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Como o bolsonarismo associou Lula ao PCC na véspera da eleição

Entre o debate da Globo e a véspera do pleito, presidente atribuiu ao petista a pecha de criminoso ao menos 34 vezes

Reportagem
4 de outubro de 2022
18:00
Este artigo tem mais de 2 ano

As mentiras que buscam relacionar o PT e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à principal facção criminosa do país, o PCC (Primeiro Comando da Capital), permeiam todo o ecossistema de desinformação bolsonarista — das falas de Jair Bolsonaro (PL) às correntes apócrifas no Telegram e no WhatsApp, passando por veículos alinhados ao presidente, como a Jovem Pan, e por plataformas como o Twitter e o YouTube.

Na véspera (1º) do primeiro turno, o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ministro Alexandre de Moraes, publicou uma decisão urgente em que determinava a derrubada de conteúdos relatando uma suposta declaração de voto a Lula por parte do principal líder da facção, o presidiário Marcos Willians Herba Camacho, conhecido como Marcola. A ação da Justiça Eleitoral, porém, foi insuficiente para conter o alcance dos conteúdos, que continuaram a circular em redes abertas e fechadas.

Apesar de encontrar na internet o terreno mais fértil para se espalhar, a falsa ligação entre o PT e criminosos não é exclusividade desses espaços. Na primeira fala do debate entre presidenciáveis da Globo, na quinta-feira (29) passada, o presidente Jair Bolsonaro (PL) perguntou a Padre Kelmon (PTB): “Lula defendia que se roubasse celular para tomar uma cervejinha. Ou seja, quantos jovens foram assassinados por essas pessoas roubando celular e protegidos por Lula?”.

Foi o debate de primeiro turno com maior audiência desde 2006, registrando 34 pontos no Ibope — o equivalente a cerca de 50 milhões de brasileiros —, e um dos momentos em que o candidato à reeleição conseguiu emplacar uma fala recheada de alegações falsas associando Lula com crimes hediondos.

Entre o dia do debate e a véspera do primeiro turno, no sábado (1º), Bolsonaro atribuiu a Lula a pecha de criminoso em ao menos 34 ocasiões, como apurou Aos Fatos com base na ferramenta Banco de Discursos. Da mesma maneira que suas declarações comumente alimentam teorias da conspiração como a da ideologia de gênero, as falas de Bolsonaro no debate serviram como senha para disseminar conteúdos desinformativos que associam o ex-presidente a delitos.

Mensagens virais em grupos bolsonaristas e de direita em redes sociais e aplicativos de mensagem abarcavam uma série de teorias da conspiração que associavam Lula ao tráfico internacional de drogas:

  • o PCC (Primeiro Comando da Capital), maior facção criminosa dentro e fora de presídios;
  • um dos líderes do PCC, Marcos Willians Herba Camacho, o Marcola;
  • as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia);
  • o presidente Gustavo Petro, eleito na Colômbia neste ano;
  • e o Foro de São Paulo.

Essas palavras-chave e suas recombinações foram usadas na disseminação de conteúdos falsos ao longo da campanha. A estratégia atingiu o ápice no sábado (1º), com um vídeo atribuído ao chefe do PCC declarando voto no petista.

Na véspera do primeiro turno, o site O Antagonista publicou um áudio supostamente interceptado pela Polícia Federal em maio de 2021 no qual Marcola diz preferir Lula a Bolsonaro. Sem contexto, a fala foi replicada nas redes bolsonaristas e pelo próprio presidente como uma suposta prova de que os criminosos queriam o petista na Presidência da República.

Apenas os vídeos dos canais Os Pingos nos Is e Jovem Pan News sobre o assunto reuniram 1,75 milhão de visualizações no YouTube. Após a decisão de Moraes, os vídeos a princípio foram marcados pelos canais como “não listados” no YouTube — quando o conteúdo não aparece na busca da plataforma, mas fica disponível por meio de links distribuídos, por exemplo, em aplicativos de mensagens — antes de serem tirados do ar.

Leia mais: Vídeos da Jovem Pan sobre Lula e Marcola somavam 1,7 mi de visualizações antes de serem excluídos do YouTube

Na manhã de domingo (2), Alexandre de Moraes censurou os veículos de imprensa e determinou que os bolsonaristas apagassem o vídeo porque, segundo ele, o áudio não provava que Marcola havia declarado voto em Lula, uma vez que teria sido gravado mais de um ano antes da eleição.

“Há nítida percepção de que as mentiras divulgadas objetivam, de maneira fraudulenta, persuadir o eleitorado a acreditar que um dos pré-candidatos e seu partido, além de terem participaram da morte do ex-prefeito Celso Daniel, possuem ligação com o crime organizado, com o fascismo e com o nazismo, tendo, ainda igualado a população mais desafortunada ao papel higiênico”, afirmou em sua decisão.

“O sensacionalismo e a insensata disseminação de conteúdo inverídico com tamanha magnitude pode vir a comprometer a lisura do processo eleitoral, ferindo valores, princípios e garantias constitucionalmente asseguradas, notadamente a liberdade do voto e o exercício da cidadania”, completou o ministro.

No entanto, essa mesma história já tinha sido usada por Bolsonaro em transmissão ao vivo no dia 1º de outubro. Segundo o presidente, a reportagem “deixou claro para vocês como demos uma golpe na questão do crime organizado do Brasil”.

“Porra, o cara que foi condenado em três instâncias por unanimidade, né? Um amiguinho dele, o Fachin (…) Na idade dele, 75 anos, a prescrição de muita coisa acaba pela metade. Aí deixou de existir.  Não foi absolvido. Ele fica na cara de pau, foi absolvido na ONU. Brincadeira, pô. E agora tá aí no Antagonista, um grampo aí da mulher do Marcola, né?”.

Nos quatro dias que antecederam o primeiro turno, correntes que vinculavam, sem provas, Lula ou o PT a crimes violentos ou organizações criminosas circularam 97 vezes em grupos de WhatsApp monitorados pelo Radar Aos Fatos. Na véspera e no dia da votação, 197 mensagens que mencionavam Marcola, especificamente, foram encaminhadas 295 vezes nos grupos de WhatsApp monitorados pela empresa de tecnologia Palver.

No Google Trends, dispositivo que monitora as tendências de pesquisa na ferramenta de busca, os termos Lula + Marcola e Lula + PCC tiveram pico de buscas entre as 19h de sábado (1º), atingindo seu auge à 0h de domingo (2). Essa busca ainda se mantinha relevante até as 16h de domingo (2), embora a determinação de Moraes pela remoção das publicações tivesse sido publicada horas antes.

Efeito e causa

Não é possível afirmar que esse tipo de teoria conspiratória foi decisiva para o desfecho das eleições. Desinformação engaja mais quem já está disposto a acreditar naquilo que reforça seus valores, por meio do viés de confirmação. O que é fato, porém, é que desde o início da campanha, em 16 de agosto, Bolsonaro fez 14 publicações no Twitter — rede em que soma 9,1 milhões de seguidores — nas quais acusa Lula ou o PT de roubo ou associação com crimes. Em uma de suas primeiras publicações desde o início da campanha, ele afirmou que o partido esconde dos brasileiros “suas pautas mais íntimas, como a liberação das drogas”.

Aos Fatos mostrou também que essa narrativa se fez presente em redes sociais que carecem de moderação contra a desinformação eleitoral. No Gettr, por exemplo, o blogueiro Allan dos Santos, foragido da Justiça brasileira nos Estados Unidos, insistiu durante a campanha na tese de que Lula estaria ligado às Farc, sem apresentar qualquer evidência.

Para ele, o Foro de São Paulo, organização da qual Lula faz parte, teria o objetivo de transformar a América Latina em um “império socialista”. “Para isso é necessário dinheiro. Muito dinheiro. Muito investimento. E esse dinheiro é feito por meio do narcotráfico”, argumenta. E é aí que as Farc entrariam na teoria conspiratória.

Uma outra vertente da narrativa que sugere que Lula defenderia o narcotráfico também tem sido alimentada por Bolsonaro e seus apoiadores há tempos, e ganhou força principalmente em setembro, último mês antes do primeiro turno. Em cinco ocasiões, Bolsonaro afirmou que o petista iria “legalizar as drogas” caso fosse eleito, o que não consta em nenhum item das diretrizes do seu programa de governo. Também surgiram alegações falsas de que Lula seguiria Gustavo Petro, presidente eleito da Colômbia, na legalização da cocaína, o que ele não fez — seu plano é de alterar a forma de combater o tráfico.

Dentro dessa mesma narrativa, a campanha desinformativa ficou mais evidente entre a noite de quinta-feira (29), dia do debate, e a manhã de sexta (30). Políticos e influenciadores bolsonaristas publicaram um vídeo enganoso que afirmava que Lula prometera indultar criminosos e liberar as drogas. Postagens como a do vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) no Instagram, da deputada federal reeleita Carla Zambelli (PL-SP) no Facebook e do influenciador Kim Paim no Twitter ajudaram a publicação a totalizar mais de 160 mil interações até a data do primeiro turno.

Reprodução de publicação de Carla Zambelli na rede social Facebook.
Zambelli publicou o vídeo 4 minutos após o início do debate
Reprodução de publicação excluída de Bolsonaro no Twitter associando PT ao PCC.
Print de tweet excluído de Bolsonaro associando PT ao PCC em 24 de agosto

Em 20 de agosto, a ministra do TSE Maria Claudia Bucchianeri negou um pedido do PT para que fossem retiradas do ar publicações em que um áudio atribuído a integrante da facção criminosa dizia que o PT mantinha “diálogo cabuloso” com a organização. Dentre essas publicações, estava um tuíte de Bolsonaro em que o PCC estava “com saudades do grupo do animal invertebrado cefalópode pertencente ao filo dos moluscos”.

Na decisão, a magistrada afirmou que as publicações são “construção de narrativa política, crítica, sarcástica, desagradável”, mas não configuram divulgação de “fato sabidamente inverídico”, como diz a lei. Segundo a ministra, por estarem em um veículo jornalístico, vídeos que continham as acusações eram autênticos, mas seu conteúdo não podia ser verificado.

A repercussão dessa decisão foi publicada em sites bolsonaristas em tom de comemoração. O presidente também celebrou a decisão no Twitter e afirmou que não era ele, “mas o próprio crime organizado que demonstra enxergar o PT como aliado”.

A decisão de Bucchianeri foi revertida em plenário em setembro, quando, além de Alexandre de Moraes, o ministro Ricardo Lewandowski votou pela retirada do conteúdo sob a justificativa de que o próprio Bolsonaro tentava “criar uma narrativa fortemente dissociada da notícia usada como referência”. Alguns dos posts do presidente seguem no ar.

Esta reportagem foi feita numa colaboração entre Agência Pública, Aos Fatos e Núcleo Jornalismo para a cobertura das eleições de 2022. A republicação só é permitida com a atribuição de crédito para todas as organizações.

Reprodução Facebook
Reprodução Twitter

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