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Reportagem

WikiLeaks – modo de usar

Quem eram os embaixadores por trás dos despachos da embaixada americana em Brasília e como eles chegaram ao cargo, em troca de arrecadar recursos de campanha

Reportagem
1 de março de 2011
00:00
Este artigo tem mais de 13 ano

O Brasil do embaixador Clifford Sobel é o sonho de qualquer empresário americano. Se vai à Bahia é recebido por baianas em roupas típicas e termina o dia tomando champagne na casa de Nizan Guanaes. No Sergipe é condecorado com a ordem de Aperipê e deixa-se fotografar dançando e tocando pandeiro ao lado do governador Marcelo Déda. Coleciona histórias de pescarias no Pantanal e aventuras na Amazônia para contar nas rodas de negócios em Belo Horizonte. Sente-se “em casa” em São Paulo, “lembra Nova York”, onde o embaixador faz palestras e reuniões e janta no Fasano. A mulher, Barbara, “loves the Carnival”, passados em camarotes oficiais no Recife, Salvador e no “lindo Rio”, como diz Sobel à revista Caras. Nos 9 primeiros meses de Brasil, conta à revista, o casal visitou onze Estados brasileiros e abrilhantou tantas festas que o colunista Ancelmo Góis chegou a inventar uma expressão para se referir a eles: Party Rice, ou arroz de festa.

Na casa do embaixador em Brasília, que Clifford ocupou entre 2006 e 2009, os convidados se encantam com a elegância agradável das recepções e cerimônias, e Sobel marca jantares e reuniões sigilosas com as fontes cultivadas na animada vida social. O senador Heráclito Fortes (DEM-Piauí), por exemplo, estivera com ele no camarote do governador Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro, durante o carnaval. Meses depois, tomou a iniciativa de lhe telefonar na manhã daquele 5 de novembro de 2007 para pedir uma reunião “urgente” sobre um assunto que ele “não podia discutir por telefone”.

Ao embaixador e seu assessor militar, o presidente da Comissão de Relações Internacionais e Defesa do Senado disse que havia uma conspiração entre Irã, Rússia e Venezuela para disseminar ideologia antiamericana e armar os governos e movimentos “populistas” da América do Sul em território brasileiro. E instou para que os Estados Unidos reagissem, sugerindo uma parceria com as indústrias de armas do Brasil e da Argentina para “não atrair publicidade ligando o governo americano ao incremento da venda de armas”.

Em novo encontro, este no dia 28 de março de 2008, o senador o alertou sobre uma guerrilha similar às Farc que estaria atuando em Rondônia, a Liga dos Camponeses Pobres (LCP), “com acesso à tecnologia russa ou iraniana”, e falou sobre uma insólita infiltração terrorista estrangeira através da ONG Cepac, ligada, segundo ele, a uma “facção trotskista do PT”, que estaria atuando no seu Estado, o Piauí.

“Fortes, mais do que a maioria, está prestando atenção ao que considera ameaças emergentes dentro e fora do Brasil. Suas preocupações sobre a LCP e a Cepac parecem válidas, com base nas informações de que ele dispõe, mas nós não temos informações suficientes para avaliar a acuidade e a seriedade da situação”, escreveu Sobel a Washington.

A frase vem de apenas um dos 250 mil documentos diplomáticos vazados pelo WikiLeaks. Quase 3 mil se referem ao Brasil – 63 despachos do departamento do Estado e 2919 telegramas enviados entre 2002 e 2010 (1947 provenientes da embaixada em Brasília e 909 dos consulados de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife). Entre esses documentos, apenas cerca de 1/5 são classificados – 468 são confidenciais e 73, secretos

Comentários picantes

Divertidos, absurdos, curiosos, e até sofisticados na visão de alguns especialistas, os telegramas constroem uma narrativa dos bastidores das relações bilaterais durante todo o governo Lula, do ponto de vista dos representantes americanos. Parte dos relatos de campo ou relatórios internos – como são chamados pelos diplomatas – surpreenderam pela superficialidade, baseados em fofocas, fontes duvidosas e análises acríticas do material publicado pela imprensa brasileira.

“Os americanos são informais, é o estilo deles, mas essa troca mais ou menos franca de informações faz parte do cotidiano diplomático de muitos países. O objetivo é transmitir as percepções do embaixador e de outros funcionários graduados aos que traçam a política externa em Washington”, explica o ex-ministro e ex-embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Rubens Ricúpero.

Por isso, é difícil determinar o peso desses telegramas nas decisões tomadas pelo Departamento do Estado, Casa Branca e Senado, os órgãos que comandam oficialmente a política externa americana. Para alguns especialistas, o valor dos relatórios varia conforme a credibilidade e a influência do embaixador. Outros, como o professor de Relações Internacionais da PUC-SP, Reginaldo Mattar Nasser, defendem a tese de que os papéis têm “tão pouca importância quanto os embaixadores”.

“O Senado mantém seu poder na política externa, mas o Pentágono e o sistema de segurança nacional ocupam um espaço cada vez maior nas decisões. Agora, o Pentágono destina verbas para a reconstrução das nações e faz operações de ajuda humanitária, que encobrem ações militares. Tem verbas do Pentágono até para cuidar de Aids na África”, explica Nasser.

Já o pesquisador Robert Naiman, do instituto americano Just Foreign Policy, acredita que o papel dos embaixadores continua a ser “importantíssimo” para dizer a Washington “qual a verdade, qual a mentira sobre o que está acontecendo no país em que estão”. Mas, constata o pesquisador, nem sempre os relatórios são levados em conta, como mostram os documentos do WikiLeaks: “Um mês depois do golpe de 2009, em Honduras, o embaixador dos EUA, que é bastante experiente, escreveu um telegrama avaliando que o golpe fora absolutamente ilegal. O que se viu foi que a política adotada pelos EUA diferiu dramaticamente do que o embaixador disse”, afirma. Outro telegrama destacado pelo pesquisador pela “flagrante discrepância” com a política oficial foi enviado em maio de 2009, pela embaixadora do Paquistão Anne W. Patterson. Nele, Ann afirma que a estratégia americana de aumentar a ajuda econômica não vai deter a expansão do Talibã. “Esse conselho jamais foi implementado”, diz Naiman.

Não-diplomatas

Para os especialistas, o papel do embaixador perde seu peso porque dos governos americanos costumam oferecer a embaixada como um “presente” aos aliados políticos. No caso dos Estados Unidos, quase sempre esses aliados são importantes fundraisers (ou levantadores de fundos) das campanhas presidenciais. Entre os 370 embaixadores nomeados por Bush em 2006, 133 eram não-diplomatas, com parco conhecimento dos países para onde foram enviados.

“Eles (o governo americano) preferem alguém que possa pegar um telefone e ligar direto para a Casa Branca, é o sistema deles”, observa um alto diplomata do Itamaraty.

O cientista político americano Riordan Roett, autor do livro The New Brazil, lançado pela Brookings Institution Press, critica a atuação dos não-diplomatas: “Eles não levam tão a sério seu papel como profissionais. Washington sabe que vão ficar por 2 anos na carreira e depois vão embora. O que ganham é uma espécie de honraria, serem chamados de ‘embaixador’ por toda a vida. Então, são do tipo que vivem em festas e casas noturnas”, diz.

“Quarenta por cento só estão ali porque contribuíram para levantar fundos – 400 mil dólares compram um tíquete de embaixador, e os indicados políticos defendem sempre o que é melhor para o governo que os colocou lá”, completa a ex-embaixadora Ann Wright, que renunciou à carreira depois da invasão do Iraque para não ter que defender a política externa de seu país. Para a ex-diplomata, o pior é que esses embaixadores servem ao governo e não ao Estado. “Muitos não conhecem bem o país e estão apenas para implementar o que forem mandados”.

Ann, que deixou a carreira diplomática depois de 16 anos de serviço, afirma que a maioria são homens de negócios. “Seu principal objetivo é expandir seus interesses econômicos em países específicos. Muitos voltam aos países depois, porque já conheceram todo mundo – é muito benéfico financeiramente para eles”.

O amigo americano

Clifford Sobel, empresário experiente no setor financeiro e pioneiro em telefonia por internet é fundraiser do partido republicano. Ele e a mulher, Barbara, figuram entre os 241 Bush Pioneers em 2000, e entre os 221 Bush Rangers em 2004 – ou seja, levantaram pelo menos 100 mil dólares para a campanha presidencial de 2000 (pioneer), e acima de 200 mil dólares para a campanha de 2004 (ranger). A Family Sobel Foundation, dirigida por Barbara, também doou 81 mil dólares aos candidatos republicanos em 2004. Como pioneer, Sobel recebeu a embaixada da Holanda, onde ficou até 2005. Na categoria ranger em 2004, o prêmio foi Brasil, que além de “paraíso tropical”, é o segundo maior parceiro comercial dos Estados Unidos.

Quando chegou por aqui, em agosto de 2006, não sabia quase nada do país – nem entendia o português. Seus primeiros despachos mostram desconfiança a respeito de um suposto “populismo” do governo brasileiro e à sua política externa. Em 30 de outubro de 2006, comenta com ceticismo um encontro com a equipe de Lula após a reeleição: “Nossos interlocutores estavam com o espírito elevado, generosos com o mundo, incluindo os Estados Unidos. Mas sem uma mudança no alto escalão do Ministério das Relações Exteriores, ficamos em dúvida sobre a viabilidade de uma guinada das prioridades sul-sul do primeiro mandato de Lula em direção aos Estados Unidos e ao mundo desenvolvido”.

Sobel nunca conseguiu se entender muito bem com o Itamaraty, mas manteve contatos próximos com o ministro da Defesa Nelson Jobim, que considerava “o homem mais confiável do governo”, e o general Armando Félix, do gabinete de Segurança Institucional. Talvez por isso, um de seus relatórios mais “precisos”, na opinião do ex-embaixador Ricúpero seja o que avalia o Plano Nacional de Defesa do governo: “Amigos meus, que trabalham na área da defesa, disseram-me que esse telegrama foi altamente apreciado, com análise de grande competência e opiniões sensatas, apesar de terem se irritado com bobagens como chamar o submarino nuclear de ‘baleia branca’”.

Mesmo assim, Sobel saiu sem conseguir convencer o “amigo” Jobim a optar pelos caças americanos na disputa com franceses e suecos. Também falhou na missão de levar o Brasil à Associação de Livre Comércio das Américas (Alca), mas foi mais bem-sucedido quando deixou de lado os negócios governamentais e se concentrou em “estreitar as relações entre as empresas brasileiras e americanas”, como registrou um perfil sobre ele publicado na revista Exame, em fevereiro de 2008, com o título: “O amigo americano”.

Isso porque, na embaixada, ele acompanhou de perto os dois setores que lhe pareciam os mais promissores do país: etanol e telecomunicações. Empenhou-se para fechar um acordo entre a Santelisa Vale (fusão das usinas Santa Elisa e Vale do Rosário e de mais três empresas paulistas) e a americana Dow Chemical, comparecendo em caráter oficial à cerimônia de assinatura de um acordo comercial, em julho de 2007, que previa a produção de 350 mil toneladas de polietileno com tecnologia da companhia americana (o negócio foi interrompido na crise econômica de 2009). Também se interessou pelo processo que levou ao fechamento do maior negócio de telecomunicações realizado no país desde as privatizações: a compra da Brasil Telecom pela Oi por 4,85 bilhões de reais, arquitetada pela Angra Partners, que representava os fundos de pensão na Brasil Telecom, e que também comandou o processo de fusão da Santelisa Vale.

Com a vitória de Barack Obama – o candidato republicano à presidência novamente havia recebido recursos do casal Sobel – ele deixou a embaixada. Em julho de 2009, depois de muitas festas de despedida, ele saiu oficialmente do cargo, mas continuou a aparecer em companhia de sua elegante Barbara nas colunas sociais. Em agosto de 2010, por exemplo, ela organizou mais uma vez o concorrido jantar de sua Associação Américas Amigas, no hotel Hyatt, em São Paulo, para arrecadar fundos para ONG que fundou, com o objetivo de doar mamógrafos. No final do ano passado, instalaram-se definitivamente no país e, sem muito alarde, Sobel associou-se à Angra Partners, um negócio pra lá de promissor. A empresa se nega a confirmar.

Mas, procurada por CartaCapital, Barbara desfez as dúvidas neste simpático e-mail: “Decidimos continuar morando no Brasil por causa de nossos fortes vínculos com a cultura e o povo brasileiro. O embaixador Sobel se tornou sócio de um private equity group chamado Angra Partners e eu continuo à frente da Associação Américas Amigas. Escolhemos comprar um apartamento em São Paulo porque é o principal centro de negócios do país, onde estão as sedes da Angra Partners e da Américas Amigas. Estamos aqui para ficar!”.

Dilma, assaltante

O embaixador que antecedeu Sobel, o empresário republicano John Danilovich, também teve final felizdepois de servir no Brasil. Danilovich é aquele que ficou famoso por ter afirmado, em um telegrama a Washington em 22 de junho de 2005, que a atual presidenta Dilma Rousseff havia organizado três assaltos a banco e cofundado a Vanguarda Armada Revolucionária de Palmares – um erro profissional que se tornou gafe internacional depois de vazado pelo WikiLeaks.

Empresário da marinha mercante, Danilovich mantém uma relação de longa data com a família Bush. Em Londres, onde cursou mestrado e viveu durante muitos anos, organizou o apoio republicano para a eleição de Bush, o pai. Foi nomeado, durante seu governo, para o Comitê Diretor do Canal do Panamá, e dirigiu a comissão que tratou da devolução do canal, em 1999. No ano seguinte, Danilovich, importante doador da campanha de George W. Bush, foi nomeado para embaixada da Costa Rica. Em 2004, substituiu a diplomata Donna Hrinak na embaixada brasileira, onde ficou até o final de 2005.

Durante sua rápida atuação no Brasil, empenhou-se em costurar uma aliança anti-Chávez no continente, a ponto de tentar convencer o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, a ajudar a espionar o vizinho, propondo “um acordo de compartilhamento de inteligência”, como revelou um telegrama de 15 de março de 2005. Amorim, é claro, respondeu com irritação: “Não vemos Chávez como uma ameaça”.

Danilovich não desistiu. Ao Estado de S. Paulo afirmou que Chávez estava financiando a campanha Evo Morales, então na oposição, à presidência da Bolívia. Um telegrama mostra que ele voltou à carga em reunião com o General Jorge Armando Félix, no dia 4 de maio de 2005. Disse que Chávez estava “prejudicando os esforços do Brasil em ter um papel de liderança política e econômica na América do Sul”. Félix respondeu que divergia da posição do governo, mas preferia seguir a linha oficial.

Um ano depois da segunda eleição de Bush, Danilovich deixou o Brasil para assumir a liderança de uma corporação tão milionária quanto nebulosa: tornou-se CEO da Millenium Challenge Corporation, agência “independente”, ligada e financiada pelo governo americano. No período em que esteve à sua frente, entre novembro de 2005 e janeiro de 2009, ele gerenciou 6,3 bilhões de dólares de fundos aprovados pelo Congresso Americano. A missão oficial da MCC, segundo seu site, é fornecer assistência econômica a países pobres que se comprometem a seguir a cartilha neoliberal: governar com justiça, manter uma política fiscal responsável, incentivar os negócios.

Em 2008, por exemplo, o MCC bloqueou ajuda para projetos da Nicarágua em retaliação a suspeitas de fraude eleitoral por parte do governo sandinista de Daniel Ortega. Mas, em 2009, a corporação continuou a mandar ajuda para Honduras, mesmo depois do golpe que tirou Manuel Zelaya do poder, em 28 de junho.

Profissionais do ramo

Menos constantes nos telegramas vazados pelo WikiLeaks, os dois diplomatas de carreira do período Lula destacaram-se pelos bons resultados em prol das relações bilaterais. Thomas Shannon, o atual embaixador, escolhido por Obama, teve forte atuação em favor do Brasil para superar a crise provocada pela aproximação com o Irã, nos últimos dois anos. Já a diplomata Donna Hrinak, que ficou no cargo entre 2002 e 2004, teve papel fundamental para aproximar os dois países em um momento em que o governo Bush acompanhava com apreensão a chegada do operário “vermelho” à presidência do Brasil.

Filha de um metalúrgico de Pittsburgh, Hrinak havia sido vice-cônsul em São Paulo na década de 1980, e acompanhou com entusiasmo as greves do ABC paulista sob a ditadura militar. Quando voltou ao país, em abril de 2002, era fluente em português e tinha quase 30 anos de serviço diplomático – foi embaixadora na Bolívia, na Venezuela e na República Dominicana. Na recepção, um jornalista perguntou o que ela achava de Lula: “Não temos medo de Lula. Ele encarna o sonho americano”.

Durante a campanha presidencial, a embaixadora reuniu-se com Lula e com o homem escolhido pelo PT para azeitar as relações com os americanos: José Dirceu, conhecido de Hrinak desde a década de 80. Enquanto Dirceu visitava a Casa Branca e o Senado americano, em julho de 2002, levando uma cópia traduzida da “Carta ao Povo Brasileiro”, ela enviava a Washington telegramas garantindo que, se o PT vencesse, não haveria calote na dívida externa.

As vésperas do segundo turno, Hrinak e o então embaixador brasileiro em Washington, Rubens Barbosa – instruído pelo próprio Fernando Henrique Cardoso – empenharam-se em articular uma ligação telefônica de Bush, caso Lula fosse eleito. Bush ligaria caso Serra ganhasse, mas uma ligação para Lula seria um forte sinal de apoio, declararia depois a diplomata. A ligação veio poucas horas depois do resultado. “Parabéns pela grande vitória… O senhor conduziu uma campanha fantástica”, dizia Bush ao telefone.

O primeiro e único telegrama de 2002 na série vazada pelo WikiLeaks relata a primeira visita oficial de um representante do governo americano ao Brasil depois da eleição de Lula. O subsecretário de estado americano Otto Reich descreve o encontro com José Dirceu, Antonio Palocci e Aloizio Mercadante como “caloroso e produtivo” e conta que  Lula, “animado, elegante e descansado”, disse, logo de cara, que queria ter uma boa relação com Bush: “Acho que dois políticos como nós vamos nos entender quando nos encontrarmos frente a frente”. No final do encontro, Reich foi taxativo: “Nós não temos medo do PT e da sua agenda social”.

Donna havia ganhado a parada. Em dezembro daquele ano, o presidente americano receberia Lula na Casa Branca, antes mesmo da posse.

O cientista político Riordan Roett não tem dúvidas da importância pessoal da ex-embaixadora para costurar as relações bilaterais. “Ela era muito popular entre os políticos de Brasília, tinha acesso ao governo e à oposição, falava português e entendia a dinâmica brasileira”.

Ao se aposentar em 2004, Donna saiu do país com um namorado brasileiro, algumas plásticas no rosto e o bordão de que “o Brasil não é antiamericano” – que Shannon teria de repetir à exaustão cinco anos depois.

Itamaraty, o adversário

Nomeado por Obama em 28 de maio de 2009, Thomas Shannon só chegou ao país em janeiro de 2010 devido à oposição a seu nome no Senado. O republicano Charles Grassley, do estado produtor de etanol Yowa, atrasou a confirmação por Shannon defender o fim da tarifa de US$ 0,54 sobre o etanol brasileiro exportado pelos EUA.

Outros dois senadores republicanos o vetaram por sua atuação durante o golpe de Honduras. Como subsecretário do Departamento de Estado para o Hemisfério Ocidental entre 2005 e 2009, Shannon amargurou a derrota da diplomacia aos interesses comerciais de seu país. Enquanto o governo americano começou deplorando o golpe, acabou por aceitá-lo sob pressão do empresariado ligado à elite hondurenha. A opinião do próprio embaixador, como vimos, acabou sendo totalmente desconsiderada. Quando Manuel Zelaya voltou ao país e se hospedou na embaixada brasileira, Shannon se reuniu com a ministra do exterior do governo de facto, Patricia Rodas, para pedir o envio de comida e água, como registra um telegrama de 22 de setembro de 2009.

Diplomata de excelente reputação e experiente – atuou nas embaixadas da Venezuela, África do Sul, Camarões, Gabão, Guatemala e São Tomé e Príncipe, além de representar os Estados Unidos na OEA –, Thomas Shannon chegou ao país em plena crise provocada pela aproximação do governo Lula com o Irã, defendida pelo governo como parte de sua estratégia sul-sul e de defesa da equidade dos países diante do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares. Para complicar, Lula estava de visita marcada para o Irã em maio, e o presidente Mahmoud Ahmadinejad estivera no país quarenta dias antes da chegada do novo embaixador.

Segundo o pesquisador Riordan Roett, Brasil e Estados Unidos haviam chegado a um impasse por conta de um “desentendimento típico das relações diplomáticas”, causado por uma carta sobre o assunto enviada por Obama a Lula. O pesquisador, que atribui a informação a um ex-ministro de relações exteriores brasileiro, explica: “Enquanto o Brasil pensou que era um sinal positivo (para continuar as negociações com o Irã), o pessoal de Washington a via como uma advertência para que o Brasil fosse cuidadoso”. Segundo ele, “esse mal-entendido levou a uma série de erros que culminaram no conflito sobre as sanções na ONU”.

No dia 8 de janeiro de 2010, algumas horas depois de desembarcar no país, Shannon foi procurado por Celso Amorim, que quebrou o protocolo, e iniciou a conversa, lamentando a demora na aprovação de seu nome: os dois países haviam “perdido um tempo precioso”, disse-lhe o ministro brasileiro.

Os telegramas deixam transparecer o entusiasmo da equipe do Itamaraty com a vinda de Shannon e o empenho de Amorim para explicar melhor a posição brasileira: “O Brasil pode contribuir e ser uma voz positiva em temas sobre o Oriente Médio e o Irã”, disse Amorim, acrescentando que, durante a visita do presidente Mahmoud Ahmadinejad, o Brasil manifestou sua preocupação em relação aos direitos humanos no Irã. Por fim, Amorim pediu a Shannon calma nas negociações, pois mais pressão poderia gerar resistência interna. “Está claro que o ministro do exterior está ansioso para começar a nova fase de relações entre o Brasil e os EUA. Da perspectiva brasileira, o diálogo sobre temas não só regionais, como globais, será importante”, comentou Shannon no telegrama.

O recado parece ter sido compreendido. No auge da crise, o embaixador viajou a Washington para acalmar o governo americano, como conta o professor Matias Spektor. “O fato de Shannon ter legitimidade como interlocutor foi decisivo para que isso não se tornasse crítico. E continua sendo importante agora, em que o Brasil emerge como potência internacional, e ainda não está claro como isto está sendo recebido em Washington, há uma série de interesses que sentem essa ascensão como um risco”, diz Specktor.

Shannon tem atuado no sentido que o Brasil deseja: “A partir de agora, os Estados Unidos precisam tratar o Brasil de igual para igual”, costuma afirmar.

O embaixador mostra-se, inclusive, mais sofisticado nas análises sobre a eleição presidencial de 2010 do que outros integrantes do corpo consular. Enquanto Shannon tenta relatar os fatos com sobriedade, funcionários da embaixada enviavam despachos a Washington que nem o mais fanático dos eleitores tucanos seria capaz de acreditar. A possibilidade de Aécio Neves aceitar o posto de vice na chapa de José Serra, descartada pelo senador mineiro no fim de 2009, ainda era dada como certa nos telegramas do início do ano seguinte. Sem falar no balão de ensaio de uma dobradinha Serra-Marina Silva, sustentado com entusiasmo em despachos durante o processo eleitoral.

Shannon tem se esforçado em prol das relações bilaterais, mas não tem sido fácil. O governo Obama deixou claro que não vai apoiar demandas do Brasil, como o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, nem acabar com a tarifa sobre a importação do etanol, outra reivindicação importante de Brasília. Além disso, alguns telegramas da embaixada revelam que nos últimos anos os EUA fizeram um verdadeiro boicote às pretensões brasileiras de ter um programa espacial e nuclear independente.

Talvez seja por isso que o vazamento do WikiLeaks tenha dado tantas dores de cabeça a Shannon. Segundo o embaixador, seu trabalho foi afetado pela quebra da “garantia de confidencialidade” que permitiria conduzir “discussões francas” e o “diálogo honesto” entre os países.

Valeu a pena?

Para alguns especialistas, porém, a publicidade dos telegramas pode, surpreendentemente, favorecer as relações bilaterais. “O benefício foi maior do que o dano”, diz o ex-embaixador Rubens Ricupero. “Muita coisa de que se suspeitava foi confirmada, como a existência de um antiamericanismo gratuito em uma parte do governo brasileiro, enquanto outros setores dentro do próprio governo se mostram mais abertos. Ou seja, não é um bloco fechado, há espaço para uma mudança psicológica que pode se refletir em uma relação melhor entre os dois países, com menos preconceitos”, afirma Ricupero.

“Para quem está lá nos Estados Unidos, saber que existem essas diferentes visões entre Ministério da Defesa e Itamaraty ou entre Itamaraty e Planalto serve como filtro para as informações que recebem do Brasil”, completa o professor Matias Specktor.

Parece ser nisso que os governos dos dois países estão apostando. Enquanto o governo Lula minimizou a importância dos documentos e a sucessora Dilma sequer comentou as revelações mais recentes, o Itamaraty se esmera em preparar a visita do presidente Obama ao Brasil, marcada para os dias 19 e 20 de março, quando ele fará um discurso histórico. “Pelo que se sabe até agora, Obama vai dizer em alto e bom som que os Estados Unidos consideram positivo o fato de um país como o Brasil, uma grande democracia, estar emergindo como potência internacional – o que tem grande peso pois contraria interesses de setores americanos”, afirma Specktor.

Será  a segunda visita do alto escalão americano neste ano – Hillary Clinton veio especialmente à posse de Dilma – algo inédito. Resta saber como a relação vai se equilibrar nessa corda bamba entre os conflitos de interesse e a vontade de aproximação. Pena que dessa vez o grande público não terá acesso aos bastidores da negociação – como permitiu o vazamento do WikiLeaks.

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