A falta de organização de investimentos e esforços de políticas públicas para atender pessoas no país é um dos grandes empecilhos para uma prestação eficiente de serviços de saúde, segundo especialistas que acompanham o tema. A recente exclusão da recomendação de uso da controversa ferramenta M-chat, usada para o diagnóstico precoce do transtorno do espectro autista (TEA), em abril deste ano, por decisão do Ministério da Saúde, ilustra o tratamento frágil da condição, já que leis sancionadas recentemente, como a estadual 10.031/2023, do Rio de Janeiro, e a municipal 18.078/2024, de São Paulo, determinam o uso do recurso em serviços públicos de saúde. Atualmente, mais de 300 propostas legislativas relacionadas ao autismo tramitam na Câmara Federal – e pouco conversam entre si.
A avaliação foi tema de debate durante a apresentação do estudo “A indústria do autismo no contexto brasileiro atual: contribuição ao debate”. A pesquisa foi elaborada pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em parceria com a Rede Nacional de Pesquisas em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (Rede SMCA) e apresentada em evento promovido pelo Instituto Cáue no dia 30 de abril, em encontro virtual com autoras no Rio de Janeiro e São Paulo.
A Escala Modificada para Detecção de Autismo em Crianças [M-chat, em tradução para Modified Checklist for Autism in Toddlers] consiste num questionário respondido por pais ou cuidadores de crianças 1,5 a 2,5 anos de idade para identificar sintomas e gerar uma pontuação que serve para diagnosticar precocemente o transtorno. O problema, segundo as autoras do estudo, Barbara Costa e Amanda Dourado, é que a ferramenta é aplicada de forma generalista, em vez de em uma população específica, em um contexto de sobrecarga no sistema público de saúde, o que gera um risco alto de falsos positivos e compromete a eficiência do atendimento a essa população.
“Diferente, por exemplo, de doenças como a fenilcetonúria, que é identificada no teste do pezinho, ela tem um marcador biológico específico, que o teste tem especificidade para aquele marcador biológico, é um teste de sangue. O M-chat não é esse tipo de teste, você precisa ter algum sinal que aquele desenvolvimento naquela criança não está indo bem, para aí sim, se ela tiver a faixa etária adequada, receber a avaliação pelo teste”, explica Barbara Costa, doutora em saúde coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ela defende a utilidade do teste, mas faz a ressalva de que a aplicação ideal da escala se dê em casos já suspeitos. “O diagnóstico de autismo é processual, depende de uma certa etapa do desenvolvimento que precisa acontecer”, completa.
Desafio ao poder público
Em agosto de 2023, o Ministério da Saúde anunciou a aplicação de R$ 144 milhões para os chamados Núcleos Especializados em Autismo, atualmente há 120 unidades espalhadas pelo país. Além disso, outros R$ 177,8 mil foram disponibilizados como incremento de 20% ao orçamento dos Centros Especializados em Reabilitação que se habilitem a atender pacientes com autismo. No entanto, o atendimento a esse público é normalmente feito localmente pelos Centros de Atenção Psicossocial [Caps], que, segundo as autoras, carecem de atenção e financiamento.
Uma questão que precisa de mais definições no que tange a gestão em saúde é justamente o que fazer após um diagnóstico positivo, que exige acompanhamento médico específico e uma presença mais próxima de equipes de saúde nos municípios. A também autora do estudo Amanda Dourado, pesquisadora e docente de terapia ocupacional na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), critica a falta de direcionamento de orçamento específico para o cuidado de pessoas autistas em serviços já existentes.
“Há um direcionamento orçamentário e um esforço de criação de serviços que, primeiro, não necessariamente seguem um critério populacional suficiente. São serviços de alta complexidade, muito onerosos, em municípios muito pequenos que não vão ter demanda para isso. Com isso eles fragilizam, por exemplo, a atenção primária, fragilizam serviços da rede especializada, não apenas da saúde mental, mas também serviços de pediatria, de modo geral. Acaba sendo uma espécie de direcionamento que retira orçamento ou retira condições de serviços já implantados e que tem condição também de trabalhar”, pontua Dourado.
Segundo as autoras, políticas públicas estagnaram a partir de 2016, após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, e ficaram praticamente paralisadas de 2019 a 2022. Na pesquisa “Contribuições para o avanço da atenção psicossocial de crianças e adolescentes”, elas classificam essa realidade como um retrocesso e o atribuem “a um governo que era contrário a pautas inclusivas e de defesa de direitos”. “Algumas ‘patologias ou transtornos’ que vão ocupando o cenário num viés mercadológico”, avalia a pesquisadora Maria Cristina Ventura, doutora em saúde mental pela UFRJ.
De 2019 até março deste ano, 315 propostas relacionadas a autismo tramitavam na Câmara Federal. De acordo com a análise de Ventura e da colaboradora da pesquisa Ilana Katz, mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), a sobreposição, desorganização e repetição de conteúdos nas proposições revelam uma fragmentação das ações de cuidado, de modo a não promover uma resposta ideal às demandas das pessoas autistas, como o enfrentamento de barreiras na participação social.
Um dos pontos avaliados pelas autoras é que as propostas e iniciativas de atendimento a esse público são utilizadas como tentativas de agradar a eleitores e funcionam como propaganda política, em especial nas proximidades de períodos eleitorais. Segundo Barbara Costa, no entanto, esses projetos comumente tramitam em regime de urgência, sem a realização de debates públicos e frequentemente apresentam propostas “fora do escopo, do arcabouço legal que já existe no país, de outras leis e de outras políticas”.
Questionado sobre o destino dos recursos e o apoio aos Caps, o Ministério da Saúde ainda não se manifestou. Em caso de resposta, este conteúdo será atualizado.