Ao menos 20 grupos de WhatsApp e Telegram que reúnem militares da ativa e da reserva têm se alvoroçado com a proximidade do aniversário do golpe militar, no próximo dia 31 de março. Em mensagens obtidas pela Agência Pública, há um tom de expectativa com o que será dito no Clube Militar do Rio de Janeiro, que anunciou a realização de um almoço com tom comemorativo dos 60 anos do golpe que levou à instauração da ditadura em 1964.
Nesses grupos, de que participam associados do Clube Militar, cabos, soldados, sargentos, coronéis da ativa e militares da reserva, também circula uma série de mensagens e que se considera, por exemplo, o ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos “um verdadeiro herói” por ter se colocado à disposição para os planos golpistas de Jair Bolsonaro. Nomeado pelo ex-presidente, Garnier assumiu o comando da Marinha em 9 de abril de 2021, servindo até o fim do mandato.
Circulam também mensagens com reproduções de um jornal da época em que uma matéria intitulada “A fabulosa demonstração e repulsa ao comunismo” vai acompanhada da mensagem: “O Brasil de 3 de abril de 1964. A repulsa permanece”.
Mas há também pessimismo em relação ao papel dos atuais generais diante do aniversário do golpe militar, no próximo dia 31 de março.
Um texto intitulado “Ordem da noite”, assinado em nome do coronel da reserva José Gobbo Ferreira, 83 anos, tem circulado nesses grupos com frequência.
O manifesto possui trechos que acenam à quebra de hierarquia ao fazer críticas aos comandantes atuais, os quais considera “sem valores tradicionais e sem patriotismo”. O texto, recheado de desinformação, chama o golpe militar de “contrarevolução”. “A contrarevolução de 1964 foi tão importante para a história de nosso País que é fora de questão deixar seu aniversário passar em branco”, diz um trecho.
O título, “Ordem da noite”, faz uma crítica à ordem do governo federal para que não sejam emitidas “ordens do dia” exaltando o golpe militar. “Como membro da geração que participou dela, na inexistência de uma Ordem do Dia, envio algumas palavras àqueles meus irmãos de armas do Exército de Caxias e as chamo “Ordem da Noite””, diz um trecho.
Em outra parte, o autor menciona indiretamente o atual comandante do Exército, o general Tomás Paiva, que já era comandante da força em março de 2023, alegando que os militares caminham em direção à adoção de doutrinas à esquerda. “Esse nome não somente evita excitar os pruridos do senhor cmt [comandante] do EB [Exército Brasileiro] como se aplica perfeitamente aos tempos trevosos que a Força vem vivendo hoje em sua transição rumo ao bolivarianismo”.
O texto vai além: “as pessoas que hoje comandam o EB não são donas da Força”. De maneira subjetiva, o texto diz que os comandantes do Exército não teriam um verdadeiro comando da tropa, o que poderia ser interpretado como um convite à quebra de hierarquia na caserna, segundo comentário de fontes militares consultadas pela reportagem.
Procurado, Gobbo confirmou a autoria do texto à Pública. “Esse texto foi publicado no ano passado, no dia 31/03/2023. Não tenho nada a comentar sobre ele. Ele é claro e explícito”, respondeu. Outras versões do manifesto também foram publicadas sem data e autoria.
Gobbo era um tenente da 4a Companhia de Manutenção Leve em 1964 quando participou ativamente do golpe nas fileiras do general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª Divisão de Infantaria, sediada em Juiz de Fora (MG), que na noite de 31 de março mandou suas tropas marcharem em direção ao Rio, precipitando o golpe que vinha sendo articulado por generais, empresários e governadores de oposição ao governo Jango.
Gobbo foi da turma da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) de 1962 e chegou a ser cotado para assumir o Ministério da Educação em 2020 durante o governo Bolsonaro. Ele é autor do livro Dez anos de PT e a desconstrução do Brasil, que é uma espécie de ensaio anti-PT com críticas às políticas públicas como as cotas raciais e o programa Mais Médicos.
As mensagens de comemoração do golpe nos grupos privados de militares no WhatsApp e Telegram contrastam com a postura do governo Lula, que vetou um evento sobre o tema planejado pelo Ministério dos Direitos Humanos. Lula disse ainda numa entrevista que “não vai ficar remoendo” o passado.
Como revelado pela Pública, Lula ainda não recebeu em seu mandato os familiares de mortos e desaparecidos políticos. Ao mesmo tempo, não há previsão para que a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos volte a ser restabelecida em seu governo.