidade policial, às ações policiais e também aos tiroteios. Isso mostra que, infelizmente, a decisão já não estava mais sendo respeitada. No momento em que ela estava em efetiva vigência as operações caíram, a letalidade policial caiu mais de 70% sem que houvesse aumento nem dos crimes contra a vida nem dos crimes contra o patrimônio.

A liminar do ministro Edson Fachin estabelecia que a polícia só poderia realizar operações em favelas em casos “absolutamente excepcionais”, o que foi usado pelo governo do Rio como desculpa para seguir realizando operações, já que a situação do Rio em si seria excepcional. A corte chegou a um acordo do que seriam esses casos excepcionais? 

Essa é uma questão central de todo o debate. Teria sido bem-vindo um conceito de excepcionalidade mais preciso e que apontasse as situações concretas em que operações policiais poderiam ser realizadas. Em momento nenhum se proíbe em absoluto a realização de operações, mas no Rio de Janeiro, infelizmente, as operações policiais se confundem com a própria atividade policial. É quase como se fossem equivalentes, sinônimas, quando a atividade policial pode ser feita de diversas maneiras. Por vezes é necessário realizar operações policiais, claro. Pois bem, quais são as situações em que essas ações podem ser realizadas? Evidente que em caso de ameaça iminente à vida. Mas acontece que as operações policiais são feitas sem muito ou sem nenhum critério. Nós fizemos um levantamento com base nos dados oficiais do Ministério Público que mostra que a maior parte das operações policiais no Rio no período da liminar foram realizadas para acabar com baile funk ou remover barricadas [do tráfico], o que não são justificativas que apontem para o caráter excepcional. Ainda que não tenha havido o conceito preciso de excepcionalidade, o bom senso bastaria para que se limitasse muito o uso de todo o arsenal bélico, a mobilização de veículos blindados, helicópteros, etc., em comunidades que são em sua maioria compostas por pessoas que não estão armadas, que estão indo trabalhar, para o hospital, para a escola. O conceito de excepcionalidade foi uma brecha que acabou servindo para a volta e a banalização dessas ações. 

O que nós temos de protocolos regendo operações policiais – que, diga-se de passagem, existem também por conta da mobilização da sociedade civil –, já seriam suficientes para reduzir a letalidade policial. Estou fazendo referência à ação civil pública da Maré em 2016 quando, incitados pela sociedade civil, pela ação civil pública, um grupo se reuniu na extinta Secretaria de Segurança e construiu protocolos para as operações policiais, que podem melhorar, claro, mas não são ruins. Seguem os principais tratados e protocolos internacionais de uso da força. Tem como condicionantes princípios importantes de respeito aos direitos humanos… Ali nesses protocolos já está contida a ideia de excepcionalidade. Existem operações planejadas e emergenciais. Só respeitando esses protocolos que as próprias forças policiais fizeram no interior da antiga Seseg já seria um instrumento normativo suficiente para gente ter um número menor de operações e portanto reduzir a letalidade policial – que no caso do Rio de Janeiro é uma coisa escandalosa.

Comboio do BOPE estacionado em uma favela durante ação policial
Para Hirata, não há nenhum indicativo de que as operações policiais nas favelas e periferias de fato sirvam para diminuir a criminalidade

Uma das principais decisões do STF foi o estabelecimento de um plano de redução da letalidade policial em até 90 dias. O que que precisa constar num plano desses pra que ele seja de fato efetivo?

Não tem como a gente escapar de um retorno à discussão sobre as operações policiais nesse plano de redução da letalidade policial. As operações policiais são o grande instrumento da ação pública na área de segurança no Rio de Janeiro. Elas mobilizam recursos financeiros, tecnológicos e humanos enormes e são muito pouco efetivas para o controle tanto do crime comum, contra o patrimônio, crimes contra a vida, como também da criminalidade organizada. A pergunta que fica é o porquê da centralidade dessas operações policiais. 

Se queremos reduzir a letalidade policial e ao mesmo tempo ter forças policiais mais efetivas nas suas atribuições de controle do crime comum ou da criminalidade organizada, temos que voltar a essa discussão. Temos que estabelecer protocolos ainda mais rígidos, um controle interno via corregedoria, mas sobretudo um controle externo pelo Ministério Público de forma mais efetiva. Porque além de serem brutais, as operações são ineficazes. E, no limite, elas também têm sido utilizadas de forma a obter benefícios pessoais quando não criminais no favorecimento das chamadas milícias. Há muito mais operações policiais em áreas do Comando Vermelho, controladas por facções do tráfico de drogas, do que nas áreas de milícias, por exemplo. 

Temos muitas outras questões, mas se concentrar na questão das operações policiais é a maneira de conseguir resultados de curto prazo. A decisão do ministro Fachin, enquanto esteve em vigência, é a maior prova disso. Reduziu-se em mais de 70% a letalidade policial. Quando a gente está num patamar como o Rio de Janeiro qualquer medida de boa fé e na direção correta consegue resultados de forma quase imediata. 

Também não é exatamente verdade que o problema da letalidade policial é extremamente complexo, que não pode ser resolvido. Pode, sim, e esperamos que esse plano vá nessa direção. Daí a importância, inclusive, do Observatório Judicial sobre Polícia Cidadã que o ministro Edson Fachin propôs e foi aprovado e que agora vai ter um outro desenho institucional, vai estar dentro do Conselho Nacional de Justiça. Acho muito importante ver como isso vai funcionar exatamente, seja a composição desse observatório, seja os poderes a ele atribuídos, assim como o arranjo institucional que vai permitir que se faça efetivamente essa supervisão.

O que podemos esperar desse Observatório Judicial, considerando que o governo tem um histórico de descumprimento de decisões judiciais relacionadas à segurança pública?

Ainda não está claro. Temos a experiência de dois ou três observatórios que já estão em funcionamento e que precisamos estudar. Mas ele é um instrumento fundamental. Veja, o governo do estado do Rio de Janeiro apresentou um plano de segurança pública protocolar no final de 2020 que não mencionava a expressão letalidade policial. O programa Cidade Integrada [espécie de substituto das Unidades de Polícia Pacificadora], lançado agora, também não menciona a letalidade policial. Não me parece que o governo Cláudio Castro tenha compromisso com a resolução deste que é certamente um dos maiores problemas do Rio. Se isso ficar só a serviço do governo do Estado, isso já nasce letra morta. Daí ser tão fundamental a criação de um observatório que seja efetivo na cobrança dos resultados da elaboração do plano. 

O plano de redução da letalidade policial, por exemplo, já fazia parte da condenação do Estado do Rio de Janeiro pela Corte Interamericana no caso da favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão em 2017. Ano passado houve uma audiência da Corte Interamericana com vistas a supervisionar o cumprimento da condenação e os membros da corte interamericana falaram que o plano não havia sido realizado. Já há um longo histórico de demanda desse plano, porque já é um problema muito antigo no Rio de Janeiro, e já há também um longo histórico do governo do estado do Rio de Janeiro de ignorar a realização desse plano.

Qual é a responsabilidade do MP nessa alta letalidade? É ele quem recebe as justificativas das operações e deveria fiscalizar a sua realização. Ainda assim, vimos os números de mortos pela polícia subirem e tanto a liminar quanto a determinação da corte internacional serem desrespeitadas.

Realizamos nosso último relatório com base nas comunicações que o MP recebeu da polícia sobre as operações. Ali nós temos toda uma codificação das justificativas à luz tanto dos protocolos existentes como dos tratados internacionais que mostra o quanto elas estavam violando os princípios mais fundamentais que norteiam o uso da força em geral e as operações policiais em particular. Ainda assim, houve um esforço do próprio Ministério Público, e acho que isso é um avanço da ADPF, em formalizar essas comunicações. Hoje temos em funcionamento um painel que é alimentado tanto pela Polícia Militar quanto pela Polícia Civil de realização das operações, de comunicação das operações e também do relatório de término dessas operações. Algum nível de formalização já foi feito. Agora acabou que o MP, por diversas razões, entre elas essa ambiguidade do conceito de excepcionalidade, não conseguiu arbitrar a contento a realização de operações. Mas só o fato de existirem essas informações e esse sistema integrado já é um avanço. Claro que ainda há muito a ser feito, sobretudo do ponto de vista das denúncias que podem ser eventualmente realizadas pelo MP de operações desnecessárias. São coisas que caminham lentamente. Não estou querendo defender o Ministério Público, mas o MP respondeu a ADPF 635 muito mais do que o governo do estado do Rio de Janeiro, que ignorou a ADPF – isso quando não atuou de forma a sabotar a decisão.

O Ministério Público deveria ser mais proativo no que diz respeito a sua atribuição de órgão de controle externo da atividade policial. Temos duas pesquisas feitas em um intervalo de quase dez anos, uma do professor Ignácio Cano e a outra do professor Michel Misse, que trazem números muito parecidos. Taxas que variam entre 98% e 99% de casos de mortes envolvendo policiais sendo arquivadas a pedido do próprio Ministério Público. Isso é algo que precisa melhorar muito. O monitoramento das operações pode ser um início. Agora a efetividade de construção dessas denúncias também é uma coisa que precisa avançar bastante. 

Para te dar um exemplo, no caso da chacina do Jacarezinho, em que morreram 29 pessoas, foi realizada uma investigação autônoma do Ministério Público a pedido da coalizão da ADPF. A peritagem foi feita de forma independente, as roupas das pessoas que morreram foram retiradas do IML por força de decisão judicial a pedido do MP e enviadas para São Paulo para uma segunda peritagem. A partir disso, nós tivemos a denúncia de dois policiais da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE), e eu não me lembro quando dois policiais da CORE foram denunciados pelo Ministério Público. Tudo isso é resultado da ADPS 635. Não é possível que a Polícia Civil investigue a própria Polícia Civil, que a Polícia Civil faça perícia da chacina que a Polícia Civil mesma fez. 

Isso não é uma questão de revanchismo. Mas a responsabilização dos agentes perpetradores de violações de direitos humanos, de mortes, é uma sinalização fundamental para que se rompa o ciclo de impunidade que acentua o problema. Os policiais cometem mortes, você não tem responsabilização nenhuma. Para aqueles policiais que atuam de forma legal é uma sinalização de que o que eles fazem não valem nada. Para aqueles que atuam de forma abusiva ou ilegal é uma sinalização de que está tudo bem. É muito importante que em algum momento rompa esse ciclo e se comece a responsabilizar os policiais. Mais uma vez, não por uma questão de revanchismo, mas por uma questão de melhoria da atividade policial.

Moradores do Complexo do Alemão fazem protesto pacífico pedindo paz na comunidade e justiça pela morte do menino Eduardo de Jesus, 10 anos, atingido por uma bala perdida
Letalidade policial no Rio de Janeiro em 2021 chegou a 1354 pessoas mortas, o terceiro maior número desde que o dado passou a ser registrado

Uma das determinações dos ministros foi que o estado instale GPS nas viaturas e câmeras nos uniformes dos policiais, medida que já reduziu em mais de 80% a letalidade nos batalhões de São Paulo, por exemplo. Já há, inclusive, legislação sobre isso no Rio. Essa medida tem capacidade de reduzir a letalidade?

A questão das câmeras é super importante, apresentou resultados em muitos lugares onde isso foi implementado, como no exterior e em Santa Catarina e em São Paulo. Mas aqui no Rio tenho um pouco de dúvida quanto à efetividade. Tem algumas questões que não estão muito claras. A custódia, por exemplo, quem pode ter acesso a essas imagens e como elas serão utilizadas? Houve um pedido da ADPF que a Defensoria, o Ministério Público e os defensores de direitos humanos tivessem acesso a essas imagens. Elas são importantes porque por um lado protegem o policial que agiu no rigor estrito da lei e por outro lado protegem a população contra eventuais abusos. Nada mais justo que um acesso amplo a essas imagens. Depois há a questão de por quanto tempo elas vão ser armazenadas. Há casos que vão e voltam, que são reabertos, que depois se descobre novas evidências. 

Aqui no Rio de Janeiro já existia orçamento separado para fazer a compra dessas câmeras e o governo do Estado não utilizou. Depois, sob muita pressão, o governo realmente deu início ao processo licitatório que parou agora por conta do Tribunal de Contas do Estado. E o que o governador Cláudio Castro anunciou como alocação dessas câmaras na orla, em lugares onde a letalidade policial é baixa. Você tem que ter câmeras em operações policiais, não para fazer patrulha de turista ali em Copacabana. Tem muitas questões que trazem dúvidas não sobre o equipamento, mas quanto a como se usam essas imagens, como isso entra no sistema de justiça criminal, como que isso pode ser utilizado de forma estratégica em lugares específicos seguindo as manchas criminais, pensando os principais problemas que tem que se enfrentar nesta área. É difícil.

Como suspender o sigilo de todos os protocolos de atuação policial do Rio, medida negada pelo STF, ajudaria a diminuir a letalidade da polícia fluminense?

Houve uma incompreensão conceitual no julgamento com relação aos protocolos. Isso diz respeito exatamente a esse ponto das câmaras que estou tentando chamar atenção. Quando se pediu a suspensão do sigilo dos protocolos o que se estava demandando era que a população do Rio de Janeiro tivesse acesso aos critérios de utilização, por exemplo, do helicóptero blindado. Em que circunstância se utiliza um helicóptero blindado numa operação? E que esses protocolos fossem públicos. Isso tem a ver com o pacto civil de uso da força. É da essência do estado moderno você pactuar que você cede o uso da força ao estado e de que forma. Ninguém está falando em publicizar informações de inteligência, anunciar quando vai se realizar uma operação. 

O ponto é que o contrato que rege o uso da força de forma oficial necessariamente tem que ser público, porque as regras do jogo têm que ser públicas. As pessoas têm que saber como e porque a força está sendo utilizada, em quais circunstâncias. As câmeras são um instrumento para dar publicidade a isso, para tornar público o uso concreto da força, para que se possa fazer uma avaliação. ‘Naquela situação era isso que deveria ter sido feito ou não? Se foi um problema de imperícia, o policial tem que voltar pro treinamento ou tem que ser responsabilizado ou não? Ele fez o uso correto, então ok’. Mas como a gente vai saber isso se a gente não sabe os protocolos e se a gente não tem acesso às imagens? O que se estava pedindo era “por favor, tornem público” – e isso era um ponto importante, sobretudo com relação à utilização do helicóptero blindado da Core, que é um instrumento de terror nas favelas. Em que circunstâncias ele se faz necessário?

Como funciona hoje o uso de helicópteros em operações no Rio?

Nós temos um helicóptero blindado aqui no Rio de Janeiro que é da Coordenadoria de Operações Especiais da Polícia Civil do Rio. Ou seja, um helicóptero de guerra na mão da polícia judiciária, o que em si já é um contrassenso. Já faz anos que a polícia civil atua também de forma operativa tanto quanto a polícia militar. Este helicóptero é utilizado não só como apoio logístico no momento das operações, a possibilidade de olhar de cima, mas também como plataforma de tiro, o que diversos especialistas já apontaram que é de uma enorme imprecisão. Nem precisa ser especialista para imaginar que a precisão de tiro de um helicóptero em movimento é baixíssima. Não é uma plataforma adequada para se realizar um disparo. 

A questão maior que estava em jogo ali com relação à suspensão do sigilo dos protocolos era saber em que circunstâncias se faz necessário ou não a utilização de helicóptero para que se pudesse balizar por esses protocolos – se é que eles existem – o correto julgamento da utilização desse equipamento. O mesmo deveria ser feito com relação aos veículos blindados, sobre toda a atividade policial. Toda atividade policial tem que ser codificada. Os policiais sempre atuam em momentos de emergência e em situações onde eles têm que tomar decisões. Isso é normal. A discricionariedade é uma parte constitutiva e necessária da atividade policial. O problema é quando a discricionariedade atravessa a fronteira da arbitrariedade. E quando ela atravessa essa fronteira? Quando você não tem uma norma que estabeleça parâmetros da decisão que vai ser tomada naquele momento. São decisões importantes que envolvem a vida de pessoas e portanto elas têm que ser tornadas públicas.

Temos algum outro estado que parta dessa espécie de política de segurança baseada em operações como o Rio?

A centralidade que as operações policiais têm no conjunto da atividade policial é uma especificidade do Rio de Janeiro. São Paulo não tem a quantidade de operações que se tem no Rio, por exemplo. Você retira policiais que fazem patrulhamento, que fazem ronda, policiamento ostensivo, para atuarem só no policiamento repressivo. Direciona o seu contingente policial para o policiamento repressivo. O Instituto de Segurança Pública do Rio, por exemplo, tem dados muito precisos sobre a sazonalidade de roubo de rua, roubo de carro, roubo de carga… Sabe-se exatamente em quais meses, quais dias da semana, quais horários e em quais locais se tem mais roubos. Só que os policiais não atuam seguindo essas manchas criminais. Eles atuam fazendo operações onde eles imaginam que moram os bandidos. Ou seja, as favelas. Você combina de um lado brutalidade e letalidade com ineficiência. No Rio você tem o programa Segurança Presente que em parte é pago pela Fecomércio, mas que é 60% pago pelo Estado, para fazer segurança de comércio e que também não segue as manchas criminais. Se você não segue as manchas criminais, qual o planejamento que você tem? Nenhum. Ou você vai atuar de forma brutal ou vai atuar de segurança privada do comércio, como proteção patrimonial, etc. É uma loucura.

Você comentou que há uma ideia de que a situação da segurança pública no Rio é incontornável – o estado teve, por exemplo, uma intervenção federal na segurança pública em 2018, mas pouco mudou. Como é possível controlar essa situação?

Os dois maiores problemas do Rio na área de segurança são problemas diferentes, mas conectados. Por um lado, a letalidade policial. Para você ter uma ideia, a polícia do Rio de Janeiro, que é um estado de 16 milhões de habitantes, mata quatro vezes mais por ano do que a soma de todas as polícias dos Estados Unidos, que é um país de mais de 300 milhões de habitantes e que tem polícias internacionalmente conhecidas como brutais, racistas, cheias de problemas também. Se você comparar com outros estados brasileiros, com outros países latino-americanos, o Rio de Janeiro é objetivamente um lugar que tem um problema de letalidade policial. 

Por outro lado, há a questão das milícias. As milícias são um tipo de grupo criminal herdeiro dos grupos de extermínio, dos esquadrões da morte, que, a partir do final dos anos 2000, cresceram de forma notável e hoje já controlam 57% da superfície territorial do estado. Elas atuam diretamente sobre mercados urbanos, a produção da riqueza urbana, sobre a própria urbanização. Tem um projeto de cidade miliciana instaurada aqui que passa pela extração dos diversos serviços e equipamentos públicos. Água, luz, internet, mercado imobiliário, gás… E contamina o sistema político, que tem relações muito próximas desses grupos. E é um problema que também não está sendo enfrentado de maneira nenhuma. Só tende a crescer. 

Essas duas coisas se conectam. Quando você tem polícias brutais e impunes, isso estimula essas ligações perigosas das forças policiais com os grupos criminais. Porque você pode fazer uso da força da maneira como você quiser e sempre sair impune. Nós temos policiais que têm 10, 15, 20 mortes e continuam atuando. Quando você tem esse tipo de estímulo para brutalidade policial o passo seguinte é transformar a brutalidade policial num mercado de compra e venda de proteção, que é o mercado das milícias. Isso tem a ver justamente com o uso indiscriminado da força. Nós temos problemas de tornar o uso da força democrático. Por isso que o controle democrático da atividade policial é uma questão que não tem a ver só com a área de segurança pública, tem a ver com a própria possibilidade de existir a política no Rio de Janeiro.

Você comentou que o estado tem 57% do território controlado por milícias. No passado, o ex-governador Sérgio Cabral as definiu como um mal menor. Há anuência do governo com esses grupos?

Há diversos políticos que estão aí agora que apoiaram o que se chamava de autoproteções comunitárias, que é a mesma expressão que se utilizava na Colômbia com relação aos paramilitares. É o mesmo estímulo também. Aqui no Rio nós tivemos um fenômeno que foi a construção da Cidade Olímpica e portanto um investimento gigantesco dos poderes públicos na zona oeste, que é a franja urbana onde a cidade tem espaço para crescer e onde estavam justamente as milícias. 

As milícias tiveram uma vantagem econômica com relação a outros grupos criminosos ao atuar nesse mercado imobiliário durante toda a construção do Rio como vitrine dos mega eventos. Durante esse período, percebemos uma atividade imobiliária muito intensa nos lugares em que as milícias estavam localizadas. E aí são vários mercados. É o mercado de ocupação, de grilagem, de construção, de compra e venda de imóveis, de locação, administração condominial. Aí depois vem água, luz, esgoto, internet. Ou seja, é toda uma urbanização que se faz ao redor dessa influência miliciana. Por outro lado, a gente quase não teve operações policiais nesses lugares. Claro, a gente não considera que as operações policiais são eficientes para desmontagem de organizações criminais. Mas elas incidem sobre os conflitos armados no Rio, sim. E nesse caso incidiram de forma muito mais favorável às milícias do que às facções do tráfico de drogas que tem um um modelo de negócio muito mais pulverizado, desorganizado, limitado basicamente à venda varejista. É muito diferente das milícias, que atuam em mercados legais e ilegais diversos. Têm um poder de extração da riqueza urbana, de pilhagem da riqueza urbana, que é muito maior. Aliado a isso, há a conivência, a tolerância, a participação direta ou indireta que o estado faz desse monstro que nós estamos vendo diante dos nossos olhos agora.

Temos um grande número de mortos pela polícia, mas também de policiais mortos. Uma maior regulação também ajudaria.

A Jaqueline Muniz sempre fala uma coisa muito interessante com relação aos protocolos. O policial que matou o George Floyd pôde ser condenado porque o estrangulamento já era uma prática banida dos protocolos de mobilização de pessoas. Você dá a baliza para poder fazer o julgamento da ação. Agora aqui você não tem controle de arma, você não tem controle de munição. Há uma resistência em geral dos policiais com a regulamentação, aos protocolos, com o argumento de que isso limita a atividade policial. Mas é o contrário. Esses protocolos servem para fortalecer a atividade policial, para que a atividade policial tenha respaldo legal. Tem coisas que são questão de bom senso assim. Por exemplo, uma das questões que foi votada por unânime foi a presença de ambulância durante as operações policiais. Como a presença de uma ambulância durante uma operação vai atrapalhar? O que você proibir operações no perímetro escolar, no período de aula, no entorno de unidade de saúde, vai atrapalhar a operação policial? E mesmo questões mais sensíveis como controle de armas e munição. Isso protege aqueles policiais que fazem o uso adequado de armas e de munições. Não ter protocolos só interessa quem não faz bom uso, não quer que isso seja tornado público e que você tenha um controle sobre isso.

Arquivo pessoal
Tânia Rêgo/Agência Brasil
Tomaz Silva/Agência Brasil

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