Na última semana, a crise dos presídios se ampliou e chegou ao Rio Grande do Norte. A penitenciária de Alcaçuz, em Nísia Floresta, região metropolitana de Natal, está há dez dias tomada pelos presos, e a violência que matou 26 pessoas no presídio transbordou para as ruas da capital, assustando moradores e turistas.
Desde o segundo dia do ano, quando ocorreu o massacre de 56 presos no presídio de Compaj, em Manaus, 136 pessoas foram mortas. Na última quarta-feira (19), o presidente Michel Temer autorizou as Forças Armadas a atuar em inspeções nos presídios brasileiros, quando houver solicitação dos estados. No dia seguinte, liberou tropas para reforçar a segurança nas ruas de Natal.
Para o cientista político João Roberto Martins Filho, porém, há consenso entre estudiosos de que o emprego das Forças Armadas na segurança pública extrapola “sua função primordial”, embora o artigo 142 da Constituição inclua a defesa da “lei e da ordem” entre suas atribuições. Mais do que isso: “Expõe as Forças Armadas a serem utilizadas a torto e a direito por motivações políticas”.
Leia a íntegra da entrevista com o ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa.
Quais são as prerrogativas e funções das Forças Armadas brasileiras? O senhor considera que elas têm se ampliado ultimamente?
A gente que estuda Forças Armadas usa a palavra “prerrogativa” para alguns privilégios que as Forças Armadas mantiveram depois do governo militar. Por exemplo, a prerrogativa de julgar, na Justiça Militar, os militares mesmo por crimes comuns. Ou, então, a prerrogativa de manter seis ministérios, que é o que existia antigamente e agora é praticamente um só. Outra coisa são as missões que a Constituição brasileira define para as Forças Armadas. Prerrogativa seria uma espécie de herança, e essas missões estão na Constituição de 1988 – ou seja, as funções constitucionais das Forças Armadas. Lá, é evidente que está definido o que é defesa do país, mas também está definido, em um dos artigos, que as Forças Armadas podem atuar na “garantia da lei e da ordem” – a GLO.
Existe um consenso entre as pessoas que estudam essa questão das Forças Armadas de que o ideal seria que a Constituição brasileira fizesse como a Constituição argentina e estabelecesse: “As Forças Armadas são instituições de Estado destinadas à defesa do país”, ponto. E não houvesse essa questão de “garantia da lei e da ordem” a pedido de um dos poderes constitucionais, que está na Constituição brasileira. De certa maneira, isso é resultado de um lobby que as Forças Armadas fizeram em 1987 e 1988 na época da Constituinte. Constitucionalmente, não é ilegal que os poderes constituídos peçam e autorizem a intervenção das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, mas não é desejável, e todos os ministros da Defesa têm falado isso, pois, embora seja uma função prevista na Constituição, não é boa para as Forças Armadas. Por quê? Pois expõe as Forças Armadas a serem utilizadas a torto e a direito por motivações políticas.
Por exemplo: quando o governador do estado do Rio de Janeiro, aliado do governo federal, pede que ele autorize o uso das Forças Armadas – o que sempre tem que ser provisório, e as Forças Armadas nunca podem ficar sob comando do poder estadual – na manutenção da ordem pública, como já aconteceu várias vezes, o presidente da República, chefe das Forças Armadas, em geral autoriza esse uso por motivos políticos. No caso do Rio Grande do Norte, por exemplo, em que as Forças Armadas foram autorizadas a agir nas ruas de Natal, há uma clara motivação política: dar uma resposta à sociedade porque o presidente Temer está na berlinda devido à crise inacreditável que está ocorrendo nos presídios. Isso não é desejável, quase todas as pessoas que estudam Forças Armadas acham que isso não é correto, embora seja legal, mas até aí tem sido feito com certa frequência.
Com relação à questão de permitir que as Forças Armadas entrem em presídios para participar de revista, isso é absolutamente inédito. Do jeito que estamos indo, daqui a pouco as Forças Armadas estarão cada vez mais fazendo coisas que cabem às polícias. Até a própria legalidade desse uso pode ser questionada – não sei como isso será visto por advogados e juristas. Mas permitir que as Forças Armadas entrem em presídios para garantir a revista dos presos, procurar armas e esse tipo de coisa, isso é realmente um descalabro. É um uso cada vez maior do conceito de “garantia da lei e da ordem”. Como posso falar que é garantia da lei e da ordem entrar num presídio pra revistar preso? Daqui a pouco vamos usar as Forças Armadas para vigiar presídio por dentro e por fora. Acho que isso é um pouco resultado de uma crise muito séria que está acontecendo com as instituições brasileiras, e como o poder político – que é que tem que mandar nas Forças Armadas – está muito enfraquecido, acaba fazendo coisas que são erradas e ruins para a democracia brasileira. Deveríamos especializar nossas Forças Armadas em defesa do país.
Qual a sua interpretação sobre essa questão da “garantia da lei e da ordem”?
Acho que a “garantia da lei e da ordem” passou para a Constituição de 1988, mas seria melhor que não tivesse passado. Já que existe, deve ser usada em casos muito raros e cirurgicamente, e mesmo assim não é desejável. No morro do Alemão [no Rio de Janeiro], por exemplo, eles ficaram oito meses. A Constituição não autoriza uma coisa desse tipo. Isso se afasta do que deveria ser, em uma democracia, o uso das Forças Armadas, cada vez mais permitindo seu uso demagógico.
Os efetivos das Forças Armadas passam por algum tipo de treinamento para agir em contextos internos, na garantia da segurança pública?
Eles têm treinamento porque, uma vez que esse uso está previsto na Constituição, foi criada em Campinas uma brigada de garantia da lei e da ordem que envolve 2 mil soldados e oficiais, mais ou menos, e eles treinaram no Haiti. Então, estão treinados para atuar em espaços urbanos. E, inclusive, o Exército, principalmente, se orgulha de ter desenvolvido no Haiti técnicas de patrulhamento urbano que podem ser usadas na garantia da lei e da ordem no Brasil. Mas, veja bem, é uma brigada de 2 mil pessoas, enquanto o Exército tem 200 mil. É um pouco demagógico, porque isso é sempre vendido como solução para problemas que o emprego de uma brigada da força terrestre não vai resolver. Além do impacto na opinião pública de usar as Forças Armadas, ninguém acredita que isso vá resolver o problema dos presídios no Brasil, nem mesmo dessas revoltas atuais.
Quais podem ser as implicações da decisão do presidente Michel Temer de permitir que as Forças Armadas atuem em inspeções nos presídios? De que forma isso repercute internamente?
É uma degradação das Forças Armadas fazer esse tipo de papel. Acho que eles [Forças Armadas] veem com preocupação, porque percebem que estão sendo utilizados para objetivos político-eleitorais. Por outro lado, há certa diferença porque o Exército tem uma história mais voltada para esse tipo de atuação, tanto é que, se olharmos para onde estão as unidades militares brasileiras, elas estão quase sempre localizadas no Sudeste, enquanto nossas fronteiras são mais vulneráveis no Centro-Sul e na Amazônia. Existe uma tradição. Acredito que a Marinha e a Aeronáutica estão menos comprometidas com isso, embora tenham sido usados, no Rio de Janeiro, os carros blindados dos fuzileiros navais, que também treinaram no Haiti. Quanto aos fuzileiros navais, tem uma unidade da Força Naval usada para combate em terra – são soldados, não marinheiros. O corpo de fuzileiros navais tem uma escola de treinamento para missões de paz. Quanto a isso, há um consenso de que está certo participar de missões de paz, o problema é fazer isso e voltar dizendo que aprendeu usar as Forças Armadas para garantir a lei e a ordem no Rio de Janeiro.
Esse tipo de atribuição dada às Forças Armadas pode aumentar o seu poder político?
As Forças Armadas evidentemente ficaram preocupadas nos últimos meses do governo Dilma quando começou a haver uma mobilização dos movimentos sociais, que inclusive compareceram ao Palácio do Planalto. Mas, de um modo geral, ficaram fora da coisa. O comandante do Exército [Eduardo Villas Bôas] disse que não adiantava chamar que elas não iriam, não existia a menor condição para uma intervenção das Forças Armadas. O problema que considero mais sério hoje é que o poder político está muito enfraquecido e, com isso, o controle civil das Forças Armadas também fica enfraquecido. Assim, elas têm um poder de barganha cada vez maior. Talvez o pacto que tenham feito era que seria melhor concordar. Se tivessem falado “olha, não dá, isso é uma coisa perigosíssima, nós não queremos, embora tenhamos que obedecer”, se tivessem passado essa opinião para o ministro da Defesa, ele passaria ao presidente da República. Mas parece que, neste caso, o ministro da Defesa achou bom.
As decisões que o Temer tomou acerca da questão nos últimos dias pode significar a ineficiência da estratégia de segurança pública dos estados?
Acho que sim. Cada estado é diferente, mas, nesses estados em que ocorreram os massacres, é um atestado de absoluta incapacidade. O problema é saber se o Brasil deve comprometer as Forças Armadas num problema dessa gravidade que não compete estritamente a ela.
O senhor, como a maioria dos estudiosos da questão das Forças Armadas, entende que o Brasil realmente precisa delas?
Não tenho dúvida de que um país do tamanho do Brasil, com as fronteiras e riquezas que temos, não pode prescindir de ter Forças Armadas – tanto Força Aérea quanto Exército e Marinha – para defender as águas territoriais, impedir invasões de qualquer tipo pelo ar e evitar violação de fronteiras por terra. Mas isso é a defesa nacional, a esquerda brasileira sempre foi favorável à defesa nacional, não há problema quanto a isso. A esquerda, na verdade, é a que está mais comprometida com essa ideia de defesa nacional. Defendo a modernização das Forças Armadas. Acho que o Brasil tem que ter submarino nuclear, por exemplo. Acho que essas coisas têm que ser garantidas: Forças Armadas modernas.
Crédito da imagem em destaque: Tânia Rêgo/Agência Brasil