EP 4 Por que só agora?
O episódio final da primeira temporada de CASO K – A História Oculta do Fundador da Casas Bahia revela como Samuel Klein conseguiu passar décadas abusando de meninas e mulheres sem ser investigado pela polícia, questionado pela Justiça ou exposto pela imprensa. Durante as investigações sobre o esquema de exploração sexual envolvendo o empresário, os repórteres descobriram que duas de suas vítimas, ao tentarem denunciar o que viveram, foram acusadas de extorsão e formação de quadrilha.
O caso chegou à Agência Pública depois de ter passado pelas mãos de jornalistas de outros veículos de comunicação, inclusive da chamada grande imprensa, que entenderam a gravidade da denúncia e tentaram publicar a história, mas não conseguiram. Este episódio se debruça sobre a atuação da Justiça e da imprensa diante das graves denúncias contra o fundador da Casas Bahia, que morreu com a reputação de rei do varejo, sem nenhuma menção aos seus crimes.
“A morte de Samuel Klein acabou com um ponto final no esquema de exploração sexual dele, mas não apagou os rastros de dor e nem desfez os traumas deixados nas mulheres que sofreram abusos do empresário”, afirma a jornalista da Pública Mariama Correia.
Confira abaixo o roteiro do episódio na íntegra:
[Clarissa Levy]
Esse episódio começa com uma imagem. A foto mostra uma mulher, branca, de olhos claros, aparentando uns 20 anos de idade, com os cabelos pretos presos em um rabo de cavalo. Usando uma camiseta larga, de algodão, na cor vinho, essa mulher olha diretamente para o fotógrafo. No rosto, tem uma expressão de desalento.
Entre seu rosto e a lente que captou a imagem, a gente vê grades. Grades de ferro. A imagem mostra uma mulher presa, fotografada, literalmente, atrás das grades. Esse registro foi feito perto das 22h do dia 21 de janeiro de 2009.
[Thiago Domenici]
Essa é uma foto nunca divulgada. A mulher na imagem tem uma amiga, essa amiga era adolescente quando aquele momento foi registrado. As duas, juntas, viveram uma espécie de trama cinematográfica. Já vamos contar essa história. Esse caso vai ajudar a gente entender como Samuel Klein passou décadas abusando de meninas e mulheres sem jamais ser incomodado nem pela polícia, nem pela justiça e nem pela imprensa.
[Clarissa Levy]
Essa série aborda casos de abuso e exploração sexual de meninas e mulheres e pode gerar gatilhos pelo conteúdo descritivo de situações de violência. Tenha cuidado ao ouvir.
[Mariama Correia]
Olá, bem vinda, bem vindo. Este é o último episódio desta temporada de Caso K – a história oculta do fundador da Casas Bahia.
No episódio de hoje, elaborado todo a partir de investigações que fizemos para este podcast exclusivamente, vamos destrinchar a busca por justiça e a repercussão – ou o silêncio – da mídia sobre as denúncias que pesam contra Samuel Klein.
Se você chegou agora nessa série, vale voltar desde o episódio 1, pra não perder o fio da história.
[Vítima]
Entrando no apartamento 1206, ele puxou meu rosto e me deu um beijo na boca, tipo selinho, passou a mão nos meus seios, riu e disse: tudo durinho. Ele perguntou: você é virgem? Respondi, assustada, que sim, até porque eu iria fazer 14 anos no mesmo ano.
[Mariama Correia]
Esta série é baseada em uma investigação feita pela equipe de repórteres da Agência Pública, durante os últimos 4 anos. Entrevistamos mais de 60 pessoas – dentre vítimas e testemunhas, como ex-funcionários da Casas Bahia, ex-seguranças da família Klein, advogados e também colegas jornalistas. Mais de 5 mil páginas de processos, fotografias e vídeos sustentam o que as vítimas relataram e nossa apuração confirmou.
[Arquivo aniversário Samuel] – voz feminina
“Seu Samuel, o que o senhor acha dessas gatinhas maravilhosas? – Samuel – Ah, o melhor. Não tem palavras. Não tem palavras.”
[Mariama Correia]
Eu sou a jornalista Mariama Correia.
[Thiago Domenici]
E eu sou o Thiago Domenici, jornalista aqui da Pública.
[Clarissa Levy]
E eu sou a Clarissa Levy e também te acompanho nesta série. Episódio 4. Porque Só Agora?
[Thiago Domenici]
Estamos em janeiro de 2009. Pra te situar no tempo, aquele ano a gente tinha o Lula como Presidente do Brasil, ele tava no seu segundo mandato; também esse janeiro representava pro mundo a posse do primeiro presidente negro dos EUA, Barack Obama.
[Arquivo TV]
“Congratulation, Mr. president.”
[Thiago Domenici]
Já passava das oito da noite quando Marcela e Adriana – vamos chamá-las assim para proteger suas identidades – foram levadas para a carceragem de uma delegacia em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. São Bernardo é uma cidade vizinha a São Caetano, onde fica a sede das Casas Bahia.
Marcela é a mulher que descrevemos no início do episódio, a da foto. Ali ela tinha 25 anos. A amiga dela, Adriana, tinha 16. Segundo o Boletim de Ocorrência elas foram presas. A acusação? Extorsão e formação de quadrilha. Esse caso chegou pra gente ainda no final de 2020, quando a gente tava lendo um monte de processos judiciais com acusações de abusos sexuais contra Samuel.
No processo, a Adriana, de 16 anos, acusava o rei do varejo de tê-la estuprado meses antes na mansão de Angra dos Reis. Como tantas outras meninas e mulheres, ela chegou lá em Angra no helicóptero que partiu do heliponto da sede da empresa, em São Caetano do Sul.
Era outubro de 2008. Ela conta que foi chamada no chalé do fundador da Casas Bahia durante a noite. Lá dentro, um enfermeiro teria aplicado uma injeção com estimulante sexual no empresário, que tinha 85 anos.
Adriana diz em depoimento que Samuel fez várias promessas de ajuda financeira, incluindo estudos em uma boa escola, apartamento e carro. No depoimento ela diz assim:
[Vítima]
Ele me pegou à força, rasgou minha roupa e me violentou. Não adiantava gritar. Eu chorei e fiquei sangrando direto na quarta e quinta-feira.
[Thiago Domenici]
Adriana contou que o mesmo enfermeiro que aplicou o estimulante sexual em Samuel a ajudou por causa do sangramento causado pelo estupro.
Adriana conta que foi proibida de ir ao médico e de voltar a São Paulo, e que passou mais quatro dias presa em Angra. Ela diz que mesmo machucada teria sido violentada uma segunda vez.
Num rarissimo depoimento à Polícia Civil de São Paulo, Samuel Klein reconheceu que as jovens, Adriana e Marcela, estiveram com ele em Angra, mas negou a acusação de estupro e que Adriana tivesse menos de 18 anos. Foi aí que Marcela e Adriana resolveram, então, procurar um advogado.
[Ricardo Moscovich]
O Paulo, que era produtor, chegou através do Paulo. Ele falou: meu, tá tendo um caso assim, assim e assim. Uma menina veio me procurar, que foi violentada e estuprada. Aí ela falou: você pode fazer alguma coisa?
[Thiago Domenici]
Esse é Ricardo Moscovich, advogado de Adriana e Marcela naquela época.
[Ricardo Moscovich]
Nós vamos fazer um boletim e entrar com uma ação contra o Samuel Klein.
[Thiago Domenici]
Moscovich recebeu fotos, exames médicos e até a gravação de uma ligação telefônica entre Marcela e o empresário. Mas a gravação ele diz não ter mais. No entanto, os registros das conversas existem nos arquivos da justiça que a gente teve acesso e já já a gente vai mostrar pra vocês.
Pra gente o Moscovich contou que não deu nem tempo do processo contra Samuel ser distribuído na justiça quando ele foi procurado por alguém. Esse alguém era Nairo Ferreira de Souza, o presidente, em 2008, do time de futebol São Caetano.
[Ricardo Moscovich]
Eu entrei com a ação. Aí que teve o problema. Eu entrei com a ação dia 10, um exemplo. Eu entrei com a ação um dia x e dois dias depois apareceu no meu escritório o Nairo, presidente de São Caetano. Ligou: eu posso falar com você, eu sou o Nairo, presidente de São Caetano, tal, tal? Eu não tinha feito relação, né? E ele: podemos conversar? Temos um caso em comum. Eu falei: tá bom!
Eu conheço jogadores de futebol e até podia ser. Ele falou: você está processando o Samuel Klein, pode ser feito um acordo. Eu falei: mas estou com o processo, está lá, foi distribuído e tal. Ele disse: Não, ele quer fazer um acordo, quer fazer um acordo, quer fazer um acordo.
[Thiago Domenici]
A essa altura ele já tinha sido notificado?
[Ricardo Moscovich]
Nada, não dava tempo.
[Thiago Domenici]
Moscovich conta que Nairo se apresentou como “sócio do filho de Samuel”. No caso aí, o filho é o Saul Klein, que durante um bom tempo foi mesmo investidor do time do ABC. O Nairo até contou em uma reportagem pro UOL de 2023 que ele foi procurado por um homem que se passava por empresário de jogadores e que esse cara tinha um CD com conteúdo explosivo.
Nairo diz que o CD foi entregue para Saul Klein. E que foi a pedido de Saul que ele então intermediou algumas conversas iniciais com Moscovich.
[Ricardo Moscovich]
Aí apareceu um advogado, o Rossetti. Mas quem estava intermediando era esse, o Nairo e o Rossetti: Ó, nós vamos fechar um acordo. Eu falei: tá bom. Você passa a proposta. Aí, eles falaram na época, eu não lembro quando eles colocaram no papel, tinha ficado 250 mil reais. Eles tinham proposto. Ele falou: ela aceita 250 mil? A gente resolve lá.
[Thiago Domenici]
O João Rossetti Riva, que ele cita, era o advogado de Samuel na época.
[Thiago Domenici]
Esse Rossetti foi no escritório e falou: nós vamos te pagar. O Samuel quer falar com você e vai te pagar o valor. Você chama a menina, pode levar a menina e tal, tal. Eu falei: não, eu vou lá, nós vamos fazer petição. Levei a petição, aí eu saí do meu escritório, a menina nem sei onde tava. Fui encontrar com ele e levei a petição: as partes compuseram, amigavelmente, a seguinte forma, valor de R$250 mil dividido em X parcelas.
[Thiago Domenici]
Houve, então, um acordo extra-judicial. Moscovich diz que nesse momento, já com o acordo fechado entre eles, combinaram um encontro numa churrascaria. A ideia era assinar o documento, receber a grana, entregar as provas – fotos e gravações – e fim de história.
[Ricardo Moscovich]
Ele falou: o Samuel Klein não vai poder vir. Está aqui o valor, está aqui a petição. Eu assinei.
[Thiago Domenici]
O problema é que o que se viu em seguida foi uma cena de filme policial. Moscovich conta que foi tudo uma armação dos Klein, dos seus advogados e da Polícia, ao sair da churrascaria.
[Ricardo Moscovich]
Saí, fui pegar o carro e aí já chegou: tá preso, tá preso, tá preso.
[Thiago Domenici]
Moscovich não só foi preso em flagrante, como foi acusado de extorsão.
[Ricardo Moscovich]
Eu falei: estou preso por quê? Aí ele falou: você sabe o que que tem aí? Eu falei: tem dinheiro que ele tá pagando. O advogado está me dando o dinheiro por causa do processo que eu entrei contra o Samuel Klein.
[Thiago Domenici]
Esse dinheiro que o Moscovich carregava estava guardado em duas caixas de whisky.
[Ricardo Moscovich]
Chegou oito ou dez policiais, era muita gente. Eu parei na churrascaria, imagina você estar na churrascaria, pede o carro pra ir embora, levarem o carro para o estacionamento. Aí quando trouxe, pararam o carro na porta. Quando eu levantei para ir, já tinha a polícia saindo de dentro do carro, já tinha atrás, já tinha na rua.
[Clarissa Levy]
Ao mesmo tempo que Moscovich era ali preso, na frente da churrascaria, carregando as caixas de whisky, a Marcela e a Adriana foram detidas em outro lugar, lá na casa delas. As duas também foram levadas para delegacia em São Bernardo do Campo. Foi ali, atrás das grades, que a foto que eu descrevi no começo do episódio, da Marcela, foi tirada.
A Marcela e a Adriana foram liberadas da delegacia no dia seguinte. Mas, Moscovich só foi liberado quatro dias depois, quando a justiça entendeu que não havia crime da parte dele. Mas todos eles tiveram celulares, documentos, computadores e cartões de banco apreendidos e periciados e passaram a ser investigados em um inquérito que só acabou arquivado em 2010.
Um inquérito que, veja só, tratava Samuel como uma “vítima protegida”, fazendo com que seu nome não constasse publicamente no processo. Enquanto isso, a acusação de estupro de Adriana contra Samuel nunca foi investigada, nunca virou um inquérito.
Até hoje Moscovich busca uma reparação pela acusação de extorsão e pelos dias que ficou preso, tentando uma indenização por danos morais na justiça. Ele processa o espólio de Samuel Klein, num caso que ainda não recebeu uma sentença final.
[Ricardo Moscovich]
Mas a gente fica, mais pela exposição, por tentarem, por eles tentarem inverter uma situação criada para abafar.
[Mariama Correia]
Mas ainda não acabou. Lembra do tal CD com gravações comprometedoras contra Samuel? Esse material físico sumiu, e não há registro dele na justiça. Mas a gente conseguiu as transcrições das conversas que mostram Lúcia, apontada pelas vítimas como uma das aliciadoras do esquema, conversando com Adriana, a adolescente de 16 anos.
Foram duas ligações telefônicas. Nesta primeira, reproduzimos o diálogo entre Adriana e Samuel. Ela fala do momento em que foi estuprada por ele aos 16 anos. “Não é o caso, sou eu, é diferente. Você lembra que você tirou a minha não lembra?” Ela se refere à virgindade e Samuel respondeu, segundo consta na gravação: não, agora acontece que não amarrei você para se entregar, você veio espontânea. Então acho que quem vem espontânea não é nada, vamos esperar, vamos conversar.
[Clarissa Levy]
Em outro trecho da transcrição, Samuel diz que vai pedir que Lúcia – conhecida como a fiel enfermeira – entre em contato com Adriana.
[Reprodução gravação Samuel Klein]
“Agora, isso não é nada, você é jovem, você tem direito de viver, de namorar com quem você achar melhor, estudar, fazer academia, tudo. Eu vou falar com a Lúcia, secretária e ela liga pra você. Ela não está aqui agora, ela liga pra você e fala com você. Eu vou falar com ela que você ligou, tá bom, então falou, não me queira mal que eu não quero mal você não, e que eu vou poder ajudar, ta bom?”.
[Mariama Correia]
Com todas as vítimas, Samuel falava nesse tom paternal. Nos arquivos da Justiça, também está registrada a transcrição da ligação entre Adriana e Lúcia. Adriana diz: Eu sei, Lúcia, mas o que eu vou fazer agora, ele me dá cinco mil e quer que eu volte pra Porto Alegre, largue tudo que eu fiz aqui, o contrato do colégio, como eu vou fazer isso? Em que ano você está no colégio? A Lúcia pergunta.
Adriana: segundo ano.
Lúcia: segundo ano do quê?
Adriana: do ensino médio.
Lúcia: e quantos anos você tem?
Adriana: dezesseis.
Lúcia: quê?!
Adriana: dezesseis.
Lúcia: dezesseis anos?! E que ano que você nasceu?
Adriana: noventa e dois.
Lúcia: e por que a aliciadora trouxe você de menor?
Adriana: porque o Samuel quis que eu fosse.
[Thiago Domenici]
Eu tentei falar com a Adriana, a adolescente de 16 anos na época, mas ela nunca respondeu minhas mensagens. Também procurei a Marcela, a da foto. Ela disse que não queria falar comigo, mas me escreveu o seguinte: Eu não tenho interesse de falar sobre isso, por ser um trauma e gatilho gigantesco em nossas vidas. Mas ao invés de ir atrás das vítimas, deveriam focar nos culpados. Samuel morreu (deve estar ardendo no quinto dos infernos), mas ficaram pessoas vivas e quem eram responsáveis diretos naquilo tudo, como sua secretária pessoal, Lucia. Enfim, nada mais a dizer! Sorte pra você.
[Clarissa Levy]
Pra esse podcast, a gente foi tentar entender o que aconteceu, afinal porque nada tinha sido publicado? Isso porque o próprio Moscovich questionou isso durante a entrevista que nos deu.
[Ricardo Moscovich]
Chamei a Folha, que foi no meu escritório. Fui em jornais e ninguém. Só veio, acho que foi a Folha, foi no escritório, lá em Santo Amaro. Fui lá e falou, ó, nós não podemos fazer. A matéria é boa, mas não podemos fazer o que você quer. Nós não podemos publicar, porque o que nós aqui é a publicidade.
[Clarissa Levy]
A gente tentou ter certeza da informação.
[Thiago Domenici]
E o senhor tem certeza que era alguém da Folha de S. Paulo?
[Ricardo Moscovich]
Foi a Folha, ninguém mais.
[Thiago Domenici]
O senhor lembra se o senhor procurou televisões ou coisas do tipo?
[Ricardo Moscovich]
Procurei, meu, liguei, mandei mensagem para todo mundo. Ninguém, ninguém.
[Thiago Domenici]
Bom, essa parte é importante sobre o papel da imprensa, porque nos trouxe muitas dúvidas desde o início da investigação. Com essas informações de Moscovich, a gente precisava de mais informações. A gente precisava ver se a história fazia mesmo sentido.
Por isso, eu fui atrás de jornalistas que podiam saber desse caso e depois de algumas tentativas frustradas, enfim encontrei dois repórteres dispostos a contar o que sabiam. Eles só pediram pra gente não citar seus nomes. E vamos respeitar.
Entre 2008 e 2009, os dois trabalhavam em grandes emissoras de tv quando a Adriana acusou Samuel Klein de estupro O que eles me contaram em resumo, foi assim: em 2009, eles dois tiveram acesso a mesmíssima história que acabamos de te contar sobre a Marcela, Adriana, o Moscovich e Samuel Klein. Como jornalistas sérios que são, eles entenderam a gravidade da denúncia e tentaram publicar a história nos canais de tv que eles trabalhavam. E o que aconteceu? Foram proibidos.
Quem me deu a foto de Marcela que descrevemos lá no início do episódio foi justamente um desses jornalistas. O Luiz, vamos chamar ele assim, tinha essa imagem guardada até hoje. E até hoje ele se diz frustrado com a proibição dos chefes que decidiram abafar a história. Um dos policiais que prendeu o advogado e as mulheres foi quem ligou para o Luiz naquela mesma noite da prisão pra contar essa história.
[Depoimento jornalista]
O Policial que me deu a foto estava revoltado, porque ele sabia de alguma coisa mais. Ou ele sabia que, na verdade, isso não era uma extorsão, ou ele estava revoltado porque via que, mesmo sendo extorsão, Samuel Klein era um abusador.
[Thiago Domenici]
Esse é o jornalista Luiz, que teve a voz alterada para não ser identificado. O Luiz diz que foi esse policial quem tirou a foto de Marcela atrás das grades sem ninguém saber. Ele acha que a intenção do policial ao chamar alguém da imprensa, no caso ele, Luiz, era pra desmontar a acusação de extorsão. E isso só ia acontecer se a história fosse mesmo a público e ganhasse repercussão.
Além da foto, uma cópia do Boletim de Ocorrência na própria delegacia. Ele foi até lá naquela noite. Ele me mostrou o material. E as informações são as mesmas que consegui no processo judicial. O problema é que ao tentar expor a história na emissora nacional de grande audiência onde Luiz trabalhava, ele levou um não: “Nem morto,nem morto que eu vou dar essa história.”
[Thiago Domenici]
Essa foi a resposta do chefe sobre publicar a história. Perguntei pro Luiz se nada mais havia sido dito.
[Depoimento jornalista]
Ah, ele falou que não ia veicular porque era o maior anunciante. E de fato, a Casas Bahia naquela época, eram os maiores anunciantes de todos os veículos de comunicação, pelo menos no estado de São Paulo.
[Thiago Domenici]
Sem autorização para contar esse caso na TV, o Luiz tentou passar as informações para outros colegas, de veículos impressos e outras emissoras. Mas não teve jeito. Ninguém quis publicar. Ninguém pôde publicar.
Conclusão, justiça, imprensa e polícia nada fizeram. E mesmo com evidências e apuração jornalística, nada veio a público. E Samuel seguiu sendo tratado como vítima, e não como investigado.
[Thiago Domenici]
Agora eu preciso fazer um resumo rápido pra gente não se perder. O que te contamos até agora é um caso da virada de 2008 para 2009 em que Samuel Klein, que foi acusado de estupro por uma adolescente, virou o jogo e acusou as vítimas de extorsão. Um caso que envolveu uma tentativa de acordo extrajudicial e que se transformou numa prisão das denunciantes e de seu advogado.
E no caso da imprensa, como a gente confirmou, nada foi publicado. Os jornalistas até tentaram, mas foram proibidos. Agora aqui vou dar um salto no tempo. A gente vai sair de 2008 e ir para 2020.
[Thiago Domenici]
12 anos depois, a história se repetiria, agora com outro jornalista. Ele reuniu documentos e evidências de denúncias de crimes sexuais contra Samuel Klein e também não conseguiu publicar na TV onde trabalha. Esse jornalista, como o Luiz, também não queria morrer com a história na mão. Ele sabia da gravidade do caso e que a história precisava ser contada.
Então ele resolveu passar as informações para um jornalista com chance de publicar e é aí que a Agência Pública entra nessa história.
[Thiago Domenici]
Lá no início do primeiro episódio a gente falou o que estava tentando descobrir com esse podcast. Era uma pergunta que apareceu pra nossa equipe durante toda a investigação, uma pergunta que ficou martelando nas nossas cabeças todo esse tempo. Por que só agora?
Os caminhos para buscar essa resposta envolveram diretamente a imprensa, a escrita e a televisiva. Era outubro de 2020 quando recebi uma mensagem no whatsapp. Um amigo jornalista escreveu assim: o assunto é sigiloso.
“A Agência Pública tem condições de meter a mão nesse vespeiro?”. “Não estou conseguindo por aqui”.
Entendi que aquela mensagem de zap tinha a ver com uma pauta importante.
Liguei pro meu amigo, que chamaremos de Joel. Ali no papo ele me contou que vinha tentando emplacar uma história forte no veículo de tv em que ele trabalhava. Mas que não conseguia. A história não ia pra frente.
Ele me explicou que tinha recebido a informação de que um grande empresário era investigado por crimes sexuais. Ele se referia a Saul Klein, o filho de Samuel. Ele tinha reunido um material sobre o caso, mas estava sendo desautorizado pelos chefes a seguir na investigação.
O Joel me contou ainda que outros membros da família Klein poderiam estar envolvidos em denúncias de crimes sexuais. “Talvez o pai, o fundador da Casas Bahia”.
Ele me mandou algum material com informações sobre processos judiciais contra o patriarca e fundador da Casas Bahia, Samuel Klein. Avaliei que as informações tinham um potencial devastador se fossemos a fundo na apuração. Mas precisaríamos de tempo.
Foi tudo muito rápido naqueles dias. Lembro que avisei a jornalista Natalia Viana, diretora executiva da Pública, e ela sugeriu que também a repórter e editora Andrea Dip, acostumada a fazer coberturas que envolvem temas de gênero e infância, também entrasse na apuração com a gente. Combinamos uma conversa entre nós três e Joel.
[Andrea Dip]
Pra gente tava claro que a grande imprensa não ia ter coragem e nem interesse em investigar essa história. Então, ou a gente contava, ou ninguém mais ia fazer isso.
[Thiago Domenici]
Essa é a Andrea Dip. Enquanto isso, comecei a organizar o material e aprofundar algumas pesquisas nos diários oficiais da justiça. Depois da conversa com Joel, Natália e Andrea concordavam: era um escândalo e tínhamos que apurar.
[Natália Viana]
Como uma jornalista mulher a gente ouve uma história dessa até arrepia na pele e é uma coisa que eu sempre penso como a maioria das redações brasileiras são dirigidas por homens, o impacto desse tipo de história neles, não é o mesmo.
[Thiago Domenici]
Essa é a voz de Natália Viana.
[Natália Viana]
Quando eu soube dessa história imediatamente eu sabia que a gente tinha que investigar. Todo mundo tinha que ter pelo menos o direito de ouvir essas mulheres.
[Thiago Domenici]
Então a gente criou um núcleo investigativo com seis jornalistas, Andrea Dip, Clarissa Levy, Mariama Correia, Rute Pina, Ciro Barros e eu.
A gente ficou focado nessa história durante cinco meses. Falamos sobre isso lá no primeiro episódio. Mas a gente precisava garantir mais repercussão. Ampliar o alcance das nossas matérias. E aí, pouco antes de publicarmos a série, em Abril de 2021, procuramos veículos que pudessem se interessar em contar a história junto com a gente.Foi a diretora de comunicação da Pública, Marina Dias, que fez essa ponte com os veículos de imprensa.
[Marina Dias]
O El País já era um parceiro nosso de muito tempo, já publicava muitas das nossas reportagens. Eu liguei para Carla Gimenez. Acho que o veículo precisa confiar muito na gente para para dar uma denúncia gravíssima dessa, então ele precisa saber e ter certeza que a nossa apuração é muito bem feita.
[Thiago Domenici]
A jornalista Carla Jimenez que você ouviu no episódio 2, contou que 2001, quando era repórter da Agência Estado, conheceu o quartinho anexo à presidência da Casas Bahia, lá em São Caetano do Sul. Uma informação chave para nossa investigação.
Agora ela volta para nos contar, como 20 anos depois, em 2021, já como diretora do El País Brasil, topou publicar a nossa reportagem.
[Carla Jimenez]
O El País Brasil era um jornal inicialmente mantido pela sede espanhola. Aqui no Brasil, a gente não tinha amarras com anunciantes. Quando surgiu a oportunidade de publicar eu vi que ninguém mais falava daquilo, não sendo uma investigação nossa a gente, primeiro eu fui pega de surpresa segundo me surpreendeu o personagem e a magnitude da denúncia, sabendo que precisava ser dada, eu obviamente liguei para um diretor do El País avisando porque ele era um dos maiores anunciantes do Brasil, né? Então pelo menos eu precisava informar a sede. Quando eu perguntei, expliquei o quadro e falei tudo que ele falou: publica.
Eu ler a matéria e ver o que tinha ali, tinha um incômodo pela empatia com as mulheres e o incômodo também de saber que era um cara que tinha sido tratado como herói. Inclusive por mim, nas reportagens sobre economia, sobre empresários brasileiros, né? Então, todo mundo disputava uma entrevista com ele e conhecê-lo pessoalmente. Era um mito para o mundo econômico e que você o ver um estuprador de adolescentes pobres, é realmente muito chocante.
[Clarissa Levy]
Mas, claro, nada é preto no branco. Falamos aqui nesse episódio de dois casos em que anteriormente as denúncias contra Klein chegaram em TV’s e jornais, com evidências e documentos, mas nada foi publicado. Só que o acobertamento da mídia nessa história não aconteceu somente nesses dois casos que a gente detalhou. Não.
[Rute Pina]
Eu lembro que bem no início da apuração eu fui ligar pra um advogado, que representava 6 vítimas. A gente estava atrás dele porque ele tinha um dos poucos processos que ainda corriam na justiça, esse processo ainda não tinha sido considerado prescrito.
[Clarissa Levy]
Essa é a Rute Pina. Repórter que trabalhou com a gente aqui na Pública nesta investigação.
[Rute Pina]
Quando perguntei pro advogado se a gente poderia conversar com as vítimas que ele representava, eu lembro que ele respondeu que não sabia se poderia colocar a gente em contato com as mulheres e o motivo é que ele já tinha tido um problema anterior com a imprensa. O Antônio Sergio de Aquino, advogado, disse pra gente que em 2012, um repórter do jornal tinha ido até seu escritório. O Aquino tinha reunido todas as vítimas que toparam falar, e elas passaram uma tarde revivendo os traumas, contando tudo. Mas nada foi publicado. Depois dessa, ele me disse, ficava complicado tentar acionar as vítimas de novo, pra falar com a imprensa.
[Clarissa Levy]
Esse caso que a Rute conta, me lembra de uma outra história que eu e o Ciro ouvimos durante a apuração, com outras vítimas. Uma delas, chegou a mostrar pra gente um cartão de um produtor de uma grande emissora de TV, a Globo, que teria conversado com ela ainda em 2009, começado a apurar a história, mas nunca mais apareceu
[Mariama Correia]
Só pra gente entender a dimensão da presença da Casas Bahia na estrutura do esquema de anunciantes da mídia brasileira. Dados de 2007, apresentados na biografia oficial de Samuel Klein, que foi escrita por Elias Awad, mostram que a política de propaganda usada na Casas Bahia, era uma das bases do modelo de negócio. Praticamente, desde a fundação da empresa, 3% do faturamento bruto ia para ações de marketing, publicidade e propaganda. Na primeira década dos anos 2000, a empresa já era a maior anunciante do país.
Durante o ano de 2007, foram produzidos mais de 4 mil filmes, 7.500 spots, 20 vinhetas e perto de 21 mil anúncios impressos e todo esse material era veiculado em 36 emissoras de TV e 505 rádios. No caso da mídia impressa, os anúncios estampavam as páginas de 180 jornais e 33 títulos de revistas. E aí, com ações como essa, a Casas Bahia aparecia em listas de “Empresas Mais Admiradas no Brasil” e de “Marcas que Mais Respeitam o Consumidor”.
[Clarissa Levy]
A Casas Bahia era essa gigante do mkt brasileiro, nos jornais, nas TVs. E isso parece ter relação com o que aconteceu quando enfim a gente publicou a nossa reportagem com as denúncias. Foi mais do mesmo. Ainda que articulistas mulheres e jornalistas tenham comentado o caso nas suas redes pessoais, não houve repercussão jornalística noticiosa. Não teve nenhum CNPJ de jornal publicando nenhuma manchete, nenhuma nota de rodapé que desse qualquer sinal de que um dos mais conhecidos empresários do país estivesse sendo acusado de crimes sexuais por mais de 10 mulheres.
Foi como se isso não fosse uma notícia. Apesar de a Casas Bahia ser uma empresa de capital aberto, negociada em bolsa, era como se isso não fosse um fato relevante. No dia seguinte à publicação o que vimos foi: o silêncio da grande imprensa.
[Cristina Fibe]
Mas o caso Samuel Klein, eu me lembro, foi pandemia, né? Eu estava trabalhando de casa.
[Clarissa Levy]
Essa é a Cristina Fibe. Ela estava trabalhando no jornal O Globo como editora chefe interina no dia da publicação da nossa matéria.
[Cristina Fibe]
Eu estava como editora de sociedade nesse dia. Então, eu fazia a reunião que decidia com os editores da cabeça, que a gente chama ali, a chefia do jornal. A gente decidia em que temas a gente ia investir como produção, né? Então eu fiz a reunião da chefia do Globo, falei das coisas todas de saúde e disse, bom, gente, mas vocês leram a Pública? Tem a denúncia contra o Samuel Klein, né?
Tem que priorizar esse assunto, né? Eu tinha passado a madrugada lendo, a reunião era às sete da manhã, eu estava assim, ainda meio em choque com tudo. Então, eu fui tratada, tipo, bom, eu tratei como óbvio, né? A gente vai ter que entrar nessa história, é uma das prioridades do dia.
[Clarissa Levy]
Acho que aqui vale explicar uma coisa do funcionamento do jornalismo, pra gente acompanhar o que Cris tá falando. Na imprensa, é comum que um determinado jornal dê um furo, expondo uma história e na sequência, os outros jornais, por considerarem aquilo uma notícia fundamental, repercutem a história mesmo sem ter uma apuração própria.
É uma prática comum, que visa informar o leitor bem, ainda que a notícia tenha surgido em outro veículo. Pois é. O que a Cris propôs na reunião do Globo foi exatamente isso. Publicar uma pequena matéria, informando que Samuel Klein era acusado de crimes sexuais, citando a reportagem que tinha sido publicada, e dando um pequeno contexto sobre os envolvidos. Ela disse que, como editora, era o caminho usual, comum.
[Cristina Fibe]
Seria rápido e praxe fazer isso não seria nada fora da curva, mas a resposta veio: ‘não vamos dar exatamente o que a agência pública deu. Vamos ter que avançar “. Quando você fala vamos avançar e vamos acessar os processos ou seja a gente coloca coisas impossíveis no caminho do tipo, bom tá sob sigilo e a Pública batalhou meses a gente sabe que isso a gente não vai conseguir.
Então nos bastidores a gente falava disso assim: “bom , gente, não tão querendo dar””. E ninguém verbalizou pra gente por que não estão querendo dar. A gente não sabia porque não estavam querendo dar. Só que a gente como jornalista, mesmo com cargo de confiança, num grande veículo, a gente fica amarrado às decisões da chefia. Se a decisão da chefia é não, é não.
[Clarissa Levy]
E foi isso. Não deram. Nenhum jornal impresso, nenhuma televisão nacional, ninguém nunca falou desse assunto em sua cobertura diária até a publicação deste podcast.
[Cristina Fibe] A gente viu o Samuel Klein sair com uma baita denúncia da agência pública, imensa, detalhada, chocante, absolutamente chocante e ele ficou intocado na grande imprensa. A gente cobrou, internamente, nos grandes jornais, tenho certeza de que vários colegas e várias colegas minhas reclamaram disso e tentaram batalhar pela pauta mas foi silenciado. Resultado, hoje você fala do caso Klein na rua com amigos e amigas letrados que acompanham a imprensa que não são pessoas totalmente off e as pessoas não sabem até hoje do que a gente está falando.
[Thiago Domenici]
Além das reportagens do El País Brasil e das que saíram no UOL e de um programa na CNN, a Folha de S. Paulo foi o único grande jornal impresso a publicar a história com ‘apuração própria” um mês depois de negar republicar nosso material. Vale relembrar aqui que a Agência Pública, sem fins lucrativos e que distribui reportagens investigativas gratuitamente e a Folha já havia republicado nossos materiais anteriormente.
No caso Klein, já estávamos com a publicação acertada com a Folha, inclusive com o texto final editado e aprovado pelos editores do jornal. Seria uma versão reduzida, para publicação no online e no impresso. Enviamos, inclusive, uma pequena amostra do material da nossa apuração para que o jurídico do jornal pudesse ficar seguro. Era uma apuração sólida, eles concluíram. Por isso me surpreendi quando recebemos a notícia de que, de última hora, a reportagem não seria mais publicada.
Na semana em que vieram a público pela primeira vez denúncias contra Klein, a Folha não noticiou uma linha sobre o assunto. O silêncio gerou, no fim de semana, um artigo devastador da ombudsman do jornal à época, Flávia Lima, que me procurou para conversar sobre o que tinha acontecido.
No dia 24 de abril de 2021, ela deu o seguinte título para sua coluna “Sobre crimes sexuais invisíveis”. Lá manifestou sua estranheza pelas revelações da Pública não terem sido noticiadas na imprensa. A certa altura, ela escreveu “Casos como esse parecem envolver engrenagens que operam por anos sem que seus responsáveis sejam incomodados — nem pela polícia nem pela imprensa. O suposto esquema de exploração sexual descortinado pela Pública corria em paralelo, muitas vezes dependente do negócio principal. É estranho que caso tão bem apurado só apareça na Folha em artigos de opinião, ou seja, não exista em forma de notícia. Republicar a íntegra de um caso como esse pode ser uma escolha. Incluí-lo na cobertura noticiosa é uma obrigação.”
[Clarissa Levy]
Um mês depois dessa coluna da Ombudsman, publicaram uma matéria na Folha entrevistando 2 vítimas e fizeram um episódio do podcast Café da Manhã sobre o caso. Mas a cobertura da imprensa ficou nisso. A população não pode assistir, ler, ouvir notícias, nada sobre Klein em nenhum outro lugar ou veículo.
[Cristina Fibe]
As vítimas estão acompanhando essa repercussão, as vítimas estão vendo que não está dando em nada e as outras que ainda não falaram estão se acovardando por causa disso. E mais do que se acovardar, todas as vítimas estão sentindo as suas palavras descredibilizadas. Não levadas a sério.
[Thiago Domenici]
Aqui novamente a Cris Fibe, ex editora do jornal O Globo.
[Cristina Fibe]
Eu vejo que poderia ter acontecido o mesmo que aconteceu com João de Deus, João Teixeira de Faria, no caso Klein.
[Clarissa Levy]
A Cris Fibe foi uma das jornalistas que apurou por meses as denúncias contra João Teixeira de Faria, o João de Deus, e revelou o caso.
[Cristina Fibe] O Ministério Público disse “opa, a gente vai ter que fazer uma força tarefa para cobrir isso aqui” porque o tamanho que parecia ter não é longe do tamanho que o caso Klein parece ter. Não tá longe.
Porque uma força tarefa não é feita no caso Klein se a gente também tá falando de abusos em série, de suspeita de abusos em série?
[Arquivo TV]
“Com ajuda de uma tradutora, as promotoras da força tarefa do Ministério Público do Estado de São Paulo, ouviram mãe e filha através de videoconferência. As vítimas relataram por duas horas os abusos que teriam sofrido há oito anos, em Abadiânia, no interior de Goiás.”
[Arquivo TV]
“O médium conhecido como João de Deus foi condenado a mais 118 anos de prisão por estupro, estupro de vulnerável e abuso sexual mediante fraude. Ao todo, as penas somadas chegam a quase 500 anos de reclusão.”
[Cristina Fibe]
No caso Klein, o que aconteceu? Nada. A gente tá contando que essas mulheres, que eram meninas, possam ficar sem reparação e sem cura e dane-se. É o desdém completo. E qual a diferença entre os dois? O tamanho da influência econômica.
No caso do Klein, quando a reação da imprensa à denúncia da Pública é abafar o caso, você tira a chance desse caso ganhar o tamanho que ele tem. Na justiça, pras mulheres, para a história e para a memória do Brasil.
Por que que o empresário pode se dar o direito de explorar meninas e mulheres dando troco na boca do caixa, todo mundo sabendo?
Quando a gente, como imprensa, passa pano pra esse tipo de abuso A gente tá fazendo um desserviço a todas as vítimas de violência. A todas que estão sofrendo sem que a gente se importe. A gente tá dando ok pra um monte de abusador.
[Thiago Domenici]
Para este podcast nós procuramos alguns veículos de imprensa que foram citados ao longo da nossa investigação, seja pelas vítimas, pelos advogados ou por jornalistas com quem conversamos. Em resposta, o Grupo Globo declarou que “não comentamos decisões editoriais, mas vale reforçar que nosso jornalismo age de acordo com princípios editoriais, o Grupo Globo é independente de grupos econômicos, e os seus veículos devem se esforçar para assim ser percebidos. Por esse motivo, as decisões editoriais sobre reportagens envolvendo anunciantes serão tomadas a partir dos mesmos critérios usados em relação aos que não sejam anunciantes”.
No caso do jornal, Folha de São Paulo, que tratou do caso do Samuel Klein, lá em 2021, a gente perguntou especificamente sobre o episódio relatado neste podcast pelo advogado Ricardo Moscovich, mas o jornal não deu retorno.
As emissoras Record, SBT e Bandeirantes, também não quiseram comentar.
[Arquivo TV]
“Morreu nesta madrugada aos 91 anos, o fundador da rede de varejos Casas Bahia. Samuel Klein. Ele estava internado no hospital Albert Einstein havia 15 dias e foi vítima de uma insuficiência respiratória. Judeu polonês, Samuel Klein chegou ao país em 1952.”
[Mariama Correia]
Samuel Klein morreu no dia 20 de novembro de 2014. Praticamente todos os veículos de comunicação noticiaram a morte do empresário com editoriais elogiosos, ressaltando sua vida de “vencedor”que encontrou no Brasil refúgio, abrigo e apoio para construir seu negócio.
Na época, a presidente Dilma Rousseff divulgou nota de pesar em que dizia que Klein “encontrou no Brasil uma nova pátria e a oportunidade de recomeçar a sua vida”. Ele morreu como um herói, um exemplo a ser seguido e, durante muitos anos, sua biografia se manteve assim, intacta, sem qualquer mancha.
A morte de Samuel Klein acabou com esquema de exploração sexual dele, mas não apagou a dor e nem desfez os traumas que foram deixados nas mulheres que sofreram abusos do empresário. Muitas eram tão novas quando começaram a ir nos encontros com ele que demoraram para entender que tinham sido vítimas de violência sexual. Algumas nos disseram que, mesmo quando conseguiram sair do esquema pra recomeçar a vida, quando se afastaram de Samuel e podiam, enfim, enterrar aquele passado, continuavam sendo perseguidas pelas lembranças dolorosas, que tinham marcado suas infâncias e também suas adolescências. Essas memórias apareciam mesmo quando elas tentavam esquecer, memórias que atravessavam seus relacionamentos, seus pensamentos, suas vidas. Como uma ferida sempre aberta.
[Vítima]
Eu lembro que eu falei para o meu marido que nesse período que eu só chorava, eu falei: eu não sei quem eu sou.
[Mariama Correia]
Essa é Stephany, que você já ouviu bastante por aqui.
[Vítima]
Essa crise de não saber o que fazer. “onde você que ir, onde você quer comer?” Eu não estava acostumada a decidir onde é que eu quero ir ou o que é que eu quero comer. Ele foi me ensinando, me inserindo e eu fui aprendendo. Nossa, foi bem ruim pra mim.
[Mariama Correia]
Medo, culpa e vergonha. São alguns fatores que muitas vezes silenciam sobreviventes de crimes sexuais e no caso Klein, não foi diferente. É comum que as mulheres e meninas sejam muitas vezes descredibilizadas e até culpabilizadas em casos de assédio e de exploração sexual.
[Vítima]
São 40 anos e eu guardo até hoje, esse sentimento de culpa.
[Mariama Correia]
Esta é a voz de Fabrícia. No episódio dois, ela conta como foi levada ao esquema de Klein quando tinha de 11 pra 12 anos.
[Vítima]
Embora eu estivesse lá, eu não queria estar lá. Mas eu estava.E eu carrego isso comigo até hoje. Hoje eu faço tratamentos, vou começar um tratamento agora. É para eu aprender a separar as coisas. Se eu falar para você assim, eu entendo tudo isso, porque hoje eu tenho filhos. Eu sei que era uma coisa errada. Só que isso acabou me trazendo algo que eu não consigo ter raiva das pessoas que me fizeram mal. Eu quero entender o que eu fiz para elas me fazerem mal.
[Mariama Correia]
Muitas vezes, em vez de responsabilizar o agressor, a sociedade mira na vítima: “por que você foi a esse lugar? por que estava sozinha? por que vestia essa roupa? por que voltou? por que você não denunciou antes? ”
Esse tipo de pergunta reforça um ciclo de silêncio e impunidade que é o terreno perfeito para que a violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil continue crescendo.
[Vítima]
Eu vou te dizer que até pouco tempo atrás, eu não me via como vítima, tá? Eu comecei a ver depois da terapia que eu busquei por outros motivos. Porque às vezes coisas assim a gente deixa lá guardado e não quer mexer, não quer falar.
[Mariama Correia]
Enquanto suas vítimas tentavam lidar com os traumas, Samuel Klein, um homem branco, europeu, empresário rico, com fama de benfeitor, teve uma vida tranquila, sem ser importunado.
[Clarissa Levy]
E aqui quando a gente fala em justiça, tem uma dimensão ainda que precisamos abordar nesse podcast. A gente falou que consultou centenas de páginas de processos judiciais. Pois então, porque várias outras vítimas como Marcela e Adriana tentaram indenizações ou abriram ações contra Samuel.
No Guarujá, por exemplo, uma menina que sofreu um estupro no chamado motelzinho, quando tinha 13 anos, chegou a fazer uma denúncia no Conselho Tutelar do Município. Um inquérito foi aberto mas o caso não foi adiante.
[Mariama Correia]
Na Justiça, nenhum procedimento para a responsabilização de Samuel Klein por abusos contra crianças e adolescentes jamais prosperou. Em nossa apuração, advogados que atenderam as vítimas nos mostraram como Samuel criou um esquema eficiente de fechar acordos judiciais, pagando por fora indenizações e evitando citação em ações. Era uma tática para evitar o andamento dos processos.
Um advogado com quem a gente conversou contou que fechou um acordo judicial, com pacto de confidencialidade, com seis mulheres que alegaram abusos de Klein, todas elas eram menores de idade na época dos fatos. Segundo o advogado, que falou sob sigilo para não desrespeitar a confidencialidade, o acordo deu certo porque as vítimas apresentaram fotografias e vídeos que comprovaram a situação.
Ele classificou o material apresentado como “incontestável”. Ele disse que fotografias mostravam adolescentes no helicóptero e nas residências de Samuel. E havia ainda vídeos mostrando abusos sexuais explícitos. “Perturbador”, ele classificou. Depois de ter acesso a esses arquivos, a defesa do Samuel Klein teria proposto um acordo que previu pagamento de indenização para as vítimas e destruição das provas.
[Clarissa Levy]
Com isso, esse caso morreu ali. Com as provas destruídas. Mas além desse acordo, outros similares foram feitos, registrados na Justiça ou no âmbito extrajudicial.
[Mariama Correia]
E o nome Klein ficou imaculado durante muitos anos depois da sua morte. Até que nossas primeiras reportagens sobre os crimes sexuais do empresário foram publicadas em 2021. E os negócios dos Klein, sobretudo as Casas Bahia, permaneceram acima de qualquer suspeita mesmo sendo parte fundamental da engrenagem desse esquema de exploração sexual.
Quando alguém entra numa loja das Casas Bahia para comprar um eletrodoméstico, provavelmente não sabe que a sede dessa empresa foi palco de abusos praticados durante anos, num cômodo secreto da sala do presidente. E que, por décadas, os caixas de algumas lojas se ocupavam em atender um fluxo intenso de meninas e mulheres, que iam até lá para receber dinheiro e produtos depois de serem exploradas sexualmente.
[Thiago Domenici]
Acontece que todo esse esquema, deixaria também, uma herança.
[Arquivo TV]
“O empresário Saul Klein, filho do fundador da rede de varejo CB, foi condenado a pagar 30mi de reais por exploração sexual e aliciamento de mulheres Ministério Público acusou o empresário de atrair jovens de 16 a 21 anos em situação de vulnerabilidade com a falsa promessa de que iriam trabalhar como modelos. “
[Thiago Domenici]
Diferente do pai, o caso de Saul Klein, foi investigado e veiculado na grande imprensa. O portal UOL, fez uma longa cobertura sobre o caso de Saul, e publicou um documentário chamado Saul Klein e o império do abuso.
[Arquivo TV]
“Segundo o Ministério Público essas mulheres eram submetidas a relações sexuais com ele durante dias, sob violência psicológica e vigilança armada.”
[Thiago Domenici]
Pai e filho. Uma mesma família. Mas acontece que a ligação entre eles não é o único ponto de união. A gente conversou com mulheres que testemunharam e viveram as duas pirâmides de exploração sexual.
[Vítima]
Ele colocava, mandava um pijama infantil para nós, pantufa infantil. E aí quando ele chegava de helicóptero, a gente tinha que fazer um círculo, ficar batendo palma e gritar príncipe, príncipe, Zinho, Zinho e falar como criança e agir como criança.
[Thiago Domenici]
A Stephany é uma dessas pessoas que passou pelas engrenagens dos dois esquemas. E ela fez questão de me dizer uma coisa: Com o Saul, pra ela, era pior.
[Vítima]
Era um ambiente pesado, por essa questão de não poder comer. Não podia comer. Aí nos dormitórios tinha geladeira com comida infantil, pra criança, muito limitado tudo sempre. Tinha hora pra acordar, para dormir. Eu nunca estive na prisão, mas eu senti que estava na prisão. Isso é cárcere privado.
[Thiago Domenici]
Parte da herança deixada pelo patriarca Samuel não foi só dinheiro ou ações da empresa hoje chamada de Grupo Casas Bahia. Nessa primeira temporada do Caso K, falamos sobre as denúncias que pesam sobre o patriarca. O primeiro da geração dos Klein no Brasil.
E desde 2021, circulam notícias sobre as denúncias que pesam sobre um dos filhos dele, o Saul, a segunda geração. O que você não sabe é que a gente descobriu que essa história, infelizmente, não é só de pai e filho.
A herança do esquema de Samuel atravessou gerações. Literalmente. Viriam outras. Assim, no plural mesmo. Por conta disso, no ano que vem a gente vai ter uma segunda temporada de Caso K. E espero te ter aqui com a gente. Até lá.
[Thiago Domenici]
Quando a gente publicou as primeiras reportagens em abril de 2021, nós fomos atrás de ouvir a versão dos representantes da família Klein e da holding da Casas Bahia, que naquele momento se chamava Via Varejo. Todas as respostas foram publicadas na íntegra em apublica.org.
E agora, em 2024, nós tentamos falar com eles novamente para esse podcast. Da família Klein, a manifestação do empresário, filho primogênito de Samuel, Michael Klein, foi a seguinte: “Infelizmente, meu pai não está aqui para se defender”. Do grupo Casas Bahia, antiga Via Varejo, a resposta foi: “O Grupo Casas Bahia, como constituído hoje, esclarece que não possui qualquer relação com os fatos mencionados na reportagem. As informações da publicação referem-se ao período anterior a 2010, quando a empresa ainda era controlada pela família Klein. Em 2011, com a formação da Via (anteriormente conhecida como Via Varejo), foi constituída uma nova sociedade, responsável exclusivamente pela operação de varejo, incluindo a marca Casas Bahia. Já em 2019, o Grupo Casas Bahia tornou-se uma empresa de capital aberto, sem acionista controlador e é regida pelos mais altos padrões de governança corporativa”.
A gente também procurou o outro filho Saul Klein, que é citado no podcast e na investigação, mas sua defesa não foi localizada. Nossa equipe enviou e-mails, tentou contato telefônico, mas ninguém retornou e as respostas dos veículos de imprensa já foram citadas no episódio.
É isso. Essa foi a primeira temporada de Caso K, mas essa história não termina aqui. Ano que vem, a gente está de volta.
[Mariama Correia]
Qualquer relação sexual com menores de 14 anos é estupro de vulnerável pela lei brasileira. Exploração sexual de crianças e adolescentes é crime. Para denunciar casos de abuso, violência ou exploração sexual procure qualquer delegacia, o Conselho Tutelar ou o Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS da sua cidade. Vítimas ou testemunhas também podem denunciar anonimamente casos de violência pelo Disque 100.
[Mariama Correia]
Caso K – A história oculta do fundador da Casas Bahia é uma produção original da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.
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Na investigação dessa história trabalharam: Andrea Dip, Ciro Barros, Clarissa Levy, Rute Pina, Thiago Domenici e eu, Mariama Correia. O desenvolvimento foi feito por Luana Rocha. Roteiros por Clarissa Levy, Luana Rocha, eu, Mariama Correia, Stela Diogo e Thiago Domenici. Na produção, Stela Diogo. Pesquisa de arquivo por Thiago Domenici. Na revisão do roteiro, Claudia Jardim. O tratamento de sonoras das entrevistadas foi feito por Ricardo Terto. No Design de som, edição e finalização – Pedro Pastoriz. Na estratégia de divulgação e programa de Aliados da Agência Pública: Marina Dias, Letícia Gouveia, Renata Cons e Bruno Penteado. Nas Redes sociais, Lorena Morgana, Ethieny Karen, Raquel Okamura e Fernanda Diniz. As artes foram feitas por João Ito. A coordenação de podcasts da Agência Pública é de Claudia Jardim. A direção geral de Caso K é de Thiago Domenici.
Neste episódio, usamos áudios dos registros em VHS das festas realizadas por Samuel Klein. Áudios da entrevista dele disponíveis no canal Pedro Barros.
Áudio da posse de Barack Obama, do canal da AFP Português e áudios da condenação de Saul Klein disponíveis no canal da CNN Brasil.
Toda essa série só existe graças as aliadas e aliados da Pública, pessoas que apoiam financeiramente o nosso trabalho. Se você também quiser e puder fazer parte da nossa base aliada é simples: vá lá em apoie.apublica.org e escolha como contribuir.
Então é isso. Muito obrigada pela companhia e até a próxima temporada de Caso K.
Este podcast foi financiado graças a milhares de apoiadores que acreditam no jornalismo investigativo da Pública. Seja uma dessas pessoas e nos ajude a continuar investigando essa história para uma segunda temporada. Faça parte em apoie.apublica.org.
Equipe
Investigação: Andrea Dip, Ciro Barros, Clarissa Levy, Mariama Correia, Rute Pina e Thiago Domenici.
Desenvolvimento: Luana Rocha.
Roteiro: Clarissa Levy, Luana Rocha, Mariama Correia, Stela Diogo e Thiago Domenici.
Produção: Stela Diogo.
Pesquisa de arquivo: Thiago Domenici.
Revisão de roteiros: Claudia Jardim.
Tratamento de sonoras das entrevistadas: Ricardo Terto.
Design de som, edição e finalização: Pedro Pastoriz.
Artes: João Ito.
Estratégia de divulgação e programa de Aliados da Agência Pública: Marina Dias, Letícia Gouveia, Renata Cons e Bruno Penteado.
Redes sociais: Lorena Morgana, Ethieny Karen, Raquel Okamura, Fernanda Diniz.
Coordenação de podcasts da Agência Pública: Claudia Jardim.
Direção geral de Caso K: Thiago Domenici.